segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Uruguai: Os novos desafios da esquerda

Emoção. Essa palavra resume o que senti ao vivenciar o resultado das eleições uruguaias neste domingo, 24 de novembro. Ao sair da minha casa no centro de Montevidéu e caminhar em direção à rambla da Ciudad Vieja, onde ocorreriam as comemorações em frente ao NH Hotel, fui envolvido por uma sensação profunda e marcante. As ruas estavam vibrantes, tomadas por pessoas celebrando, mas não de maneira superficial. Era uma festa genuína, carregada de um significado profundo, refletindo o retorno da esquerda ao poder em um subcontinente frequentemente à mercê da ascensão da extrema direita e do autoritarismo.

Diante disso, recordo-me dos discursos de Che Guevara na Universidad de la República, a única e mais antiga universidade pública do Uruguai, em 1961: “Vocês tem algo que precisa ser cuidado, que é justamente a possibilidade de expressar suas ideias; a possibilidade de avançar através dos canais democráticos [..]; a possibilidade, em suma, de criar condições que todos esperamos que um dia sejam alcançadas na América, para que todos possamos ser irmãos, para que não haja exploração do homem pelo homem nem continue a exploração do homem pelo homem”. Um ideal que segue vivo na sociedade uruguaia. Quando cheguei ao local onde os presidentes e vice-presidente eleitos, Yamandú Orsi e Carolina Cosse, discursaram, fui surpreendido pela quantidade de pessoas. As ruas estavam completamente congestionadas, e o espaço estava abarrotado. Parecia que toda a capital, com seus modestos 1,3 milhões de habitantes, estava ali. Pode parecer uma ilusão, mas a força do povo nas ruas era inegável.

O triunfo de Yamandú Orsi no segundo turno foi o desfecho de uma intensa batalha democrática, na qual duas figuras centrais do cenário político uruguaio representaram projetos de nação profundamente distintos. De um lado, Yamandú Orsi, candidato da Frente Ampla, ex-prefeito de Canelones e apadrinhado pelo carismático ex-presidente Pepe Mujica, simbolizava a continuidade das pautas progressistas que marcaram os anos de governo da coalizão de esquerda (2005-2020). Do outro, Álvaro Delgado, do Partido Nacional, ex-secretário da Presidência do atual governo de Luis Lacalle Pou, representava a coalizão de direita, prometendo aprofundar as reformas neoliberais e consolidar uma política econômica voltada para o mercado.

A conquista de Orsi foi resultado de uma construção paciente e estratégica, alicerçada em um engajamento político intenso e no ativismo que mobilizou jovens, trabalhadores, sindicatos e organizações sociais em todo o país. A Frente Ampla, que passou por um período de autocrítica e reorganização após a derrota de 2019, conseguiu recuperar sua capacidade de inspirar esperança e unir diferentes setores da sociedade. A campanha foi marcada por debates acalorados, caminhadas em bairros populares, encontros com lideranças comunitárias e um discurso que apelava tanto à memória das conquistas sociais passadas quanto ao desejo de renovação. O engajamento das bases foi fundamental: ativistas percorreram bairros, de porta em porta, estavam nas ruas explicando propostas e, além disso, os atos públicos transformaram-se em eventos culturais que mesclavam política e arte, criando um ambiente participativo.

A disputa do segundo turno foi uma das mais acirradas da história recente do Uruguai. Com 98% das urnas apuradas, a corte eleitoral apontava 49,8% dos votos para Orsi, contra 45,9% para Delgado. Orsi superou Delgado por uma margem de apenas 3,9 pontos percentuais, consolidando uma virada que parecia improvável há apenas alguns meses, quando as pesquisas indicavam uma população dividida entre a continuidade das políticas de direita e a promessa de mudança da esquerda. A vitória foi conquistada voto a voto.

