Do Congresso ao STF: o dress code machista
nos poderes em Brasília
Era início da década
de 1970 quando uma jovem advogada saiu do Rio de Janeiro rumo a Brasília para
participar de um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Trajando roupa
social, composta por blazer e calça comprida, a mulher vinha desempenhar um papel
de destaque na sessão que participaria. No plenário da Corte faria uma
sustentação oral, isto é, quando advogados falam diante dos ministros para
defender réus daquele processo. Mas o julgamento teve início antes mesmo dela
entrar no plenário da Suprema Corte brasileira: a advogada teria sido barrada
pelos seguranças por estar usando calças e não vestidos ou saias, que eram as
vestimentas consideradas adequadas para mulheres que frequentavam o STF naquela
época. Alguns funcionários mais antigos dizem que a mulher chegou a tirar as
calças e entrar só de blazer e calcinha. Outros dizem que a afronta não atingiu
tamanha proporção. A história foi virando uma lenda e, mesmo sem comprovações
oficiais do episódio, pode ser ouvida nos corredores e gabinetes do Supremo.
Lenda ou não, nos anos
que se seguiram ao suposto episódio até os dias atuais, o STF acumulou diversas
outras situações de mulheres que foram impedidas de entrar por não estarem
vestidas “de forma adequada”. A instituição não foi a única, nem o Judiciário o
único poder da República, que manteve a exigência de vestidos e saias para
mulheres em suas dependências mesmo após décadas de aceitação da sociedade
brasileira ao uso de calças compridas femininas.
O cenário só começou a
mudar em 1997. Ao menos no papel.
Naquele ano, o então
presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, autorizou que mulheres
utilizassem calças compridas no plenário, salas de comissões e outros locais de
circulação da Casa.
Eleita senadora pelo
PT (Partido dos Trabalhadores) no ano seguinte, em 1998, Heloísa Helena foi uma
das primeiras parlamentares a colocar em prática a medida e tornar habitual o
uso de calças femininas: “antes tarde do que nunca”, respondeu ao ser indagada
pela Agência Pública sobre o assunto. A ex-parlamentar lembra que 20 anos
antes, em 1978, quando uma mulher assumiu pela primeira vez uma cadeira no
Senado, sequer existia banheiro feminino no plenário, construído somente em
2016.
Na esteira do que
acontecia no Legislativo, no Supremo, os anseios pela liberação do uso de
calças para mulheres já não se ancoravam apenas em longínquas histórias ou
lendas sobre as vestimentas femininas no local, mas na realidade das servidoras
da Corte, que decidiram se unir no início do ano 2000 para pleitear a
autorização da vestimenta. Um ofício assinado por 63 servidoras foi enviado ao
gabinete do então presidente do Tribunal, ministro Carlos Velloso.
Uma familiar de uma
servidora da época, uma advogada – que preferiu não se identificar – contou
que, curiosamente, naquele momento foi constatado que não havia de fato uma
norma que proibisse mulheres de usar calças. “Uma regra oculta, não sei.
Ninguém sabia explicar, mas o regramento oficial só previa normas sobre roupas
masculinas”, disse a advogada. Ela relatou ainda que há poucos anos, quando
ainda era estudante de Direito, foi barrada em uma visita ao Superior Tribunal
de Justiça (STJ) por estar usando “calça muito justa, que parecia legging”.
Segundo ela, a análise da roupa foi feita por um segurança que passava no
segundo andar do prédio onde acontecem os julgamentos.
A mobilização das
servidoras ganhou força e foi endossada pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). No processo, as trabalhadoras do Tribunal alegavam
que a limitação do vestuário representava um “cerceamento do direito à
liberdade das mulheres”, garantido pelo ordenamento jurídico e pela
Constituição Federal. A OAB falava em “postura discriminatória”.
