Pierpaolo
Cruz Bottini: Algumas notas sobre o crime de abolição do Estado democrático de
Direito
A
Polícia Federal indiciou, na semana passada, o ex-presidente Jair Bolsonaro, os
generais Braga Netto e Augusto Heleno, e outros ex-integrantes do governo pela
prática dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, de
golpe de Estado, e pela constituição de uma organização criminosa de caráter
terrorista.
Os
amores e ódios que cercam os personagens inflamaram debates sobre a existência
ou não de crime, seu caráter e as possíveis penas em caso de condenação.
Palpites jurídicos desfilam por lives, entrevistas e seminários, juristas
consistentes ou de ocasião discorrem sobre o conceito de tentativa, de concurso
de agentes e de outros temas jurídicos de nem sempre fácil apreensão.
O
presente artigo não tem o objetivo de superar controvérsias, nem seu autor de
ser neutro ou imparcial. Trata-se de mais uma contribuição, dentre tantas, para
a análise jurídica dos fatos.
A
questão central parece ser se os fatos descritos pela Polícia Federal podem
caracterizar o crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito,
previsto no artigo 359-L do Código Penal: “tentar, com emprego de violência ou
grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo
o exercício dos poderes constitucionais”. Não será discutido o delito de golpe
(artigo 359-M do CP) porque há diversas questões que envolvem essa prática que
merecem um artigo a parte.
O
crime de abolição do Estado de Direito tem a tentativa como elemento central.
Tentar é um termo técnico. Segundo o Código Penal, é o ato de iniciar a
execução do delito e não a terminar por circunstâncias alheias à vontade do
agente. Aquele que planeja ou prepara um crime, por exemplo, pensando em sua
prática, comprando a arma ou o veneno com o qual atacará a vítima, mas não
inicia a execução, não tentou algo, não é punido, a não ser que essa preparação
seja prevista como crime autônomo em algum outro trecho da lei. Já quem inicia
a execução do delito (por exemplo, aponta uma arma com objetivo de matar,
quebra o vidro do veículo para de subtrair um celular) e não o consuma devido à
fatores alheios à sua vontade (errou o tiro, foi surpreendido pela chegada da
polícia), tentou o crime e será punido – algumas vezes com uma pena reduzida,
outras não, a depender do caso.
Definir
a fronteira entre os atos preparatórios impuníveis e o início da execução que
caracteriza a tentativa não é tarefa fácil, ainda mais em delitos contra bens
jurídicos não individuais, como é o caso das instituições democráticas. Para
Nelson Hungria, a tentativa supõe uma situação de perigo, uma probabilidade de
dano a um bem jurídico penalmente protegido. Zaffaroni e Nilo Batista também
mencionam a criação um perigo objetivo para o bem jurídico como a fronteira
entre o ato preparatório e o início da execução. Roxin ensina que a tentativa
acontece quando há uma atuação próxima àquela descrita na letra da lei,
realizada com intenção de praticar o crime. Para Eduardo Viana, o começo da
tentativa se dá se o autor executa uma ação que está de tal modo vinculada à
ação típica que não existem atos parciais intermediários entre o seu
comportamento e a realização do tipo.
A
conjugação desses critérios indica que haverá tentativa quando a conduta cria
um risco concreto para o bem jurídico protegido pela norma por meio de uma
atuação próxima ou vinculada àquela descrita na lei.
No
caso em análise, o bem jurídico protegido é o Estado democrático de Direito,
dificilmente é colocado em perigo concreto por um ato isolado, praticado por
uma única pessoa. Em regra, o risco para as instituições democráticas exige
atos praticados por um conjunto de agentes, com capacidade institucional ou
material de ação.
A
questão é: até onde deve ir a atividade desse grupo para que os atos
preparatórios se transformem em tentativa. Certamente não é necessário aguardar
tanques nas ruas e baionetas apontadas para os poderes instituídos para
reconhecer o início da execução. As quedas das Bastilhas são sempre antecedidas
por tramas, manuscritos, convencimentos, reuniões, monitoramentos, atos cuja
periculosidade para a democracia não salta aos olhos quando tomados
individualmente, mas que transparece quando percebido o conjunto da obra.
Razão
está com alguns apoiadores do ex-presidente, quando afirmam que o ato de
planejar, rascunhar ou pensar no golpe de Estado não é punível. Com efeito,
rabiscar uma estratégia para colocar em xeque a fiabilidade das urnas
eletrônicas, desestabilizar o sistema político e tomar o poder força pode ser
uma ideia absurda e perigosa, mas não um crime.
Spacca
Mas,
quando esses rascunhos se transformam em minutas de decretos para a supressão
da normalidade democrática, quando passam das gavetas às mãos de um presidente
da República e seus assessores diretos, e são apresentados em reuniões com
militares de alta patente, as coisas mudam de figura.