·        Desafios para o novo governo

A vitória de Yamandú Orsi ocorre em um momento delicado para o Uruguai, onde os desafios econômicos e sociais colocam à prova a capacidade de governar. Embora o país continue sendo um exemplo de estabilidade institucional e social na América Latina, essa solidez está sendo testada por questões estruturais que impactam o cotidiano da população. A dolarização parcial da economia, introduzida como uma estratégia para estabilizar o sistema financeiro e atrair investimentos, têm gerado dependência externa e criado barreiras significativas para a formulação de políticas redistributivas. Esse modelo, ao mesmo tempo que garante certa previsibilidade econômica, limita a autonomia do governo para implementar medidas que enfrentem as crescentes desigualdades.

O setor produtivo, que inclui pequenas indústrias e cooperativas, enfrenta sérias dificuldades para competir em um mercado globalizado que privilegia grandes players e exige níveis de competitividade que muitas empresas locais não conseguem alcançar. Apesar da força do setor agroexportador — um dos pilares da economia uruguaia e responsável por grande parte da geração de divisas —, sua alta eficiência tecnológica resulta em baixa absorção de mão de obra. Esse descompasso contribui para o aumento da desigualdade social, especialmente em regiões onde o emprego formal depende quase exclusivamente da agricultura ou da pecuária.

O governo direitista do atual presidente Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, agravou esses desafios ao implementar um conjunto de políticas de inspiração neoliberal que, embora promovidas como necessárias para modernizar a economia, aprofundaram a precarização de setores vulneráveis. Entre as medidas mais controversas está a Lei de Urgente Consideração (LUC), apresentada em 2020 ao Legislativo e chancelada pela população em um referendo em 2022, com uma diferença de apenas 1% entre os votos a favor e contra. Esse pacote legislativo abrangente enfraqueceu as regulações econômicas, de forma semelhante à Lei Ómnibus aplicada por Javier Milei a posteriori na Argentina, flexibilizando normas trabalhistas e restringindo direitos fundamentais, o que gerou ampla mobilização social contra sua aplicação. Apesar da resistência de sindicatos, movimentos sociais e da própria Frente Ampla, a LUC consolidou um marco normativo que Orsi encontrará dificuldades em desfazer, especialmente devido ao apoio que a lei ainda recebe de uma parte significativa da elite econômica e política.

Para Yamandú Orsi, o desafio será monumental: ele precisará equilibrar a reversão de medidas que consolidaram a desigualdade e a exclusão social com a necessidade de preservar a estabilidade econômica e atrair investimentos estrangeiros, essenciais para sustentar o crescimento. Sua estratégia inicial deverá incluir a rearticulação de alianças com os setores produtivos, promovendo a diversificação econômica e o fortalecimento de pequenas e médias empresas, ao mesmo tempo que avança em políticas sociais que retomem o legado redistributivo da Frente Ampla. Além disso, Orsi terá que lidar com um cenário internacional incerto, marcado pela desaceleração econômica global e pela competição por mercados, exigindo uma diplomacia econômica robusta e voltada para o fortalecimento das cadeias produtivas regionais. Nesse contexto, o impasse no acordo entre o Mercosul e a União Europeia representa um desafio adicional. A negociação, que visa impulsionar o comércio e a integração, enfrenta dificuldades políticas e econômicas, particularmente no que diz respeito à proteção dos setores agrícolas e à implementação de regras ambientais. Nos últimos meses, a França tem bloqueado o avanço do acordo, que como costuma afirmar o presidente Lula, parece ser “página virada”.

·        A trajetória democrática do Uruguai

A democracia uruguaia possui raízes profundas que remontam ao século XIX, quando José Artigas (1765-1850), o herói nacional, idealizou uma república justa e igualitária, baseada em princípios de liberdade e autodeterminação para os povos. Artigas, com sua visão republicana e federalista, construiu as bases para um modelo político que buscava garantir os direitos dos mais vulneráveis e assegurar a soberania do país. Embora o caminho da democracia no Uruguai, desde sua independência em 1825, tenha sido marcado por interrupções, como golpes militares e períodos de ditadura, o país conseguiu se reerguer, consolidando uma tradição de respeito às instituições. Essa tradição resistiu ao longo dos anos, mesmo em tempos de grande turbulência, aproximando-se do que é considerado uma democracia plena.

