sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Transparência pública na era da comunicação digital: novos significados e desafios

A promoção da transparência pública, resultado do provimento de informações de interesse público, atualizadas e de qualidade, é considerada um dos fundamentos e pilares das democracias representativas contemporâneas, sem a qual não é possível acompanhar as ações governamentais ou participar da tomada de decisão pública. É a divulgação de informações precisas, relevantes e atuais sobre as contas públicas, as políticas e recursos públicos que permite que os cidadãos fiscalizem e monitorem ações governamentais, formulem opiniões e atuem de maneira mais participativa na esfera pública.

A transparência, entretanto, não se restringe apenas à divulgação de informações públicas, mas de informações úteis, compreensíveis, que permitem a supervisão e a avaliação do objeto em questão: seja ele um órgão estatal, uma empresa pública, um ator político, servidores públicos, entre outros.

No que diz respeito ao contexto brasileiro, o país conta com previsões legais e marcos normativos que asseguram o provimento de informações claras e completas sobre o funcionamento do governo e suas instituições, bem como as atividades e tomadas de decisões dos parlamentares. Os órgãos públicos devem oferecer informações com qualidade assegurada por meio da transparência passiva e ativa, em seus portais ou por meio de pedidos de acesso à informação. Trata-se da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar 101, conhecida como LRF, de 2000) , da Lei da Transparência (Lei Complementar 131, de 2009) , e, por fim, da Lei de Acesso à Informação (Lei Complementar 12.527, conhecida como LAI, de 2011) , que destaca o uso da internet como forma de dar ampla divulgação de informações

A segunda década dos anos 2000 foi marcada pelo foco do debate e produção de pesquisas acadêmicas sobre as recém aprovadas FOIAs (Freedom of Information Acts) pelo mundo e sobre como governos poderiam ser mais transparentes, colaborativos e participativos por meio de iniciativas digitais fomentadas, por exemplo, pelo movimento Open Government Partnership, que surgiu em 2011, reúne hoje mais de 75 países  e desenvolveu um grupo de trabalho voltado especificamente à transparência legislativa. Àquela ocasião, o desafio da transparência pública versava, portanto, sobre a abertura de dados públicos e a promulgação de legislações que tornassem a transparência a regra e o sigilo, a exceção – o que, no Brasil, está previsto na LAI (2011). Aproximando-se de 2020, os desafios postos à administração pública e à transparência pública passaram a ser outros. Chamamos aqui a atenção para alguns deles:

(i) Como lidar com o grande volume de dados coletados hoje por plataformas e governos. O excesso de informação produzida traz consequências importantes. As redes de comunicação digital, especialmente as redes sociais digitais, têm capacidade de disseminação, velocidade e alcance sem precedentes. A chamada infodemia, termo usado pela Organização Mundial da Saúde durante a pandemia da Covid-19, típica de momentos emergenciais e tragédias, é caracterizada pelo aumento excessivo no volume e circulação de informações, corretas ou não, sobre um tema específico e pode:

(1) atrapalhar a confiança nas organizações oficiais;

(2) gerar dissonância cognitiva, caracterizada pela dificuldade de identificar as informações verdadeiras;

(3) atrasar o processo de tomada de decisão dos governos, profissionais e população em momentos de crise;

(iiGovernos de todos os níveis estão entre os maiores produtores de dados e muitos desses dados são abertos e estão disponíveis aos cidadãos e a quaisquer interessados por meio de iniciativas de dados abertos e resguardados pelo princípio da transparência pública. Todavia, entre os benefícios associados à abertura de dados públicos residem, ainda, os riscos de exposição e compartilhamento de dados pessoais dos cidadãos, além disso, vimos em muitos casos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ser usada como prerrogativa por órgãos públicos quando estes decidem não divulgar dados e informações que lhes foram solicitados. É preciso refletir se há e quais são as tensões e complementaridades entre a promoção da transparência pública e a proteção de dados pessoais, assegurada pela LGPD;

(iiiTecnologias de IA possibilitam o processamento de grandes volumes de dados em tempo real, auxiliando a administração pública a tomar decisões informadas e também a personalizar a prestação de serviços para diferentes segmentos da população. Em países como o Brasil, isso pode significar a democratização do acesso a serviços públicos, reduzindo as barreiras impostas por fatores geográficos e socioeconômicos . É fundamental, portanto, questionar como usar a IA para que ela sirva de instrumento para aumentar a transparência e a acessibilidade das informações governamentais, tornando a administração pública mais eficaz e os governos e Estados mais transparentes para a sociedade;

(ivSe, por um lado, os recursos digitais passaram a exercer papel ainda mais ativo no jogo político e a se configurar como ferramentas que contribuíram para o aumento da transparência pública, por outro lado, a contemporaneidade e as dinâmicas destes ambientes passaram a ter que lidar também com a rápida disseminação de narrativas fraudulentas (fake news) e discursos de ódio, de modo que agora faz-se tão importante quanto necessário lançar luz sobre dados e informações que elucidem a qualidade do debate público, que acontece nas plataformas de redes sociais. Garantir a abertura e o acesso a dados e informações sobre a saúde do ambiente digital, bem como compreender como acontece a circulação das informações são aspectos imprescindíveis para a produção de pesquisas e conhecimento sobre o debate público.

Desse modo, pode-se perceber que a transparência, sobretudo a partir do uso mais amplo do ambiente online para sua promoção, abrange novas práticas e, consequentemente, desafios que extrapolam sua definição inicial. Isso significa dizer que, em breve, será inadiável repensar a legislação que a regula, que tem se mostrado em alguns casos insuficiente para lidar com questões específicas, como a algoritmização da circulação de informação e a proteção de dados, a fim de que esse valor democrático siga contribuindo para a fiscalização das práticas e a credibilidade desse regime.

