segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Era da hiperconectividade levanta novos desafios para a saúde mental da população

A democratização da internet nas últimas décadas viabilizou uma característica inédita para a sociedade moderna: a hiperconectividade, transformando smartphones, tablets, computadores, notebooks e smartwatches em uma espécie de extensão do corpo e da mente humana. Embora relativamente recente, essa nova configuração social já tem impactos na saúde mental: estudos apontam que cerca de 7% da população mundial apresenta sinais de dependência da internet. O cenário tem evidenciado cada vez mais a necessidade de discutir os transtornos mentais a partir de uma perspectiva diferente, o da construção de novas estratégias de prevenção e do desenvolvimento de educação sobre o tema.

Recentemente, o caderno de psiquiatria da revista científica The Lancet criou uma comissão para explorar a relação entre o mau uso da internet, o sofrimento psíquico, os transtornos mentais e o desenvolvimento de novas políticas de saúde que contemplem essas demandas da sociedade. A mensagem é que é preciso agir – mas a tarefa não é simples.

“É um grande desafio estabelecer uma relação saudável com a tecnologia em um mundo cada vez mais digital”, avalia Elton Yoji Kanomata, psiquiatra e professor da pós-graduação em psiquiatria do Einstein. “Há pressões profissionais e sociais para que o indivíduo se mantenha digitalmente presente, o que prolonga essa hiperconectividade. E, embora a tecnologia ofereça inúmeras facilidades e permeie diversas esferas de nossas vidas, é preciso encontrar limites para ela também.”

•                        Efeitos da hiperconectividade no cérebro humano

Diferente dos dispositivos de navegação, o cérebro humano não foi programado para comportar dezenas de abas abertas ao mesmo tempo. Contudo, nos últimos anos, a tendência de dividir o foco entre múltiplas telas e atividades tem se tornado regra – uma ação conhecida como multitask. Mas, diferente do que muita gente pensa, isso não é uma habilidade boa: pesquisadores já alertam para possíveis prejuízos a longo prazo para quem transformou isso em rotina.

No estudo intitulado “Custos múltiplos do multitasking”, publicado no periódico Cerebrum em 2019, os autores afirmam que, ao dividir a atenção entre mais de uma tarefa por vez, os indivíduos quase sempre demoram mais para concluir uma tarefa e a executam com mais erros do que quando permanecem em uma tarefa. Além disso, ainda não se sabe ao certo o quanto o hábito impacta o processo de reter e integrar informações adquiridas dessa maneira.

Há ainda outra questão: o volume de informações por si só. De acordo com dados da Statista, o volume de dados criados, capturados, copiados e consumidos em todo o mundo saltou de 12.5 zettabytes em 2014 para 149 em 2024 e deve atingir a marca de 394 zettabytes até 2028 – um zettabyte equivale a um trilhão de gigabytes. É humanamente impossível consumir todo o conteúdo ao qual se é exposto diariamente, e o cérebro sente os efeitos dessa sobrecarga de informação, afirma Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP).

“O principal efeito é uma sensação de cansaço, já que o cérebro gasta muita energia e está sendo continuamente acionado para tentar dar conta de absorver o exagero de conteúdo a que nós o submetemos. Além disso, surge cada vez mais uma pressa na absorção da informação, com dificuldade crescente para aprofundamento”, reforça.

•                        Redes sociais e dependência química

Já as redes sociais atuam sobre um sistema neural diferente, o límbico, responsável pela sensação de prazer e satisfação. Em geral, ao longo do desenvolvimento humano na história, essa área do cérebro era ativada por atividades como alimentação, reprodução e interação social, inerentes à sobrevivência da espécie.

Hoje, na sociedade moderna, esse sistema encontra satisfação em outros nichos de atividades, como no ato de comprar, no uso de determinadas substâncias e na navegação nas redes sociais. Esses dois últimos, inclusive, não apenas ativam a mesma região cerebral, como compartilham outros mecanismos semelhantes, o que tem levantado um debate sobre a possível dependência das redes sociais.

“A experiência de pequenos, mas constantes estímulos prazerosos, pode modificar a forma como o sistema de recompensa no cérebro é ativado. Essa ativação ocorre por vias neuronais com a participação do neurotransmissor dopamina no circuito de recompensa no cérebro”, explica Kanomata.