O Ministério Público
Federal (MPF), por outro lado, se manifestou contra a liberação do uso de
calças para mulheres. Ronaldo Bomfim dos Santos, subprocurador-geral que atuou
no caso, defendeu que as roupas “distinguiam os personagens” e que a saia
estava para a mulher assim como o terno e gravata estavam para o homem, a toga
para o juiz, a batina para o padre e o uniforme para o militar. Em sua
manifestação, o subprocurador recorreu ainda a dogmas religiosos cristãos para
defender a permanência da obrigatoriedade de saias e vestidos: “Se Deus não fez
o homem e mulher iguais é porque não quer que os sejam iguais”.
Mas o apelo das
servidoras foi atendido, por maioria de votos. Assim, três anos após o Senado,
em 2000, o STF autorizou que mulheres usassem calças compridas, além dos
vestidos ou saias, mas não sem o uso obrigatório de blazer compondo o ‘dress
code’.
A decisão foi tomada
em uma sessão administrativa, ocorrida em 3 de maio de 2000, onde só ministros
homens votaram. Isso porque, até aquele momento, em mais de um século de
existência, nenhuma mulher tinha ocupado uma cadeira de ministra do Supremo – o
que mudou meses depois, no final do mesmo ano 2000, quando Ellen Gracie foi
empossada ministra.
No meio jurídico,
quando a Suprema Corte do Judiciário toma uma decisão, diz que se abre um
precedente para que os demais tribunais do país sigam a mesma linha. Nesse
caso, porém, isso não ocorreu. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pioneiro no
tema, já não impunha que mulheres usassem só vestidos e saias. No Tribunal
Superior do Trabalho (TST) e no STJ a autorização ocorreu depois, mas o assunto
ainda rende discussões e, de tempos em tempos, mudanças nas normas sobre
vestimentas.
No STJ, a mudança mais
recente no código de vestimentas foi aprovada em fevereiro deste ano e gerou
muita polêmica. Entre as peças proibidas estavam calças justas tipo legging,
blusas sem manga e cropped (peça que deixa parte da barriga à mostra). A nova
regra não durou muito. Dois meses depois, em abril, foi suspensa pelo
corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, que também é ministro no
STJ. Salomão alegou que as exigências poderiam constranger o público feminino.
• Direito adquirido não foi direito
garantido
Seis anos após o STF
permitir que mulheres usassem calças compridas, além de vestidos e saias,
trabalhadoras, jornalistas e até visitantes que chegavam ao local continuavam
sendo barradas. Ex-assessoras e jornalistas que estavam frequentemente na Corte
contaram à Pública que as regras, por vezes, eram subjetivas e determinadas
pela segurança ou cerimonial.
Em 2006, já senadora
pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), a mesma Heloísa Helena, citada no
início da reportagem, causou desconforto no Supremo. Conhecida por usar calças
jeans e camiseta no plenário do Senado, ela foi ao STF acompanhar o julgamento
de uma ação proposta pelo seu partido. Vestindo seu “look” trivial de sempre, a
parlamentar só não foi barrada por recomendação da ministra Ellen Gracie. Ao
ser questionada por jornalistas, a senadora disse aos jornalistas que não sabia
da regra sobre as roupas.
O episódio foi
noticiado pela imprensa e efervescia outra vez a discussão sobre a patrulha das
vestimentas de mulheres, que começaram a levar reclamações para ministros, em
conversas informais. Meses após o episódio do jeans, a tradição foi quebrada.
Menos de um ano após
sua posse como ministra do STF, ocorrida em 21 de junho de 2006, Cármen Lúcia –
a segunda mulher a ocupar uma cadeira no Tribunal – decidiu colocar em prática
a regra deliberada sete anos antes. A ministra tinha ouvido queixas de mulheres
que davam expediente na Corte e as reclamações iam desde tamanho de vestido ou
saia até a cor da roupa.