Ao longo do século XX, a estabilidade política foi garantida por dois partidos históricos, o Partido Colorado (1836) e o Partido Nacional (1836), que dominaram o cenário político e institucional por quase 170 anos. Esses partidos, apesar de suas diferenças ideológicas, foram fundamentais na construção do sistema democrático do Uruguai. Ambos garantiram a alternância no poder e estabeleceram uma cultura política de negociação e consenso, que, embora tenha sido marcada por tensões e divisões, contribuiu para a estabilidade do regime democrático.

A Frente Ampla, fundada em 1971 como uma coalizão de forças progressistas, rompeu com a hegemonia desses partidos tradicionais ao integrar uma ampla gama de movimentos sociais, sindicatos e grupos de esquerda. Com uma agenda voltada para a justiça social e a democratização das estruturas políticas e econômicas, a Frente Ampla se consolidou como a principal força política de oposição, unificando ideologias diversas em torno de um projeto comum. A coalizão não apenas representou a resistência à ditadura militar (1973-1985), mas também se tornou a principal protagonista da redemocratização e da construção de um Estado de bem-estar social.

O auge dessa trajetória aconteceu em 2004, com a eleição de Tabaré Vázquez, o primeiro presidente da Frente Ampla. Vázquez, com seu estilo pragmático e conciliador, foi capaz de manter a estabilidade econômica e promover políticas sociais inovadoras, que incluíam programas de saúde e educação de ampla abrangência, além de uma agenda de inclusão social. A vitória de Pepe Mujica em 2009, seu sucessor, consolidou ainda mais o caráter progressista do país. Mujica, um ex-guerrilheiro tupamaro que se tornou um símbolo de humildade e ética, conduziu o Uruguai em um período de transformações históricas, que incluíram a legalização do aborto, do casamento igualitário e a regulamentação da maconha, colocando o país como um exemplo mundial de progressismo.

No entanto, após 15 anos de governos consecutivos da Frente Ampla, a crise econômica global, marcada pela desaceleração do crescimento e pelo aumento do desemprego e das desigualdades sociais, abriu espaço para o retorno da direita ao poder. Em 2019, a vitória de Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, representou um divisor de águas, encerrando o ciclo de governos progressistas. Lacalle Pou assumiu a presidência com uma agenda focada em austeridade fiscal, cortes de gastos públicos e privatizações, buscando garantir a estabilidade econômica do país em um cenário internacional de incertezas. Sua gestão, embora popular em alguns setores da sociedade, também foi marcada por críticas da oposição e de movimentos sociais, que apontaram o retrocesso em algumas das políticas sociais e direitos conquistados nos governos anteriores.

·        Um futuro a ser construído

A vitória de Yamandú Orsi não seria possível sem a profunda autocrítica realizada pela Frente Ampla após a derrota de 2019. Reconhecendo os erros de gestão e a desconexão com algumas demandas da população, o partido promoveu um processo interno de reflexão e renovação, buscando reaproximar-se de suas bases históricas. Esse movimento incluiu não apenas uma rearticulação de lideranças, mas também uma estratégia de engajamento que fortaleceu a relação com sindicatos, movimentos sociais, juventudes e comunidades locais.

A mensagem da vice-presidente eleita Carolina Cosse em seu discurso da vitória foi clara: “Não faremos distinções, não seremos rancorosos. Respeitaremos todas as opiniões porque o Uruguai somos todos nós”. Essa promessa de união ressoa como um convite para toda a América Latina. O caminho será difícil, mas, como Orsi afirmou em sua fala, “não há futuro se colocarmos um muro às ideias”.

