Como o “escolasticídio” israelense destrói
o passado, presente e futuro dos palestinos
Maior e mais antiga
instituição acadêmica da Palestina, a Universidade Islâmica de Gaza (UIG) segue
resiliente. Assim como as 370 escolas e colégios destruídos pelo Exército de
Israel, todas as 11 universidades de Gaza tiveram suas sedes reduzidas a entulho,
deixando 90 mil palestinos sem acesso à educação universitária. A destruição da
UIG, logo na
primeira semana do atual genocídio, mudou a dinâmica de suas
bancas acadêmicas. As tendas de lona, que hoje acolhem mais de um milhão de
deslocados internos concentrados na região desértica de Al Mawasi, também foram
transformadas em espaços para produção de conhecimento. Mesmo sob o zumbido dos
drones, elas vêm servindo de ambiente para a titulação de mestres e doutores.
Detentora de convênios
internacionais com 142 instituições de educação, incluindo a Universidade de
Marmara, na Turquia, a de Glasgow, na Escócia e a de Graz, na Áustria, a UIG é
marcada por alto
desempenho acadêmico nos rankings europeus. Sufian Tayeh,
matemático, físico e reitor da universidade, cujas publicações sobre ondas
ópticas, elipsometria e diodos emissores de luz destacavam-no entre os
principais autores da bibliografia especializada, foi assassinado
por Israel, durante um de seus bombardeios aéreos em dezembro de
2023. Um dos 140 professores universitários, cujas vidas foram perdidas, também
estava Rifat Alarrer,
poeta e professor de literatura clássica inglesa, homenageado em boa parte das
ocupações estudantis no Reino Unido e na América do Norte pela força de sua
prosa.
“O papel central da
educação na cultura palestina, expressa nos altos níveis de alfabetização em
Gaza, faz com que a guerra contra as escolas e universidades ocupem
centralidade histórica no planejamento militar israelense.”
De outubro de 2023 a
março desse ano, segundo o movimento Acadêmicos contra a Guerra na
Palestina, 7.818 estudantes e 707 educadores foram feridos. Entre os
mortos há 4.237 alunos e 231 docentes. Hoje, em Gaza, 620 mil crianças estão
fora da escola por conta das políticas israelenses. Oito bibliotecas
especializadas e quatro universitárias, incluindo a Biblioteca Municipal de
Gaza, também foram destruídas na atual ofensiva. Esta última, erguida em
1999, com apoio da cidade francesa de Dunkerque, possuía cerca de 10
mil volumes em árabe, inglês e francês. Ela foi um dos primeiros alvos
militares de Israel.
Elaborado pela
primeira vez pela jurista Karma Nabulsi, professora palestina especializada nas
leis de guerra, o conceito de “escolasticído”, forjado nos bombardeios
israelenses a Gaza ainda em 2009, é hoje ainda mais pertinente. O papel central
da educação na cultura palestina, expressa nos altos níveis de alfabetização em
Gaza, faz com que a guerra contra as escolas e universidades ocupem
centralidade histórica no planejamento militar israelense. Na Palestina,
genocídio e escolasticído andam de mãos dadas.
O ataque à academia
palestina foi ganhando força ao longo do período colonial britânico. Como forma
de apoio estratégico ao movimento sionista, os ingleses incentivaram o
surgimento da Technikum, o Instituto de Tecnologia de Israel
baseado em Haifa, assim como a formação da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Política oposta era aplicada aos árabes. Os ingleses simplesmente proibiam a
fundação de universidades palestinas, levando à criação de um sistema
universitário árabe clandestino.
No âmago desse sistema
encontrava-se o Colégio Árabe de Jerusalém, um centro para a formação de
professores, cujo currículo foi transformado, sem que os interventores
britânicos notassem, em uma universidade paralela. A instituição mantinha
programas de equivalência junto as universidades de outros países árabes da
região, com intercâmbio acadêmico intenso. Isso gerou, como apontado por Ilan
Pappe, a contradição de que, mesmo sem universidades próprias, a Palestina
antes da Nakba já tinha pesquisadores
relevantes contribuindo para os altos estudos da região e do
restante do mundo.
“Setenta mil livros,
coleções arqueológicas e álbuns de fotografias, ao lado de toda documentação
pública da Era Otomana, foram saqueados e armazenados em Israel, com acesso
vetado aos pesquisadores árabes.”
Em 1948, durante a
Nakba, quando mais de 530 vilarejos árabes foram destruídos e 750
mil pessoas expulsas de suas casas por Israel, os arquivos palestinos
tornaram-se alvos prioritários. Setenta mil livros, manuscritos, coleções
arqueológicas e álbuns de fotografias, ao lado de toda documentação pública da
Era Otomana, foram saqueados e armazenados em Israel, com acesso vetado aos
pesquisadores árabes.