Mudam
ainda mais quando o plano de questionar a integridade do sistema eleitoral se
transfigura em entrevistas reais, em lives para milhares de pessoas, em
apologias em carros de som, em incitações a manifestantes acampados diante de
quartéis, e em reuniões com representantes de governos internacionais, dentro
de repartições públicas. Ficam mais graves quando o grupo faz reuniões com os
comandantes das Forças Armadas para planejar o golpe, usa redes sociais para
intimidar reticentes, dificulta a divulgação de relatórios oficiais sobre a
fiabilidade das urnas, usa dados sabidamente falsos para instruir pedidos de
verificação extraordinária da votação, interage com manifestantes por meio de
assessores e de financiadores para manter mobilizações populares, cujo desfecho
lamentável foi o fechamento de estradas e os atos violentos de 8 de janeiro.
O
relatório policial aponta ainda o monitoramento de membros do STF, campanas,
discussão sobre homicídios, impressão de estratégias de emboscadas dentro do
Palácio do Planalto. Não por acaso, no dia das eleições, agentes da Polícia
Rodoviária Federal realizaram inúmeras blitzes, e pararam mais de 600 ônibus
usados por eleitores para se dirigir aos locais de votação, aparentemente com
ordens superiores, gerando o tumulto planejado por alguns membros do grupo.
Se
há uma fronteira entre atos preparatórios e início de execução, ela parece ter
sido de longe ultrapassada. As instituições democráticas estiveram em perigo.
Por mais inábil que fosse o grupo, eram agentes públicos de alto escalão, com
acesso a informações e poder de comando. Por mais absurdas que fossem suas
ações, elas poderiam abalar a confiança no sistema eleitoral, criar o caos
institucional, e acarretar a supressão do Estado de Direito.
Foucault
dizia que o grotesco é um dos elementos essenciais à soberania arbitrária. O
mesmo pode ser dito das tentativas de alcançá-la. Ser grotescas não as torna
menos graves. Em março de 1964, parecia ridículo que um general de Minas Gerais
marchasse com uma pequena tropa em direção ao Rio de Janeiro para depor um
governo democraticamente eleito. Deu no que deu.
A
falta de habilidade mental e material dos agentes nunca foi argumento para
afastar a punição da tentativa. O mau atirador não deixa de responder por
tentativa de homicídio porque errou o alvo, assim como o estelionatário inábil
que tentou uma fraude é punido, apesar de sua incompetência. A sorte da vítima
de estar diante de um algoz incapaz é circunstancial, não exclui a pena.
Portanto,
parece evidente o início da execução da abolição do Estado democrático de
Direito.
• Desistência ou fracasso?
A
segunda questão relevante: se um grupo coloca em risco as instituições
democráticas e depois e desiste de seguir adiante com o plano por sua própria
conta, a conduta é típica ou punível?
O
Código Penal prevê que quem desiste de prosseguir na execução ou impede que o
resultado se produza, só responde pelos atos já praticados. Em outras palavras,
o desistente não é punido.
Há
quem diga que essa regra é irrelevante para os crimes que preveem expressamente
a punição da forma tentada, como é o caso do delito em análise. O resultado
seria o próprio início da execução, e qualquer desistência seria posterior à
sua realização, portanto, irrelevante. Nesse caso, os integrantes do grupo
insurgente de Jair Bolsonaro responderiam pelo delito, mesmo que tivessem
desistido de sua prática após o início da execução.
Por
outro lado, é possível defender o contrário, que a punição pela tentativa,
mesmo nesses crimes, exige demonstrar que a não consumação do crime se deveu a
circunstâncias alheias à vontade do agente, que o impedimento do resultado foi
estranho ao desejo do autor, ou seja, que não se tratou de uma desistência
voluntária.
Nesse
caso, seria preciso olhar mais de perto os fatos descritos pela Polícia Federal
para compreender a razão da interrupção da execução dos planos de abolição do
Estado democrático. Pelo relatório apresentado, a ruptura da ordem democrática
só não ocorreu devido ao fracasso do grupo insurgente. A execução só não foi
adiante pela falta de apoio de chefes militares importantes e pela baixa adesão
popular à teoria das urnas fraudadas.
Fracasso
não é desistência. Quem invade o domicílio de outro outro para furtar joias e
foge ao não conseguir dominar o segurança ou desligar o alarme não desiste
voluntariamente, e é punido por tentativa de furto. Quem atira em sua vítima e
erra o alvo não desiste do crime, e responde por tentativa de homicídio.