Segundo contou à
Pública, em 14 de março de 2007 ela estava “determinada a quebrar com o
protocolo arcaico e obsoleto”. Cármen avisou aos pares que no dia seguinte iria
para o trabalho de calças compridas. E assim o fez. O anúncio atraiu olhares e
deixou a imprensa preparada para os registros. A ministra chegou ao plenário
usando um terninho preto e foi a primeira vez que uma mulher ministra
participou da sessão e votou usando calças compridas.
Em 2007, Cármen Lúcia
entrou de calça comprida no plenário do tribunal. Foi a primeira vez que uma
ministra do STF fez isso (Crédito: TV Justiça)
Uma jovem advogada –
com seus trinta e poucos anos – que assistia a sessão e testemunhou tudo,
descreveu o momento como “um dia de muita emoção” e disse que algumas mulheres
que lá estavam tiveram vontade de aplaudir Cármen Lúcia: “Com muita alegria eu
estava lá quando a primeira mulher entrou vestindo uma calça comprida. Ela não
foi a primeira ministra da Suprema Corte, mas foi a que fez a diferença. É
sempre importante a gente tentar fazer a diferença nos espaços que atua.
Naquele dia, a ministra Cármen Lúcia liberou as mulheres do Brasil todo para se
vestirem de forma digna, mas de calça. Uma coisa que chegou com 100 anos de
atraso”.
O gesto da ministra
Cármen Lúcia entrou para a história e ilustrou capas de jornais. Mas, na
prática, a ruptura com o antigo código de vestimenta foi sendo conquistada aos
poucos, ao longo dos anos. A mesma advogada que foi espectadora daquele momento
foi proibida, tempos depois, de entrar no plenário pois a manga curta do blazer
deixava à mostra quatro centímetros do seu punho: “Fui barrada uma vez no
plenário do Supremo porque minha calça era um pouco curta e aparecia o
calcanhar, e meu blazer era curto e aparecia meu punho. E o segurança mediu e
disse que aparecia mais de 4 centímetros do meu punho e eu não poderia entrar
no Tribunal. Tentei alegar que estava na moda, que a então presidente Dilma
Rousseff usava um modelo parecido, mas não adiantou. Tive que trocar de roupa
com minha estagiária porque eu ia fazer uma sustentação oral e não poderia
faltar”.
Tentar fazer a
diferença, no menor espaço que seja, foi o lema que conduziu a advogada Daniela
em sua trajetória profissional até 2023, quando chegou a vez dela ser
protagonista da história. Passados 16 anos, o blazer e a calça,
milimetricamente medidos, foram substituídos pela toga e Daniela Teixeira
passou a ser ministra do Superior Tribunal de Justiça.
• Congresso não estava preparado para
receber mulheres
O fato de o Judiciário
ter sido, de todos os três Poderes, aquele que mais demorou para romper com a
rigidez e exigências sobre o dress code feminino, não deu às mulheres eleitas
no Legislativo uma vida mais fácil.
Benedita da Silva
(PT-RJ) conta que quando chegou na Câmara para seu primeiro mandato, como
deputada Constituinte, não havia banheiros femininos. “A primeira dificuldade
que nós encontramos foi no plenário da Câmara, que não tinha banheiro feminino.
Isso era muito sério”.
O plenário da Câmara
ganhou seu primeiro banheiro feminino somente em 1987, ou seja, 27 anos depois
de sua inauguração. “Mas nós também tivemos dificuldade de ter a residência
funcional, porque muitos deputados que não eram reeleitos já passavam o apartamento
para outros homens recém eleitos. Eu, por exemplo, levei um tempo para
conseguir”, afirmou Benedita.
Ela ressalta que a
presença de mais mulheres, sobretudo mulheres negras, foi mudando o cenário com
o tempo e trouxe uma diversidade positiva para o Congresso. “Eu sempre procurei
ter uma boa vestimenta, mas tudo era dentro das minhas condições financeiras.
Hoje nós temos mais mulheres negras que se vestem igual a mim na Câmara. E [a
mudança] vai do cabelo até o modo de se vestir, de andar e falar, porque temos
diversidade”.
