Rio Grande do Sul reduziu proteção
ambiental e não avançou na implementação do Código Florestal
Com milhares de
vítimas das enchentes extremas nesse mês e impactos socioeconômicos ainda
inestimáveis, o Rio Grande do Sul é o único estado da região Sul sem
regulamentação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), etapa obrigatória
para implementação do Código Florestal (Lei 12.651/2012), lei de proteção da
vegetação nativa do país.
A informação está
disponível no Portal de Monitoramento do Código Florestal, iniciativa do
Observatório do Código Florestal liderada pela BVRio, e é uma das evidências da
negligência com a legislação ambiental do estado.
O Termômetro do Código
Florestal mostra ainda que o estado possui mais de 387 mil hectares de
vegetação nativa ainda a ser recuperada, área equivalente à quase oito vezes o
município de Porto Alegre, capital do estado. Destes, 256 mil são de reserva
legal (RL) e 129 mil são de áreas de preservação permanente (APPs).
Tanto a RL quanto as
APPs requerem proteção pois exercem um importante papel no funcionamento e
equilíbrio do meio ambiente. As APPs de beiras de rios ainda têm um papel
primordial na proteção das margens e evitam assoreamento e erosão.
“A proteção dessas
áreas é tão relevante que foram declaradas propriedades da Coroa na Carta Régia
já em 1797”, aponta o livro ‘ Uma breve história da Legislação Florestal
Brasileira’. Sua proteção foi prevista pela legislação desde o Código Florestal
de 1934 e à época eram chamadas de “florestas protectoras” e detinham, dentre
suas funções, o papel de conservar o regime das águas.
Para o assessor em
advocacy e políticas do Observatório do Código Florestal, Marcelo Elvira, é
inegável a função da RL e das APPs no combate a eventos extremos como o
enfrentado pelo estado pelo papel desenvolvido no regime das águas e equilíbrio
ecológico.
“Quanto mais o Código
Florestal estiver implementado e essas áreas protegidas, maior a capacidade do
ecossistema reagir positivamente a eventos extremos. No RS, a falta de
regulamentação do PRA mostra o total descaso com a agenda ambiental e a real
percepção sobre o tamanho do problema”, comenta.
O PRA é o conjunto de
medidas destinadas à adequação ambiental de propriedades rurais conforme o
previsto pela legislação federal de proteção à vegetação nativa.
“A falta de
regulamentação do PRA gera incertezas para os proprietários rurais, que não têm
regras estabelecidas sobre como proceder à regularização ambiental das
propriedades rurais”, ressaltou Jarlene Gomes, pesquisadora do Ipam Amazônia,
uma das instituições responsáveis pela elaboração Termômetro do Código
Florestal.
ÁREAS DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE SOB ATAQUE
Não bastasse a falta
de funcionamento do programa que permite a recuperação das áreas previstas pela
lei, o governo estadual do RS também aprovou em março deste ano e no sentido
contrário ao estabelecido pela legislação federal a lei nº 16111/2024, que permite
projetos de irrigação em APPs e aumenta, assim, o risco de desmatamento dessas
áreas de grande sensibilidade ecológica ao facilitar a realização de
intervenções nesses locais.
Em entrevista ao
programa Roda Viva no dia 20 de maio, o governador do estado do Rio Grande do
Sul, Eduardo Leite, defendeu a nova legislação e justificou a aprovação pelos
efeitos da estiagem sofridos pelo estado em 2023 ao ser questionado a respeito
da flexibilização ambiental promovida pelo governo e criticada por entidades de
referência da sociedade civil organizada.
Em março do ano
passado, mais de 70% dos municípios gaúchos decretaram situação de emergência
pela perdas de produção impostas pela seca no estado.
Especialistas e
estudos mostram, entretanto, que a integridade dos serviços ecossistêmicos
promovidos pelas APPs, sob risco com a lei aprovada, são responsáveis pela
diminuição de efeitos erosivos e de impactos decorrentes da perda de solo
fértil, processo que provoca prejuízo de produtividade e renda no campo.