Para
Roxin, não existe desistência na tentativa fracassada, porque a desistência é
uma reversão da colocação em perigo do bem jurídico, e não é possível reverter
um perigo que já não existe diante do fracasso. Hungria, citando Frank, expõe
que a desistência é voluntária quando o agente pode dizer “não quero
prosseguir, embora pudesse fazê-lo”, e é involuntária quando tem que dizer “não
posso prosseguir, ainda que o quisesse”.
O
relatório da Polícia Federal aponta que o grupo de insurgentes manteve a
esperança de reverter o aparente fracasso da estratégia até o fim do mandato de
Jair Bolsonaro. Não desiste quem espera o resultado e se frustra com a sua não
ocorrência.
Em
suma, o relatório aponta para uma tentativa de abolir o Estado democrático de
Direito, e por isso deve responder o grupo insurgente.
Isso,
por óbvio, não é suficiente para a condenação. Há muito a ser discutido. Os
indícios devem ser provados. A responsabilidade de cada integrante do grupo
deve ser medida de acordo com seus atos, sua função e a relevância
institucional do cargo ocupado. As defesas devem ser apreciadas com a mesma
atenção que as acusações, em um processo penal pautado pela presunção da
inocência e pelo contraditório.
Um
Estado democrático de Direito funciona quando são assegurados os direitos
fundamentais previstos na Constituição para todos, mesmo para aqueles que
pretenderam sua abolição.
• "Brain rot" é
a atrofia mental causada pelo consumo de lixo, como esse vídeo da Marinha. Por
Moisés Mendes
A
expressão do ano, segundo o dicionário Oxford, é “brain rot”, que está sendo
traduzida pelo que é: podridão cerebral. É uma alusão aos danos mentais
produzidos por conteúdos da internet considerados rasos, simplificadores,
medíocres ou apenas podres.
Querem
um exemplo de agora, disponível no mesmo dia em que a expressão escolhida pela
universidade foi anunciada? Vejam o vídeo da Marinha divulgado com o pretexto
de que é parte das festividades do Dia do Marinheiro, que só acontecerão em 13
de dezembro.
É
uma porcaria, com boas contribuições para que os cérebros assimiladores de
bobagens fiquem ainda mais apodrecidos. Como quase todos os vídeos produzidos
pela extrema direita. Como os ‘conteúdos’ criados pelos que reinventam o país
paralelo do fascismo.
Simplificam
uma ideia que não exige grande capacidade de reflexão e passam a “verdade” do
momento, não apenas rasa, mas com componentes de mentira e de ofensa. É o caso
do vídeo da Marinha.
O
filme mostra militares da força em simulações de combate, enquanto civis
surfam, viajam, tomam banho de mar, dançam, praticam ioga, festejam
aniversário. Os civis são o alvo.
O
resumo simplificador é este: enquanto vocês se divertem, nós estamos na
batalha. Mas o vídeo é um game. A Marinha brasileira não se envolve em
operações militares reais desde a Segunda Guerra.
E o
final do vídeo é um deboche, quando uma militar diz, referindo-se a tudo que
foi visto: “Privilégio? Vem pra Marinha”. É uma simplificação grosseira.
Está
aí o exemplo de conteúdo que atrofia pensamentos. É mais uma produção destinada
aos cérebros que tudo aceitam, desta vez com o carimbo institucional do poder
fardado.
É
lixo usado como arma virtual contra possíveis cortes em privilégios dos
militares de todas as forças, como parte do pacote que o governo enviará ao
Congresso.
A
Marinha produziu um vídeo sobre realidade paralela, com pessoas que apenas se
divertem, em contraste com soldados que se matam pelo Brasil. Vamos repetir: é
mentira. O brasileiro trabalha muito.
Não
pode ser aceita a desculpa de que a Marinha quis dizer que está sempre ativa
para que os civis possam levar a vida. O que a Marinha está dizendo é que vai à
luta (mas que luta?), enquanto o brasileiro vagabundeia. E se for o inverso?
Por que o vídeo não mostra civis trabalhando?
A
Marinha, para quem já se esqueceu, teve o único comando das Forças Armadas
alinhado com Bolsonaro até o fim da tentativa de golpe depois da eleição de
Lula, enquanto Exército e Aeronáutica saltavam fora.
A
Marinha, mesmo sob novo comando, continua alinhada à extrema direita
bolsonarista? Continua desafiando Lula com vídeos que apodrecem cérebros?
Colocando um ‘sósia’ de Fernando Haddad com capacete e rastejando?
O
vídeo é, para simplificar e para que seja entendido pela extrema direita, uma
merda de um minuto e 16 segundos. O efeito é conhecido. Brain rot é o cérebro
atrofiado por consumir merda virtual.
Fonte:
Brasil 247
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