De acordo com o especialista, especula-se ainda que a recorrência deste tipo de comportamento pode levar a um processo de sensibilização do circuito de recompensa. “Em outras palavras, assim como na dependência química e nos jogos, a pessoa precisará de estímulos cada vez mais intensos para sentir o mesmo nível de prazer, criando um comportamento adaptativo ruim que pode levar ao uso compulsivo de dispositivos digitais.”

Para além da dependência propriamente dita, a alta exposição a redes sociais tem sido associada a maiores riscos de desenvolvimento de depressão, ansiedade, transtornos alimentares e transtornos do sono.

“Uma das coisas que mais temos visto é, sobretudo em redes sociais, um aumento muito grande de comparação entre as pessoas, seguida de sentimentos negativos, desde inferioridade a inadequação”, explica Barros. “Todos sabemos que as redes são apenas um recorte da realidade mas, mesmo assim, esse recorte que só mostra vitórias traz a sensação de que só nós passamos por derrotas. Os jovens são especialmente afetados, e pesquisas mostram que as mulheres nessa faixa etária são especialmente vulneráveis”, lamenta Barros.

•                        Bets: velho transtorno, nova roupagem

A preocupação não se limita aos “novos transtornos” e recai também sobre as possibilidades de extrapolar para aqueles já bem conhecidos da psiquiatria. É o caso do vício em jogos de azar – ludopatia, ou jogo patológico –, que tem protagonizado debates públicos sobre a regulamentação das casas de apostas online conhecidas como bets.

Nesse caso, a facilidade de apostar de qualquer lugar, a qualquer hora do dia, uma vez que não há a limitação de horários comerciais ou estabelecimentos físicos, apresenta uma camada a mais para o desenvolvimento de uma potencial dependência ou mesmo piora de um quadro já existente.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha em dezembro de 2023, com cerca de dois mil brasileiros acima de 16 anos, por exemplo, revelou que 15% já realizaram algum tipo de aposta online. Dentre aqueles que jogaram, os jovens entre 16 e 24 anos são a maior parcela. Estudos recentes têm começado a contemplar o impacto que o ambiente digital tem provocado no transtorno como conhecido até então, especialmente diante do possível apelo e acesso para crianças e adolescentes.

“Há uma publicação no The Lancet em que o jogo é apontado como um problema de saúde pública e uma das discussões é justamente sobre a importância de uma regulamentação eficaz do jogo, conscientizando e restringindo o tempo dedicado ao jogo de azar. É uma tendência que temos observado no mundo todo”, diz Kanomata.

Nos Estados Unidos, o fenômeno das bets levou a criação de linhas telefônicas nacionais para prestar suporte aos dependentes, e foi possível constatar um aumento na demanda por parte de um público cada vez mais jovem.

•                        Construção de um futuro consciente

Além da regulamentação das plataformas digitais, como das bets e das próprias redes sociais – especialmente no que diz respeito ao acesso por menores de idade –, uma estratégia para lidar com a hiperconectividade apontada como fundamental é o investimento em educação voltada para mídias digitais na esfera individual e coletiva. Segundo a Unesco, “a literacia midiática e informacional proporciona um conjunto de competências essenciais para enfrentar os desafios do século XXI”.

Países como a Finlândia já implementam habilidades dessa natureza no currículo escolar e, recentemente, o Brasil visitou o país nórdico para trocar experiências nesse sentido. Outro destaque é a atualização do guia de recomendações sobre proteção digital e social da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Ambos os especialistas concordam que o caminho passa pelo autoconhecimento e pelo estabelecimento de limites, assim como o fortalecimento do debate social sobre o papel das telas e das redes sociais. “O mais importante é estarmos atentos a nosso padrão de uso. Eu estou usando mais do que gostaria? Estou trocando outras atividades interessantes pela tecnologia? Como me sinto após usar este ou aquele aplicativo? O autoconhecimento é o ponto de partida”, defende Barros.

Para Kanomata, além do investimento em políticas públicas de saúde e na prevenção, é importante estimular o pensamento crítico da população em relação aos dispositivos digitais.

“Não devemos nos restringir a regras como um limite de tempo ou a locais para o uso de telas. É importante também incentivar um senso crítico em relação aos impactos negativos das tecnologias, desenvolver habilidades sociais e de inteligência emocional e estimular hábitos além da vida digital, como atividade física, contato com a natureza, atividades manuais e que incentivem a criatividade”, conclui o psiquiatra do Einstein.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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