A mobilização das bases foi central na campanha de Orsi, marcada por um discurso que uniu críticas ao neoliberalismo e compromisso com pautas populares, como a ampliação de direitos sociais e o combate às desigualdades. Essa revitalização não apenas impulsionou a participação de antigos apoiadores, mas também atraiu novos segmentos da sociedade, criando um movimento coletivo que se refletiu nas ruas, nos bairros e nas redes sociais, consolidando a Frente Ampla como uma força política renovada e em sintonia com o momento histórico. Como destacou o presidente Lula em sua mensagem de congratulações, essa é uma vitória de toda a América Latina e do Caribe, reafirmando a importância da integração regional e da luta conjunta por um desenvolvimento justo e sustentável.

Se o passado recente do Uruguai é uma lição de como o progresso pode ser conquistado, o futuro dependerá da habilidade de Orsi e da Frente Ampla de traduzir essa vitória em avanços concretos. No coração da América Latina, o “pequeno” Uruguai tem o potencial de mostrar, mais uma vez, que grandes transformações começam com passos seguros e a coragem de um povo unido.

 

¨      Buenos Aires será palco da extrema-direita com apoio de Milei e Trump. Por Márcia Carmo

O presidente da Argentina, Javier Milei, será o anfitrião da Conferência da Ação Política Conservadora (CPAC), na quarta-feira que vem (4/12), num hotel do bairro de Puerto Madero, em Buenos Aires. A lista de presentes (ou que falarão) via internet inclui nomes diretamente ligados ao presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump. Entre eles, segundo os organizadores, estão a esposa de um dos filhos de Trump, Lara Trump, uma das presidentes do comitê nacional do Partido Republicano e sempre orgulhosa do sogro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o deputado espanhol Santiago Abascal, líder do partido Vox.

Os ultraconservadores informaram à imprensa local que o ex-presidente Jair Bolsonaro também será um dos oradores. Como ele não pode sair do Brasil, é esperado que realize videoconferência. No mês passado, o Supremo Tribunal Federal manteve a decisão de proibir o presidente de viajar para o exterior. “Venham e acompanhem a defesa das ideias da liberdade, o combate ao socialismo e a doutrina da mão rigorosa contra a insegurança pública”, afirmou a CPAC Argentina em suas redes sociais.

A extrema-direita está eufórica com a eleição de Trump e entende que a CPAC é uma referência para o presidente eleito. A cartilha da CPAC é conhecida e reiterada a cada reunião do grupo. Foi assim, neste ano, em Maryland, nos Estados Unidos, e no Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Milei quer ser o elo da extrema-direita na América Latina e a “voz privilegiada”, dizem no seu governo, que conversa com Trump. E sua própria cartilha é alinhada com a CPAC.

Nesta semana, foi revelado que ele pretende acabar com as cotas por gênero no Congresso Nacional. Na campanha à Casa Rosada, ele negava a existência de desigualdade salarial e de oportunidades entre homens e mulheres. Continua pensando e agindo da mesma maneira. Ele e Trump também são negacionistas da mudança climática. A Argentina chegou a retirar a delegação do país no meio da cúpula climática da COP29, em Baku, no Azerbaijão.

Mas a geopolítica atual tem outras vertentes. O presidente eleito do Uruguai, Yamandú Orsi, da Frente Ampla, fez questão de ter o Brasil como seu primeiro destino internacional após ter sido eleito, no domingo passado. Orsi disse, mais de uma vez, que seu objetivo é um diálogo fluido e constante com o presidente Lula. Os dois se reuniram, nesta sexta-feira, em Brasília.

Nesta semana, na sexta-feira (6/12), haverá reunião de cúpula do Mercosul em Montevidéu, no Uruguai. Lula e Milei devem se encontrar (esbarrar?) novamente. Hoje, o mapa da América Latina reúne mais presidentes de esquerda – Brasil, México e Colômbia, por exemplo – do que de direita. Mas Milei está tentando ser o epicentro dos conservadores na região, apesar do forte incremento dos índices de pobreza no seu primeiro ano de governo e da queda de 3,5% da economia neste ano.

 

Fonte: Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva, em Outras Palavras/Brasil 247

 

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