O combate à
intelectualidade palestina intensificou-se no período posterior a 1967, em
particular com a chegada da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em
Beirute. Israel temia o desenvolvimento de uma elite intelectual, que
evidenciasse em escala internacional a natureza dinâmica de sociedade civil
palestina. Na capital libanesa, a OLP passou a deter mais canais e espaços
próprios para desenvolver seu trabalho intelectual e acadêmico, em específico
através do seu Centro de Pesquisas. Baseado no bairro de Hamra, próximo à
Universidade Americana de Beirute, o Centro de Pesquisas, que contava com
arquivo, biblioteca e uma editora de livros, era visto como ameaça à segurança
nacional de Israel. Ao invadir a capital do Líbano, em setembro de 1982, os
israelenses saquearam o prédio, roubando os arquivos da OLP, e pouco depois
plantando um
carro-bomba na sua porta.
Na Cisjordânia, as
universidades palestinas só foram autorizadas a operar em meados dos anos 1970,
sob controle minucioso do Exército sionista, que com frequência sequestrava e
deportava seus reitores. Em períodos de agitação anticolonial, os soldados israelenses
se dão o direito de cercar e bloquear qualquer acesso às universidades. Durante
a primeira intifada, a Universidade de Birzeit, em Ramallah, a maior da
Cisjordânia, ficou fechada entre
1988 e 1992 por ordem de Tel Aviv, de modo a impedir produções
acadêmicas em paralelo ao levante. A política de criminalização na universidade
intensificou-se nos últimos anos. Segundo a ativista feminista Layan
Kayed, que segue
presa por ativismo estudantil na Universidade de Birzeit, os
últimos anos testemunharam a intensificação dos ataques.
“O boicote à academia
israelense é resposta necessária, mesmo que tímida, ao escolasticídio no
Oriente Médio.”
Para o colonialismo
israelense, as prisões em massa são insuficientes. Eles invadiram o campus da
universidade diversas vezes, realizaram prisões dentro dos corredores dos
edifícios e em frente ao local do conselho estudantil, além de prenderem o
presidente do conselho estudantil, Omar Kiswani, em 7 de março de 2018, usando
soldados à paisana. Israel também decreta “ordens de banimento” para estudantes
ativistas, impedindo-os de entrar no campus. A intimidação também é
realizada por meio de notificações oficiais e ligações ameaçadoras, não apenas
para ativistas estudantis, mas para o corpo de estudantes em geral, a fim de
dissuadi-los a integrarem-se ao movimento estudantil. Mais importante ainda, o
colonialismo israelense faz pressão crescente na universidade – citando a
presença do movimento estudantil – a partir do lançamento de uma campanha
direcionada aos países e instituições doadoras, com o objetivo de minar o
financiamento da Universidade de Birzeit.
A despeito de seu
longo histórico de guerra contra a educação na Palestina, o atual genocídio em
Gaza coloca em outro patamar as agressões de Israel. Diante dessa realidade, a
recente onda de protestos estudantis pelo fim dos vínculos internacionais com as
universidades israelenses tem se empenhado a construir pontes com a sociedade
civil palestina. O boicote à
academia israelense é resposta necessária, mesmo que tímida, ao
escolasticídio no Oriente Médio.
Solidariedade
acadêmica
No dia 30 de abril, o
Dr. Jamal Naim, diretor da Faculdade de Odontologia da Universidade Islâmica de
Gaza, deu à comunidade acadêmica da Universidade de São Paulo (USP), seu
testemunho da detenção, tortura e desaparecimento de inúmeros
professores da sua universidade, cujas dependências foram dinamitadas pelo
Exército israelense. Retirado dos escombros de seu apartamento atacado por
aviões de guerra, o Dr. Jamal relatou os crimes cometidos contra sua família.
Em um único dia, Israel assassinou suas três filhas, mãe e três netas.
A vinda de Dr. Jamal à
USP teve também como finalidade sua participação do lançamento dos livros Na sombra do
Holocausto: genocídio em Gaza, e Síria depois
dos Levantes, da editora Contrabando Editorial.
Enquanto o livro de Síria enfatiza a economia política e as relações
internacionais no Oriente Médio, sob uma perspectiva marxista, a questão dos
presos políticos palestinos ocupa o centro do livro de Gaza. Ambos fazem parte
de um esforço de editoras independentes, como a editora Tabla e Autonomia
Literária, para atualizar a bibliografia de Oriente Médio no Brasil.
