Era da
hiperconectividade levanta novos desafios para a saúde mental da população
A
democratização da internet nas últimas décadas viabilizou uma característica
inédita para a sociedade moderna: a hiperconectividade, transformando
smartphones, tablets, computadores, notebooks e smartwatches em uma espécie de
extensão do corpo e da mente humana. Embora relativamente recente, essa nova
configuração social já tem impactos na saúde mental: estudos apontam que cerca
de 7% da população mundial apresenta sinais de dependência da internet. O
cenário tem evidenciado cada vez mais a necessidade de discutir os transtornos
mentais a partir de uma perspectiva diferente, o da construção de novas
estratégias de prevenção e do desenvolvimento de educação sobre o tema.
Recentemente,
o caderno de psiquiatria da revista científica The Lancet criou uma comissão
para explorar a relação entre o mau uso da internet, o sofrimento psíquico, os
transtornos mentais e o desenvolvimento de novas políticas de saúde que
contemplem essas demandas da sociedade. A mensagem é que é preciso agir – mas a
tarefa não é simples.
“É
um grande desafio estabelecer uma relação saudável com a tecnologia em um mundo
cada vez mais digital”, avalia Elton Yoji Kanomata, psiquiatra e professor da
pós-graduação em psiquiatria do Einstein. “Há pressões profissionais e sociais
para que o indivíduo se mantenha digitalmente presente, o que prolonga essa
hiperconectividade. E, embora a tecnologia ofereça inúmeras facilidades e
permeie diversas esferas de nossas vidas, é preciso encontrar limites para ela
também.”
• Efeitos da
hiperconectividade no cérebro humano
Diferente
dos dispositivos de navegação, o cérebro humano não foi programado para
comportar dezenas de abas abertas ao mesmo tempo. Contudo, nos últimos anos, a
tendência de dividir o foco entre múltiplas telas e atividades tem se tornado
regra – uma ação conhecida como multitask. Mas, diferente do que muita gente
pensa, isso não é uma habilidade boa: pesquisadores já alertam para possíveis
prejuízos a longo prazo para quem transformou isso em rotina.
No
estudo intitulado “Custos múltiplos do multitasking”, publicado no periódico
Cerebrum em 2019, os autores afirmam que, ao dividir a atenção entre mais de
uma tarefa por vez, os indivíduos quase sempre demoram mais para concluir uma
tarefa e a executam com mais erros do que quando permanecem em uma tarefa. Além
disso, ainda não se sabe ao certo o quanto o hábito impacta o processo de reter
e integrar informações adquiridas dessa maneira.
Há
ainda outra questão: o volume de informações por si só. De acordo com dados da
Statista, o volume de dados criados, capturados, copiados e consumidos em todo
o mundo saltou de 12.5 zettabytes em 2014 para 149 em 2024 e deve atingir a
marca de 394 zettabytes até 2028 – um zettabyte equivale a um trilhão de
gigabytes. É humanamente impossível consumir todo o conteúdo ao qual se é
exposto diariamente, e o cérebro sente os efeitos dessa sobrecarga de
informação, afirma Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
(HC-FMUSP).
“O
principal efeito é uma sensação de cansaço, já que o cérebro gasta muita
energia e está sendo continuamente acionado para tentar dar conta de absorver o
exagero de conteúdo a que nós o submetemos. Além disso, surge cada vez mais uma
pressa na absorção da informação, com dificuldade crescente para
aprofundamento”, reforça.
• Redes sociais e
dependência química
Já
as redes sociais atuam sobre um sistema neural diferente, o límbico,
responsável pela sensação de prazer e satisfação. Em geral, ao longo do
desenvolvimento humano na história, essa área do cérebro era ativada por
atividades como alimentação, reprodução e interação social, inerentes à
sobrevivência da espécie.
Hoje,
na sociedade moderna, esse sistema encontra satisfação em outros nichos de
atividades, como no ato de comprar, no uso de determinadas substâncias e na
navegação nas redes sociais. Esses dois últimos, inclusive, não apenas ativam a
mesma região cerebral, como compartilham outros mecanismos semelhantes, o que
tem levantado um debate sobre a possível dependência das redes sociais.
“A
experiência de pequenos, mas constantes estímulos prazerosos, pode modificar a
forma como o sistema de recompensa no cérebro é ativado. Essa ativação ocorre
por vias neuronais com a participação do neurotransmissor dopamina no circuito
de recompensa no cérebro”, explica Kanomata.