Além disso, obras de
irrigação em APPs resultam no proliferamento de represamentos ao longo dos rios
e cursos d’águas, o que impacta diretamente na qualidade e disponibilidade das
águas e gera conflitos no campo.
Em 2022, o
Observatório das Águas e o Observatório do Código Florestal (OCF) lançaram a
nota técnica “ Obras de irrigação em áreas de preservação permanente: utilidade
pública para quem?” com análise do impacto de medidas que atacam e flexibilizam
o desmatamento dessas áreas para atividades de irrigação.
Malu Ribeiro, diretora
da SOS Mata Atlântica, membro do OCF e do Observatório das Águas, enfatiza que
tais mudanças alteram significativamente os ecossistemas, reduzem a
biodiversidade e comprometem os usos múltiplos da água nas bacias hidrográficas
brasileiras.
“Ou seja, rios que
eram de corredeira e de velocidade viram águas paradas e há um impacto grande
na qualidade dessas águas”, explica. “Isso altera todos os ecossistemas e perde
biodiversidade, perde a qualidade da água e, com isso, perde a possibilidade de
usos múltiplos da água. Portanto, é um projeto de lei equivocado e que
beneficia um usuário em detrimento de todos os outros usuários da água das
bacias hidrográficas brasileiras”, finaliza.
A nível federal, um
projeto de lei similar está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) da Câmara dos Deputados. O projeto de lei nº 2168/21 considera como
“utilidade publica”, exceção prevista pelo Código Florestal, projetos de
irrigação e dessedentação animal.
Apresentada sob a
justificativa das áreas serem “um dos principais entraves para o crescimento da
área irrigada no país”, a medida já foi aprovada na Comissão de Agricultura,
Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) e na Comissão de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável (CMADS).
Em dezembro de 2023,
também foi aprovado no Senado Federal o projeto de lei nº 1282/19, que libera a
construção de reservatórios para projetos de irrigação em APPs. De autoria do
senador do Rio Grande do Sul Luis Carlos Henze (PP-RS), a medida deve ainda ser
apreciada pela Câmara dos Deputados.
FLEXIBILIZAÇÃO DO NOVO
CÓDIGO AMBIENTAL GAÚCHO E AMEAÇA AO PAMPA
Sancionado pelo
governador do estado em 2019, o novo Código Estadual do Meio Ambiente teve mais
de 500 alterações apontadas como graves à proteção ambiental do estado. O novo
código foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), de número 6681,
no Supremo Tribunal Federal (STF), ajuizada no ano seguinte pela Procuradoria
Geral da República (PGR).
A mudança mais
criticada por especialistas da nova lei é o estabelecimento da Licença
Ambiental por Compromisso (LAC), concedida em até 48 horas pelo sistema online
do órgão de licenciamento ambiental do estado sem análise técnica prévia.
Outro ponto polêmico
do novo Código Ambiental é a proteção do Pampa no estado sulista.
Um dos mais
biodiversos biomas brasileiros, o Pampa gaúcho tem uma extensão total de mais
de 17 milhões de hectares e conta com grande parte de área ameaçada, degradada
e descaracterizada. É, também, o bioma portador da menor proporção de áreas
protegidas dentre os biomas brasileiros.
De acordo com dados do
Mapbiomas, entre 1985 e 2021 o bioma em terras rio-grandenses perdeu quase 3
milhões de hectares — uma redução de 30% em quatro décadas – enquanto o uso
agrícola no solo avançou 2,1 milhões de hectares.
O novo texto afirma
que o bioma terá suas características e proteção definidas por lei específica,
contudo autoriza diversos usos do solo da região sem necessidade de autorização
do órgão ambiental.
A publicação “ Pampa:
desafios e oportunidades para a conservação do bioma“, organizada pelo OCF com
a participação de especialistas do bioma, aponta que a ausência de instrumentos
jurídicos para a proteção de formações campestres fragiliza a conservação da
área.