Impulsionado pelo
departamento de História da FFLCH, o lançamento dos livros na USP incluiu uma
convocatória ao movimento negro, estudantil e indígena para unirem-se à luta
pela libertação de todos os presos políticos palestinos. O evento, coordenado
pelo professor Henrique Carneiro, contou, ainda, com a presença, online, direto
de Ramallah, de Jenna Abu Hsana, da equipe da Addameer, a Associação de Amparo
aos Presos Políticos Palestinos, cujo relatório foi traduzido para o português
e publicado no livro da Contrabando. Junto a ela estavam Rawa Al Sagheer, da
Rede Samidoun de solidariedade aos presos palestinos, Milton Barbosa do
Movimento Negro Unificado (MNU), Paulo Arantes, professor de filosofia da USP,
Soraya Misleh, do Comitê pela libertação de Islam Hamed e da Frente Palestina,
Carol Ucha, do Movimento Esquerda Socialista (MES) e Flávia Odenheimer,
representando o grupo Vozes Judaicas pela Libertação. O evento foi tão
importante e potente que, sa semana seguinte à atividade, teve início o
acampamento pró-Palestina na USP.
¨ Analista: 'Israel é uma base militar dos EUA e da OTAN que
precisa ser salva no Oriente Médio'
Os EUA são os maiores
aliados de Israel e a principal economia mundial que não reconhece a Palestina
como Estado. Na Europa, os países mais próximos de Tel Aviv, que também lhe
fornecem armas e não reconhecem a soberania palestina, são a Alemanha, Itália,
França e Reino Unido. Para além deles, Canadá, Coreia do Sul, Japão, Austrália
e Nova Zelândia também não reconhecem a Palestina. Então por que Espanha,
Noruega e Irlanda decidiram caminhar no suposto sentido contrário de seus
aliados mais próximos?
Sobre essa decisão
aparentemente paradoxal, o analista internacional Nicola Hadwa alerta que devem
ser feitas várias leituras, olhando-a do ponto de vista da realidade.
"Neste momento
não temos dúvidas, e sabemos, que o Estado sionista é uma base militar dos EUA
e da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] em uma área tão
importante como a Ásia Ocidental, onde está localizada a energia que move o
mundo capitalista internacional", explica o especialista.
Segundo Hadwa, essa
iniciativa dos três países de reconhecer o Estado da Palestina se deve ao
perigo real de que esta base militar dos EUA e da OTAN, chamada Israel,
desapareça.
"Não tenho
dúvidas de que a longo prazo desaparecerá. [Mas] para salvá-la, propõem a
criação de um Estado [palestino], que seria um fracasso, de acordo com a
Autoridade Palestina, que não representa o povo palestino, porque, segundo
pesquisas, 90% dos palestinos o rejeitam. Portanto, a colaboração [da
Autoridade Palestina] com os europeus concordaria com a criação deste Estado
[palestino fracassado], porque isso lhes permitiria salvar a base militar do
império e dos europeus. E, por outro lado, com os colaboracionistas poderiam
formar um governo que reconhecesse o Estado infanticida [israelense] como
legítimo", pontuou Hadwa.
De acordo com o
especialista, a hipocrisia internacional liderada pelos EUA está disposta a
criar um Estado palestino que defenda os interesses norte-americanos e
ocidentais, muito diferente dos interesses do povo palestino.
"Neste momento,
estamos vendo o povo palestino ser ignorado pela chamada comunidade
internacional que teme o poder do capital financeiro sionista."
Para o especialista, a
grande questão que desperta o interesse de Washington em Gaza, não é outra
senão a tentativa de manutenção de sua influência regional em um momento em que
as forças norte-americanas estão sendo retiradas de territórios como Líbano,
Afeganistão, Síria e Iraque.
Os EUA "estão
perdendo o poder de presença no mundo inteiro, não apenas na Ásia Central e
Ocidental". Para Hadwa, o verdadeiro poder que o império norte-americano
ainda manipula é o Estado sionista de Israel, que estimula o complexo
industrial-militar norte-americano, o capital financeiro e até mesmo o
Congresso, ao ponto de promover um racha entre a visão do povo americano que se
manifesta nas universidades contra as barbaridades em Gaza, e os jovens que se
alistam no Exército dos EUA sem saber exatamente pelo que estão lutando.
"O mundo precisa
se libertar do sionismo. O sionismo não é apenas contra o povo palestino, é
inimigo da humanidade, uma ideologia arcaica, primitiva, racista, exclusivista,
supremacista que está absolutamente à margem da história. Essa é a realidade",
conclui.
Fonte: Por Aldo
Cordeiro Sauda, em Jacobin Brasil/Sputnik Brasil
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