COISAS DO BRASIL: A baixa política X o bom
debate
Se o governante fosse
tomar decisões conforme o grau de aprovação popular e não pelas convicções de
fazer as escolhas certas para o benefício da maioria da sociedade, poderia ser
levado a fazer um governo esquizofrênico e sem rumo. Sondagens de popularidade
(nas ruas, casas, com pesquisas telefônicas ou nos gabinetes dos congressistas)
ajudam, mas têm valor relativo. Já dizia Magalhães Pinto, fundador do Banco
Nacional e que foi governador de Minas Gerais: “Política é como nuvens; cada
hora tem uma feição”. Sugiro um processo de autocrítica permanente. Em vez de
emas ou faisões e outras aves exóticas ou adoráveis cachorros vira-latas,
papagaios e araras, que tal espalhar um bando de galinhas d’angola para ciscar
e catar bichos pelo jardim acordando os governantes com uma reflexão crítica:
“Tô fraco, tô fraco”. Ah, se alguns jogadores de futebol, cantores, políticos e
personalidades fizessem esse “gargarejo” matinal no ego, seria muito mais fácil
enfrentar a realidade, sem viajar na maionese, ou cair numa casca de banana
qualquer.
O presidente Lula
cedeu à tentação de governar sob aplausos fáceis recebidos na sacada quando
demonstrou sua inclinação a vetar a tributação sobre as compras de pacotes de
produtos importados até o valor de US$ 50, porque ficou amolecido pelas
reclamações da esposa, Janja da Silva, de que gosta de fazer “comprinhas” pelos
sites chineses (Shein, Shopee e Ali Express), e para sensibilizar o presidente
da Câmara, Arhur Lira (PP-AL), a ajuda-lo a sair da sinuca de bico, arrematou:
“a filha do Lira também gosta das comprinhas”.
Como presidente da
República, a principal entidade do Estado brasileiro, o comandante do Executivo
deveria ter em mente que o Estado democrático surgiu na Inglaterra, em 1290,
quando os Lordes (senhores de terra e de aldeias) se insurgiram contra as crescentes
cobranças de impostos pelo Rei, para custear a corte e seu exército, e
elaboraram a Carta Magna, delimitando as fronteiras entre o reino e os cidadãos
(os Lordes eram a elite da sociedade, com poder inferior ao Clero). Os Estados
modernos, depois de a Revolução Francesa adotar o lema da “Liberté, Egalité e
Fraternité”, aperfeiçoaram a atividade de tributação para que o Estado -
exercendo o papel de fiscal e árbitro da distribuição da carga tributária entre
indivíduos e atividades econômica em troca da prestação de serviços à
comunidade - possa corrigir distorções que o funcionamento do mercado não é
capaz de resolver.
Os defensores do
liberalismo e do Estado mínimo sonham com um mundo sem impostos – ou que a
carga de impostos recaia sobre o vizinho ou sobre o concorrente. Outros
defendem o paroxismo egoísta de se livrar da responsabilidade fiscal sonegando.
No governo Bolsonaro tivemos uma aberração que ainda não foi de todo corrigida:
o ministro da Economia, Paulo Guedes, na cruzada eleitoreira pró-reeleição do
chefe, isentou de IPI a importação de barcos a motor e “jet skys”. Mas manteve
o IPI sobre motos. O resultado é que os motoboys que ralam dia e noite para
sustentar a família nas atividades de entrega de mercadorias ou como
mototaxistas, pagam impostos, e milionários que podem ter barcos ou “jet skys”
pagam menos tributos. A Reforma Tributária, cujo desenho já foi aprovado e
agora entra na perigosa fase da regulamentação dos detalhes, tentou reordenar
os impostos.
A extensão da
tributação aos sites chineses e estrangeiros que vendem produtos no Brasil veio
pôr um mínimo de ordem na casa. Havia uma sonegação em massa, simplesmente com
o artifício de uma Shein ou Shopee da vida emitir uma fictícia nota fiscal de
uma pessoa física na China para um comprador pessoa física no Brasil. Todos os
funcionários da trading chinesa podiam ter seus registros utilizados para
fraudar uma compra isenta. Do mesmo modo, na ponta compradora no Brasil, nada
impediria que uma loja ou uma rede usasse pessoas físicas como laranja para
compras imunes a tributos. A concorrência desleal desses sites que seduzem os
compradores pela internet é bem mais sofisticada que as atividades formiguinhas
dos mochileiros que traziam mercadorias contrabandeadas dos países vizinhos
para venda em camelôs. Se o camelô é reprimido pelas prefeituras, bem mais
pernicioso para o comércio, a indústria e o emprego em geral são as
“comprinhas” na internet.
“Ah, mas é muito mais
barato” reclamam as pessoas que balançaram as convicções do presidente Lula.
