quarta-feira, 29 de maio de 2024

Como o “escolasticídio” israelense destrói o passado, presente e futuro dos palestinos

Maior e mais antiga instituição acadêmica da Palestina, a Universidade Islâmica de Gaza (UIG) segue resiliente. Assim como as 370 escolas e colégios destruídos pelo Exército de Israel, todas as 11 universidades de Gaza tiveram suas sedes reduzidas a entulho, deixando 90 mil palestinos sem acesso à educação universitária. A destruição da UIG, logo na primeira semana do atual genocídio, mudou a dinâmica de suas bancas acadêmicas. As tendas de lona, que hoje acolhem mais de um milhão de deslocados internos concentrados na região desértica de Al Mawasi, também foram transformadas em espaços para produção de conhecimento. Mesmo sob o zumbido dos drones, elas vêm servindo de ambiente para a titulação de mestres e doutores.  

Detentora de convênios internacionais com 142 instituições de educação, incluindo a Universidade de Marmara, na Turquia, a de Glasgow, na Escócia e a de Graz, na Áustria, a UIG é marcada por alto desempenho acadêmico nos rankings europeus. Sufian Tayeh, matemático, físico e reitor da universidade, cujas publicações sobre ondas ópticas, elipsometria e diodos emissores de luz destacavam-no entre os principais autores da bibliografia especializada, foi assassinado por Israel, durante um de seus bombardeios aéreos em dezembro de 2023. Um dos 140 professores universitários, cujas vidas foram perdidas, também estava Rifat Alarrer, poeta e professor de literatura clássica inglesa, homenageado em boa parte das ocupações estudantis no Reino Unido e na América do Norte pela força de sua prosa. 

“O papel central da educação na cultura palestina, expressa nos altos níveis de alfabetização em Gaza, faz com que a guerra contra as escolas e universidades ocupem centralidade histórica no planejamento militar israelense.”

De outubro de 2023 a março desse ano, segundo o movimento Acadêmicos contra a Guerra na Palestina, 7.818 estudantes e 707 educadores foram feridos. Entre os mortos há 4.237 alunos e 231 docentes. Hoje, em Gaza, 620 mil crianças estão fora da escola por conta das políticas israelenses. Oito bibliotecas especializadas e quatro universitárias, incluindo a Biblioteca Municipal de Gaza, também foram destruídas na atual ofensiva. Esta última, erguida em 1999, com apoio da cidade francesa de Dunkerque, possuía cerca de 10 mil volumes em árabe, inglês e francês. Ela foi um dos primeiros alvos militares de Israel.

Elaborado pela primeira vez pela jurista Karma Nabulsi, professora palestina especializada nas leis de guerra, o conceito de “escolasticído”, forjado nos bombardeios israelenses a Gaza ainda em 2009, é hoje ainda mais pertinente. O papel central da educação na cultura palestina, expressa nos altos níveis de alfabetização em Gaza, faz com que a guerra contra as escolas e universidades ocupem centralidade histórica no planejamento militar israelense. Na Palestina, genocídio e escolasticído andam de mãos dadas.

O ataque à academia palestina foi ganhando força ao longo do período colonial britânico. Como forma de apoio estratégico ao movimento sionista, os ingleses incentivaram o surgimento da Technikum, o Instituto de Tecnologia de Israel baseado em Haifa, assim como a formação da Universidade Hebraica de Jerusalém. Política oposta era aplicada aos árabes. Os ingleses simplesmente proibiam a fundação de universidades palestinas, levando à criação de um sistema universitário árabe clandestino. 

No âmago desse sistema encontrava-se o Colégio Árabe de Jerusalém, um centro para a formação de professores, cujo currículo foi transformado, sem que os interventores britânicos notassem, em uma universidade paralela. A instituição mantinha programas de equivalência junto as universidades de outros países árabes da região, com intercâmbio acadêmico intenso. Isso gerou, como apontado por Ilan Pappe, a contradição de que, mesmo sem universidades próprias, a Palestina antes da Nakba já tinha pesquisadores relevantes contribuindo para os altos estudos da região e do restante do mundo. 

“Setenta mil livros, coleções arqueológicas e álbuns de fotografias, ao lado de toda documentação pública da Era Otomana, foram saqueados e armazenados em Israel, com acesso vetado aos pesquisadores árabes.”