Ainda assim, a
deputada que já está em seu sexto mandato conta que presenciou situações
recentes em que colegas parlamentares foram barradas por não estarem “se
vestindo adequadamente”. “Vi mais situações fora, de nós irmos para o Supremo,
e dizerem que mulher de calça e sem blazer não podia entrar. Eu vi uma cena com
a Jandira Feghali [deputada federal pelo PCdoB do Rio] sendo barrada por estar
sem blazer. Ela disse para o segurança que nunca tinha usado isso na vida, que
nunca gostou, e a gente teve que fazer uma ‘guerrinha’ lá para conseguir
entrar”.
• Da construção do primeiro banheiro
feminino à aceitação de calças
• 1987: deputadas pressionam e conquistam a construção de um banheiro feminino no plenário e flexibilização nas regras de vestimentas;
• 1997: Senado passa a aceitar que mulheres usem calças no plenário e outros espaços da Casa;
• 2000: após processo movido por
servidoras do STF, o Tribunal também passa a aceitar o uso de calças compridas para mulheres, mas com a obrigatoriedade do uso de
blazer;
• 2007: ministra Cármen Lúcia usa calças em sessão, tornando-se a primeira mulher da Corte a usar a vestimenta no
plenário;
• 2016: Sob a pressão de mulheres parlamentares, Senado instala o primeiro banheiro
feminino em seu plenário.
• Ministras do TSE: “patrulha maior com
mulheres negras”
Edilene Lôbo e Vera
Lúcia, ministras do TSE, alertam que a “patrulha da moda” atua de forma ainda
mais rigorosa com mulheres negras. As duas foram as primeiras mulheres negras a
assumir uma cadeira de ministra na Corte Eleitoral.
“Já me pararam na
entrada do TJDFT [Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios], onde
eu ia sempre, seja para checar a roupa, pelo jeito que estava o meu cabelo. Os
seguranças me conheciam, mas não me viam como advogada”, contou à Pública a ministra
Vera.
A ministra Edilene
levanta a questão de que as regras rígidas sobre vestuário dificultam não
somente o acesso das mulheres aos espaços de poder, como também da população
mais pobre.
A dificuldade citada
pela ministra se revela em dados registrados por órgãos oficiais, que mostram a
desigualdade e sub-representação. Em cargos eletivos, seja no Legislativo ou
Executivo, dados do TSE mostram que de presidente da República a vereador, nenhum
cargo atinge uma porcentagem equilibrada de homens e mulheres entre os
ocupantes. O que mais se equilibra é o de segundo suplente de senador, com 44%
de mulheres.
No Judiciário a
situação se repete. A última pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) sobre o perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros, em
2018, mostrou que em nenhum dos cargos do Poder Judiciário a quantidade de
mulheres atingiu a porcentagem de 50%. O maior equilíbrio ocorre entre juízes
substitutos, primeiro cargo da carreira, com 44% de mulheres no posto. À medida
que a carreira evolui, a quantidade de mulheres diminui consideravelmente.
Atualmente, a instância mais alta da Justiça brasileira, o STF, possui 11
ministros, sendo 10 homens e apenas uma mulher.
O presidente Lula foi
bastante cobrado nas duas últimas oportunidades que teve de indicar novos
membros para a Corte – quando Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentaram.
Movimentos sociais, diversas entidades, organizações da sociedade civil e até parte
da base governista reivindicaram a indicação de mulheres, sobretudo de uma
mulher negra – fato que seria inédito no Supremo. No entanto, Lula acabou
optando por indicar homens para as duas vagas.
No último 8 de março,
dia Internacional da Mulher, a ministra Cármen Lúcia foi categórica ao afirmar
no plenário do Supremo que a possibilidade de construção conjunta muitas vezes
foi negada às mulheres. A magistrada conclui com uma frase forte, em referência
a diversas violências que a mulher ainda sofre na sociedade: “Dizem que fomos
silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas sempre
continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas”.
Fonte: Por Karla
Gamba, da Agencia Pública
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