“Bem, meu salário seria bem mais produtivo se não pagasse Imposto de Renda na
Fonte”, comentou um amigo. Ou, os carros vendidos no país seriam bem mais acessíveis.
Mas sem um mínimo de ordem tributária, não se cria uma economia eficiente e
concorrencial. Sem impostos (das diversas atividades), com menos isenções e
exceções possíveis, a carga tributária geral poderia ser bem menor. Com
arrecadação justa (sem sonegação – e os mecanismo da Reforma Tributária
encurtam bastante os vãos da sonegação – o cidadão sente o Estado mais
eficiente na devolução de serviços para aliar a justiça fiscal à justiça
social.
Se o presidente Lula
tem convicção de que está fazendo o bom combate, não tem por que temer a
saraivada de críticas que vier a sofrer nas redes sociais. Não seriam apenas
postagens interesseiras dos bolsonaristas, mas também interessadas de
“influencers” que ganham comissões de sites e marcas para difundir entre os
seguidores o desejo de fazer comprinhas de coisas que nem sempre têm real
utilidade (mas apenas pelo fato de serem “novidades”).
·
Falta senso no uso dos
dados do Censo
Durante audiência na
Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, destacou a importância de ampliar o debate sobre as
regras de vinculações orçamentárias para atingir a meta de 3% de inflação, que
considerou como ousada para o histórico do país. O ministro entende que a
dificuldade do país em cumprir uma meta de inflação mais baixa está ligada à
resistência da inflação e à insensibilidade à taxa de juros, o que sugere (mas
ele não disse) que uma das causas reside no quadro fiscal. Com a experiência de
ter comandado a pasta da Educação, Haddad citou a necessidade de reavaliar as
vinculações no Orçamento Geral da União nas áreas de saúde, educação e
benefícios previdenciários, para buscar uma regra mais eficiente e sustentável.
De fato, há uma
rigidez que foi desenhada na Constituição de 1988, para destinar 15% do OGU
para a Educação e 18% para a pasta da Saúde. Entretanto, como a dinâmica
populacional do Brasil mudou radicalmente nesses 36 anos, é preciso que o
debate sobre o emprego das verbas públicas esteja atrelado à realidade. A base
para isso vem do Censo Demográfico. Feito a cada 10 anos (embora o de 2020
tenha sido adiado pela pandemia da Covid-19 para 2022 e não foi terminado pelo
governo Bolsonaro: a contagem da população parou em 203,3 milhões em agosto de
2022), os dados são ajustados nos intervalos entre os inquéritos censitários e
neles está claro a redução da taxa de natalidade (ainda não em nível tão
preocupante como no Japão e China, que projetam forte redução da população nos
próximos 30 anos – no Japão, escolas do interior estão sem alunos para
completar as classes).
Decorridos 36 anos da
promulgação da Constituição, a realidade brasileira começa a apontar menos
demanda por creches e escolas para o ensino básico, e maior demanda por cursos
técnicos e formação universitária. Mas o engessamento da legislação determina que
15% do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação seja destinado aos
municípios, independente do porte (conforme sua população, ainda que não haja
demanda para novas escolas: diante da enxurrada de recursos, os gestores
municipais contratam a construção de novas escolas ou a compra de ônibus
escolares (um e outro geram boas comissões...). Na Saúde, dado o rápido
envelhecimento da população, os 18% da receita devem ir para a pediatria ou a
geriatria? – na tragédia do Rio Grande do Sul viu-se mais resgates de idosos do
que de crianças.
No governo Temer, essa
rigidez orçamentária, que deixa pouco espaço livre para os governos escolherem
onde investir, porque o excesso das verbas carimbadas já era criticado pela
presidente Dilma Roussef, a adoção do Teto de Gastos, criou um pouco mais de
espaço para o respiro. Mas a volta, no Arcabouço Fiscal, dos ditames da
Constituição nas regras atuais de correções dessas importantes despesas ameaça
mais uma vez a gestão das contas públicas, o que pode dificultar o Arcabouço
Fiscal nos próximos anos.
Principal norma fiscal
brasileira, o Arcabouço reintroduziu as regras constitucionais de reajuste dos
gastos com saúde e educação em uma porcentagem fixa de 15% e 18% da receita
corrente líquida (RCL) e da receita líquida de impostos (RLI), respectivamente.
Com o grau de indexação destas despesas (nem sempre amparadas na realidade
nacional, estadual ou municipal, que mereciam ser aferidas pelos dados do Censo
do IBGE) e ainda o grau de indexação do salário-mínimo aos benefícios da
Previdência, estimativas apontam que, em 2027, o orçamento federal já será
quase completamente consumido pelas despesas obrigatórias, não restando espaço
para gastos discricionários.