 

¨      Na era atual, a inteligência artificial desafia o dualismo cartesiano. Por Samuel Gallo

O avanço da inteligência artificial (IA) trouxe à tona questões profundas sobre o papel dessa tecnologia na sociedade, os limites da consciência e o que significa ser humano. Conceitos filosóficos e dilemas éticos que antes pertenciam apenas à ficção científica agora se aproximam cada vez mais do nosso cotidiano, desafiando-nos a reconsiderar nossa própria natureza e os limites que impomos às máquinas.

Com o medo de sermos substituídos, somos instigados a refletir até que ponto as máquinas podem desenvolver características que antes considerávamos exclusivamente humanas, como a capacidade de pensar, sentir, tomar decisões morais e estabelecer laços emocionais.

Nessa perspectiva, a separação entre mente e corpo introduz debates sobre a existência de consciência em uma entidade desprovida de corpo biológico, levando-me a pensar sobre o dualismo cartesiano proposto por René Descartes (1596-1650).

No século XVII, o filósofo francês argumentou que corpo e mente são duas substâncias distintas: enquanto o corpo – sujeito às leis da física – é uma substância extensa (res extensa), a mente seria uma substância pensante (res cogitans). Descartes considerava a mente como algo imaterial e livre, capaz de alterar ou até mesmo inibir comportamentos reflexivos que normalmente seriam respostas mecânicas a estímulos do ambiente. Além disso, associava as emoções à quantidade de “espíritos animais” liberados pelo cérebro em uma reação: quanto maior a liberação desses espíritos, mais intensa seria a emoção experimentada.

<><> Replicando o pensamento

No livro “Mente” (2007), o autor Eric Matthews explora a inteligência artificial como uma possível ameaça à exclusividade da mente humana e levanta questões importantes: “Poderia uma máquina, assim como um computador ou um robô, realmente ter uma mente? Ou será isso apenas uma confusão?”. Caso isso fosse possível, tais máquinas poderiam até mesmo superar as capacidades mentais humanas, alterando nossa percepção sobre nós mesmos?

Essas questões não apenas desafiam nossa compreensão do que é ter uma mente, mas também abrem novos debates sobre a nossa própria identidade enquanto seres humanos e desafia a teoria de Descartes, que acreditava que era impossível duvidar do pensamento, pois o próprio ato de duvidar já seria uma forma de pensar.

Desta forma, vejo a IA como uma tentativa de replicar o nosso pensamento, raciocínio e aprendizado, criando uma espécie de simulação desses processos, já que ela é programada por seres humanos através de algoritmos computacionais.

Em um sentido moderno, podemos compreender que o hardware atua como o “corpo” no contexto funcional, responsável por executar as tarefas, enquanto o software seria a “mente”, encarregada de processar informações por meio de códigos e linguagem de programação. É claro que essa analogia é imperfeita, pois a mente humana é mais do que um software, abrangendo consciência e experiências subjetivas – algo que a IA não possui.

<><> Além da ficção

Filmes e séries de ficção científica frequentemente exploram esses dilemas filosóficos citados. No filme “Ela” (2013), o protagonista desenvolve uma relação amorosa com uma IA, desafiando a concepção dualista e levando o telespectador a questionar se o pensamento e os sentimentos podem existir entre homem e máquina. Já em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2015), a questão da consciência artificial é explorada através da criação de Ava, uma robô humanoide que aparenta ter emoções e pensamentos próprios. A ciborgue Major Motoko, da animação japonesa “Ghost in the Shell – O Fantasma do Futuro” (1995), lida com a separação entre corpo e mente. Por fim, “Matrix” (1999) reflete sobre o limite entre a realidade física e a percepção mental, em uma simulação controlada por máquinas.

Essas obras em comum não apenas ilustram os dilemas filosóficos do dualismo cartesiano, mas nos provocam sobre os limites das fronteiras entre o homem e a inteligência artificial. O que antes era ficção agora faz parte da nossa realidade.

Essa linha tênue pode ser exemplificada por avanços na área tecnológica, como a pesquisa da Unicamp sobre inteligência artificial capaz de reconhecer emoções humanas – um conceito novo chamado de computação afetiva. O estudo se concentra em desenvolver algoritmos para identificar emoções a partir de sinais não-verbais, como expressões faciais, tom de voz e gestos.

Por sua vez, o Replika funciona como uma espécie de amigo virtual, um chatbot desenvolvido para simular conversas com usuários, oferecendo até mesmo a funcionalidade de apoio emocional.

Ambos os exemplos ilustram como a inteligência artificial está avançando no campo da interação emocional, abrindo caminho para novas pesquisas e experimentos inovadores.

<><> O legado de Descartes

Não tão longe da realidade, somos convidados a rever o que significa ser verdadeiramente consciente, emocional e, acima de tudo, humano. Em um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, esses pensamentos se tornam ainda mais relevantes, estimulando-nos a considerar como a inteligência artificial pode ser benéfica no cotidiano e como ela pode redefinir nossa compreensão enquanto seres humanos.

Isso não quer dizer que Descartes estava errado. No entanto, com as descobertas da neurociência e o avanço tecnológico, suas ideias sobre mente-corpo foram desafiadas, tornando sua teoria ainda mais complexa. À medida que avançamos para um futuro em que as máquinas começam a se aproximar das capacidades humanas, suas ideias filosóficas continuam a ser relevantes em um mundo cada vez mais automatizado.

O verdadeiro desafio não está apenas no que as máquinas podem ou poderão fazer, mas em como aproveitaremos suas habilidades de maneira ética e responsável e lidaremos com as implicações de suas limitações.

 

Fonte: Por Maria Paula Almada e Isabele Mitozo, em Observatório da Imprensa

 

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