Diferente da Amazônia,
Pantanal e Mata Atlântica, o Pampa não possui status de Patrimônio Nacional ou
lei específica que regula a sua conservação. Dessa forma, as únicas proteções
conferidas aos remanescentes de vegetação nativa em propriedades rurais do
bioma são as previstas pelo Código Florestal, que estabelece as APPs e a
proteção de 20% de reserva legal.
Mas apesar da
regulamentação das formas de vegetação nativa, a lei é omissa em relação à
regulação do uso sustentável das vegetações não florestais, como é o caso dos
campos do Pampa. E isso dificulta a implementação do Código Florestal no bioma.
“Especificamente, o
Código Florestal falha por não caracterizar as formas de exploração econômica
autorizadas em RL não florestais (Art. 20 a 24 do CF) e por não estabelecer a
necessidade de instrumentos regulatórios específicos, negligenciando, por exemplo,
a importância do manejo pastoril para a manutenção da biodiversidade e modos de
vida tradicionais do Pampa”, discorre o documento.
Uma das recomendações
de soluções para os especialistas ouvidos na publicação é a revisão do novo
Código estadual, que ratificou o Decreto Estadual nº 52.431, de 2015, ao
classificar os campos nativos sob uso agrossilvopastoril anterior a julho de
2008 como áreas de uso rural consolidadas.
Na prática, permite
que os campos nativos usados na atividade pastoril sejam declarados, no
Cadastro Ambiental Rural (CAR), como “área rural consolidada por supressão de
vegetação nativa com atividades pastoris”.
A categoria é prevista
pelo Código Florestal para áreas com desmatamento anterior a 2008, o que isenta
os imóveis rurais de sanções, permite uso dessas áreas e, no caso de pequenas
propriedades (de até quatro módulos fiscais), são flexibilizadas as regras da
reserva legal. Em alguns casos, a propriedade pode ser dispensada de conservar
essas áreas.
“Assim como a pecuária
extensiva é uma atividade secular no Pampa, a maioria dos imóveis rurais do
bioma estaria total ou parcialmente dispensada da obrigação da RL. E a
classificação como área consolidada reduziria sensivelmente a extensão de APPs
a ser protegida. A dispensa da RL coloca as áreas campestres sob forte risco de
conversão para outros usos da terra como a sojicultura, contribuindo para a
degradação e descaracterização do bioma e do modo de vida de sua população
pecuarista tradicional”, mostra o documento.
Em 2022, completados
dez anos da aprovação do Código Florestal, a promotora de Justiça do Ministério
Público do Rio Grande do Sul (MP/RS), Annelise Steigleder abordou em evento do
observatório a falta de proteção jurídica do bioma. A promotora informou que,
em julho de 2015, após o decreto posteriormente validado pelo código estadual,
a promotoria ingressou com ação civil pública contra o Estado com o objetivo de
assegurar a manutenção da reserva legal nas áreas do bioma com atividade
pecuária. A ação ainda está pendente de julgamento final.
Mais recentemente, o
Congresso Nacional ainda ampliou o risco da classificação para outros biomas.
Em março deste ano, a
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de
lei nº 364/19, que considera formas de vegetação nativa ‘predominantemente não
florestais’, como campos gerais, campos de altitude e campos nativos, que serão
consideradas áreas rurais consolidadas.
De acordo c om análise
da SOS Mata Atlântica, a medida aprovada na comissão deixa desprotegidos 48
milhões de hectares de vegetação não florestal no Brasil.
A nova proposta também
anula a aplicação da Lei da Mata Atlântica e de qualquer lei especial de
proteção ambiental em todo território nacional, ao dispersar “disposições
conflitantes contidas em legislações esparsas, como aquelas que se referem
apenas a parcelas do território nacional”, caso da legislação.
A medida, assim,
renega a importância dos campos nativos, áreas estratégicas para manutenção da
biodiversidade e da segurança hídrica e climática. O projeto deve seguir para
apreciação do Senado Federal.
Fonte: Ambiente do
Meio
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