O novo arcabouço
fiscal tem semelhança do antigo teto de gastos (ao longo dos anos ambos
levariam a um cenário no qual as despesas discricionárias convergiriam para
zero). A grande diferença é que o teto de gastos, além de impedir o crescimento
dos gastos em termos reais, gerava os limites para a realização de reformas que
endereçassem os principais determinantes do crescimento dos gastos
obrigatórios, enquanto o novo arcabouço fiscal busca meios de elevar a
arrecadação federal para financiar o aumento dos gastos, uma vez que pela sua
estrutura sempre há crescimento real da despesa.
O debate do bom uso
dos parcos recursos orçamentários não sensibiliza o Congresso. O debate da
Reforma Tributária, que vai simplificar a miríade de impostos no país, e
inverter a pirâmide tributária, concentrada nos impostos indiretos, que
penaliza proporcionalmente os mais ricos (que precisam ser mais taxados sobre a
renda e o patrimônio) resolve só uma ponta da justiça fiscal. Mas o bom uso da
arrecadação em prol da maioria da sociedade brasileira, passa, necessariamente,
pelo ajuste entre o bolo arrecadado e as verdadeiras carências da sociedade –
com as devidas projeções exponenciais. O bom planejamento é aquele que desenha
o quadro presente para os próximos quatro ou cinco anos. Nas grandes empresas,
como a Petrobras, anualmente é feito um ajuste no Plano de Negócios e Gestão
para os próximos cinco anos.
A necessidade de
reconstrução do Rio Grande do Sul, sem risco do ressurgimento dos mesmos
problemas causados por eventos climáticos em dois ou três anos, seria um ótimo
aprendizado. Um teste para o desafio da elite pensante nacional e à capacidade
empreendedora dos planejadores, empreiteiras e empresas dos mais diversos
portes e atividade envolvidos na reconstrução. O Congresso deveria mirar no
exemplo extremo e se debruçar sobre discussões mais consistentes para evitar o
estrangulamento orçamentário. Infelizmente, a mediocridade do nosso Congresso,
que se acostumou, na ceva do Orçamento Secreto, a sempre pegar uma beirada
política ou material (comissão) no encaminhamento de verba para os currais
eleitorais dos deputados federais e senadores em seus estados, traz pouca
esperança ao cidadão. Mas o cidadão não deve esquecer que ele é contribuinte e
eleitor. Assim, não deve dar seu voto a quem não vai defender as suas teses nas
câmaras municipais e prefeituras, nas assembleias e governos estaduais e na
própria representação federal (Executivo e Legislativo).
·
Os juros na questão
fiscal
A questão fiscal é
muito mais séria do que a discussão sobre se o país está com déficit ou
superávit primário. O conceito de resultado primário foi criado na época em que
o país tinha recorrido ao Fundo Monetário Internacional (1982-1987) para
depurar as contas consolidadas do setor público da correção monetária atrelada
aos títulos da dívida pública. Ele confronta receitas menos despesas e ignora
os juros da dívida.
Acontece que a dívida
do setor público, incluindo a externa, era de R$ 8.347 bilhões em março, e a
dívida interna, de R$ 7.316 bilhões. Com os juros estacionados em 10,50% ao
ano, o Tesouro Nacional vai transferir para a camada mais rica da população (banqueiros
e investidores em papéis de renda fixa do Tesouro) nada menos que R$ 740
bilhões. O Bolsa Juros dos ricos é quatro vezes superior aos R$ 167 bilhões
previstos ao Bolsa Família este ano.
E a simples mudança do
cronograma do Banco Central para reduzir os juros (depois que o Federal
Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos, deu meia trava na meta de baixar
em 0,75% os juros por lá este ano) fez o Banco Central e o mercado financeiro
brasileiros alterarem o plano de voo. Em vez de a Selic, que corrige a maior
parte da dívida, fechar o ano de 2024 em 9,00%, deve ficar em 10,25% ou nos
atuais 10,50%.
O Banco Central
informa que cada ponto para cima ou para baixo na Selic representa economia ou
gasta de R$ 48,9 bilhões num horizonte de 12 meses. A trava nos juros de 1,25%
implicaria um gasto extra de mais de R$ 60 bilhões. E se o BC encerrar a Selic
em 10,50%, o aumento de gastos seria de R$ 73,35 bilhões. Isso corresponde a
três vezes a quatro vezes os gastos previstos para a reconstrução do Rio Grande
do Sul (podem ser maiores com a incompetência de governantes, como a do
prefeito de Porto Alegre). Ou seja, os estragos dos juros tolhem o Tesouro e a
capacidade de gasto do Executivo.
Fonte: Por Gilberto
Menezes Côrtes, no Jornal do Brasil
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