De
acordo com o especialista, especula-se ainda que a recorrência deste tipo de
comportamento pode levar a um processo de sensibilização do circuito de
recompensa. “Em outras palavras, assim como na dependência química e nos jogos,
a pessoa precisará de estímulos cada vez mais intensos para sentir o mesmo
nível de prazer, criando um comportamento adaptativo ruim que pode levar ao uso
compulsivo de dispositivos digitais.”
Para
além da dependência propriamente dita, a alta exposição a redes sociais tem
sido associada a maiores riscos de desenvolvimento de depressão, ansiedade,
transtornos alimentares e transtornos do sono.
“Uma
das coisas que mais temos visto é, sobretudo em redes sociais, um aumento muito
grande de comparação entre as pessoas, seguida de sentimentos negativos, desde
inferioridade a inadequação”, explica Barros. “Todos sabemos que as redes são
apenas um recorte da realidade mas, mesmo assim, esse recorte que só mostra
vitórias traz a sensação de que só nós passamos por derrotas. Os jovens são
especialmente afetados, e pesquisas mostram que as mulheres nessa faixa etária
são especialmente vulneráveis”, lamenta Barros.
• Bets: velho transtorno,
nova roupagem
A
preocupação não se limita aos “novos transtornos” e recai também sobre as
possibilidades de extrapolar para aqueles já bem conhecidos da psiquiatria. É o
caso do vício em jogos de azar – ludopatia, ou jogo patológico –, que tem
protagonizado debates públicos sobre a regulamentação das casas de apostas
online conhecidas como bets.
Nesse
caso, a facilidade de apostar de qualquer lugar, a qualquer hora do dia, uma
vez que não há a limitação de horários comerciais ou estabelecimentos físicos,
apresenta uma camada a mais para o desenvolvimento de uma potencial dependência
ou mesmo piora de um quadro já existente.
Uma
pesquisa feita pelo Instituto Datafolha em dezembro de 2023, com cerca de dois
mil brasileiros acima de 16 anos, por exemplo, revelou que 15% já realizaram
algum tipo de aposta online. Dentre aqueles que jogaram, os jovens entre 16 e
24 anos são a maior parcela. Estudos recentes têm começado a contemplar o
impacto que o ambiente digital tem provocado no transtorno como conhecido até
então, especialmente diante do possível apelo e acesso para crianças e
adolescentes.
“Há
uma publicação no The Lancet em que o jogo é apontado como um problema de saúde
pública e uma das discussões é justamente sobre a importância de uma
regulamentação eficaz do jogo, conscientizando e restringindo o tempo dedicado
ao jogo de azar. É uma tendência que temos observado no mundo todo”, diz
Kanomata.
Nos
Estados Unidos, o fenômeno das bets levou a criação de linhas telefônicas
nacionais para prestar suporte aos dependentes, e foi possível constatar um
aumento na demanda por parte de um público cada vez mais jovem.
• Construção de um futuro
consciente
Além
da regulamentação das plataformas digitais, como das bets e das próprias redes
sociais – especialmente no que diz respeito ao acesso por menores de idade –,
uma estratégia para lidar com a hiperconectividade apontada como fundamental é
o investimento em educação voltada para mídias digitais na esfera individual e
coletiva. Segundo a Unesco, “a literacia midiática e informacional proporciona
um conjunto de competências essenciais para enfrentar os desafios do século
XXI”.
Países
como a Finlândia já implementam habilidades dessa natureza no currículo escolar
e, recentemente, o Brasil visitou o país nórdico para trocar experiências nesse
sentido. Outro destaque é a atualização do guia de recomendações sobre proteção
digital e social da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Ambos
os especialistas concordam que o caminho passa pelo autoconhecimento e pelo
estabelecimento de limites, assim como o fortalecimento do debate social sobre
o papel das telas e das redes sociais. “O mais importante é estarmos atentos a
nosso padrão de uso. Eu estou usando mais do que gostaria? Estou trocando
outras atividades interessantes pela tecnologia? Como me sinto após usar este
ou aquele aplicativo? O autoconhecimento é o ponto de partida”, defende Barros.
Para
Kanomata, além do investimento em políticas públicas de saúde e na prevenção, é
importante estimular o pensamento crítico da população em relação aos
dispositivos digitais.
“Não
devemos nos restringir a regras como um limite de tempo ou a locais para o uso
de telas. É importante também incentivar um senso crítico em relação aos
impactos negativos das tecnologias, desenvolver habilidades sociais e de
inteligência emocional e estimular hábitos além da vida digital, como atividade
física, contato com a natureza, atividades manuais e que incentivem a
criatividade”, conclui o psiquiatra do Einstein.
Fonte:
Futuro da Saúde
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