Em 1948, durante a Nakba, quando mais de 530 vilarejos árabes foram destruídos e 750 mil pessoas expulsas de suas casas por Israel, os arquivos palestinos tornaram-se alvos prioritários. Setenta mil livros, manuscritos, coleções arqueológicas e álbuns de fotografias, ao lado de toda documentação pública da Era Otomana, foram saqueados e armazenados em Israel, com acesso vetado aos pesquisadores árabes. 

O combate à intelectualidade palestina intensificou-se no período posterior a 1967, em particular com a chegada da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Beirute. Israel temia o desenvolvimento de uma elite intelectual, que evidenciasse em escala internacional a natureza dinâmica de sociedade civil palestina. Na capital libanesa, a OLP passou a deter mais canais e espaços próprios para desenvolver seu trabalho intelectual e acadêmico, em específico através do seu Centro de Pesquisas. Baseado no bairro de Hamra, próximo à Universidade Americana de Beirute, o Centro de Pesquisas, que contava com arquivo, biblioteca e uma editora de livros, era visto como ameaça à segurança nacional de Israel. Ao invadir a capital do Líbano, em setembro de 1982, os israelenses saquearam o prédio, roubando os arquivos da OLP, e pouco depois plantando um carro-bomba na sua porta.

Na Cisjordânia, as universidades palestinas só foram autorizadas a operar em meados dos anos 1970, sob controle minucioso do Exército sionista, que com frequência sequestrava e deportava seus reitores. Em períodos de agitação anticolonial, os soldados israelenses se dão o direito de cercar e bloquear qualquer acesso às universidades. Durante a primeira intifada, a Universidade de Birzeit, em Ramallah, a maior da Cisjordânia, ficou fechada entre 1988 e 1992 por ordem de Tel Aviv, de modo a impedir produções acadêmicas em paralelo ao levante. A política de criminalização na universidade intensificou-se nos últimos anos. Segundo a ativista feminista Layan Kayed, que segue presa por ativismo estudantil na Universidade de Birzeit, os últimos anos testemunharam a intensificação dos ataques.  

“O boicote à academia israelense é resposta necessária, mesmo que tímida, ao escolasticídio no Oriente Médio.”

Para o colonialismo israelense, as prisões em massa são insuficientes. Eles invadiram o campus da universidade diversas vezes, realizaram prisões dentro dos corredores dos edifícios e em frente ao local do conselho estudantil, além de prenderem o presidente do conselho estudantil, Omar Kiswani, em 7 de março de 2018, usando soldados à paisana. Israel também decreta “ordens de banimento” para estudantes ativistas, impedindo-os de entrar no campus. A intimidação também é realizada por meio de notificações oficiais e ligações ameaçadoras, não apenas para ativistas estudantis, mas para o corpo de estudantes em geral, a fim de dissuadi-los a integrarem-se ao movimento estudantil. Mais importante ainda, o colonialismo israelense faz pressão crescente na universidade – citando a presença do movimento estudantil – a partir do lançamento de uma campanha direcionada aos países e instituições doadoras, com o objetivo de minar o financiamento da Universidade de Birzeit.

A despeito de seu longo histórico de guerra contra a educação na Palestina, o atual genocídio em Gaza coloca em outro patamar as agressões de Israel. Diante dessa realidade, a recente onda de protestos estudantis pelo fim dos vínculos internacionais com as universidades israelenses tem se empenhado a construir pontes com a sociedade civil palestina. O boicote à academia israelense é resposta necessária, mesmo que tímida, ao escolasticídio no Oriente Médio.

Solidariedade acadêmica

No dia 30 de abril, o Dr. Jamal Naim, diretor da Faculdade de Odontologia da Universidade Islâmica de Gaza, deu à comunidade acadêmica da Universidade de São Paulo (USP), seu testemunho da detenção, tortura e desaparecimento de inúmeros professores da sua universidade, cujas dependências foram dinamitadas pelo Exército israelense. Retirado dos escombros de seu apartamento atacado por aviões de guerra, o Dr. Jamal relatou os crimes cometidos contra sua família. Em um único dia, Israel assassinou suas três filhas, mãe e três netas. 

A vinda de Dr. Jamal à USP teve também como finalidade sua participação do lançamento dos livros Na sombra do Holocausto: genocídio em Gaza, e Síria depois dos Levantes, da editora Contrabando Editorial. Enquanto o livro de Síria enfatiza a economia política e as relações internacionais no Oriente Médio, sob uma perspectiva marxista, a questão dos presos políticos palestinos ocupa o centro do livro de Gaza. Ambos fazem parte de um esforço de editoras independentes, como a editora Tabla e Autonomia Literária, para atualizar a bibliografia de Oriente Médio no Brasil. 

Impulsionado pelo departamento de História da FFLCH, o lançamento dos livros na USP incluiu uma convocatória ao movimento negro, estudantil e indígena para unirem-se à luta pela libertação de todos os presos políticos palestinos. O evento, coordenado pelo professor Henrique Carneiro, contou, ainda, com a presença, online, direto de Ramallah, de Jenna Abu Hsana, da equipe da Addameer, a Associação de Amparo aos Presos Políticos Palestinos, cujo relatório foi traduzido para o português e publicado no livro da Contrabando. Junto a ela estavam Rawa Al Sagheer, da Rede Samidoun de solidariedade aos presos palestinos, Milton Barbosa do Movimento Negro Unificado (MNU), Paulo Arantes, professor de filosofia da USP, Soraya Misleh, do Comitê pela libertação de Islam Hamed e da Frente Palestina, Carol Ucha, do Movimento Esquerda Socialista (MES) e Flávia Odenheimer, representando o grupo Vozes Judaicas pela Libertação. O evento foi tão importante e potente que, sa semana seguinte à atividade, teve início o acampamento pró-Palestina na USP.

 

¨      Analista: 'Israel é uma base militar dos EUA e da OTAN que precisa ser salva no Oriente Médio'

Os EUA são os maiores aliados de Israel e a principal economia mundial que não reconhece a Palestina como Estado. Na Europa, os países mais próximos de Tel Aviv, que também lhe fornecem armas e não reconhecem a soberania palestina, são a Alemanha, Itália, França e Reino Unido. Para além deles, Canadá, Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia também não reconhecem a Palestina. Então por que Espanha, Noruega e Irlanda decidiram caminhar no suposto sentido contrário de seus aliados mais próximos?

Sobre essa decisão aparentemente paradoxal, o analista internacional Nicola Hadwa alerta que devem ser feitas várias leituras, olhando-a do ponto de vista da realidade.

"Neste momento não temos dúvidas, e sabemos, que o Estado sionista é uma base militar dos EUA e da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] em uma área tão importante como a Ásia Ocidental, onde está localizada a energia que move o mundo capitalista internacional", explica o especialista.

Segundo Hadwa, essa iniciativa dos três países de reconhecer o Estado da Palestina se deve ao perigo real de que esta base militar dos EUA e da OTAN, chamada Israel, desapareça.

"Não tenho dúvidas de que a longo prazo desaparecerá. [Mas] para salvá-la, propõem a criação de um Estado [palestino], que seria um fracasso, de acordo com a Autoridade Palestina, que não representa o povo palestino, porque, segundo pesquisas, 90% dos palestinos o rejeitam. Portanto, a colaboração [da Autoridade Palestina] com os europeus concordaria com a criação deste Estado [palestino fracassado], porque isso lhes permitiria salvar a base militar do império e dos europeus. E, por outro lado, com os colaboracionistas poderiam formar um governo que reconhecesse o Estado infanticida [israelense] como legítimo", pontuou Hadwa.

De acordo com o especialista, a hipocrisia internacional liderada pelos EUA está disposta a criar um Estado palestino que defenda os interesses norte-americanos e ocidentais, muito diferente dos interesses do povo palestino.

"Neste momento, estamos vendo o povo palestino ser ignorado pela chamada comunidade internacional que teme o poder do capital financeiro sionista."

Para o especialista, a grande questão que desperta o interesse de Washington em Gaza, não é outra senão a tentativa de manutenção de sua influência regional em um momento em que as forças norte-americanas estão sendo retiradas de territórios como Líbano, Afeganistão, Síria e Iraque.

Os EUA "estão perdendo o poder de presença no mundo inteiro, não apenas na Ásia Central e Ocidental". Para Hadwa, o verdadeiro poder que o império norte-americano ainda manipula é o Estado sionista de Israel, que estimula o complexo industrial-militar norte-americano, o capital financeiro e até mesmo o Congresso, ao ponto de promover um racha entre a visão do povo americano que se manifesta nas universidades contra as barbaridades em Gaza, e os jovens que se alistam no Exército dos EUA sem saber exatamente pelo que estão lutando.

"O mundo precisa se libertar do sionismo. O sionismo não é apenas contra o povo palestino, é inimigo da humanidade, uma ideologia arcaica, primitiva, racista, exclusivista, supremacista que está absolutamente à margem da história. Essa é a realidade", conclui.

 

Fonte: Por Aldo Cordeiro Sauda, em Jacobin Brasil/Sputnik Brasil

 

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