Leo Vidigal: O agro e a fome - dilema brasileiro
A fome é o maior dilema brasileiro. Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, até o fim do ano de 2023, pouco mais de 4% da população do país estava em estado de insegurança alimentar grave. Em números absolutos, 3,2 milhões de pessoas. Bem menos que os 19,1 milhões que sofreram de insegurança alimentar grave em 2020, durante a pandemia da covid-19. Ainda assim, continuamos no Mapa da Fome da ONU (2024), e o contingente de 21,6 milhões (27,6%) de brasileiros sob algum tipo de insegurança alimentar em 2023 é imenso.
Por outro lado, entre janeiro e outubro de 2024, as exportações do agronegócio brasileiro somaram US$ 140,02 bilhões, representando 49,2% da pauta exportadora total brasileira no período. No livro Direito econômico e soberania alimentar, procuro contribuir para o diagnóstico e a solução desse dilema histórico: somos uma potência na produção agrícola e alimentar convivendo com o drama da fome e dos altos preços dos alimentos. Tal situação não é aceitável. Somos e devemos ser melhores do que isso. Podemos alimentar o mundo, mas devemos alimentar os brasileiros.
A fome é inescapável à história. Josué de Castro demonstra que o problema atinge os continentes de forma desigual, determinando a organização da vida humana de modo variado, a depender da região geográfica, do meio ambiente, dos modos de vida. Em suas palavras: a fome é uma "praga fabricada pelo homem".
Desde a fome ideologicamente apresentada como "fenômeno natural" e ferramenta do equilíbrio populacional (Malthus) à expansão colonial europeia do século 19, impulsionada pela necessidade de alimentos; até as greves de fome das mulheres inglesas pelo direito de votar no início do século 20, ou de Gandhi na luta pela independência da Índia; a fome é relacionada ao poder. O livro pretende estudar e ofertar soluções a esse dilema. Imaginar e propor soluções para o Brasil que queremos.
Para desvelar a estruturação social da produção e distribuição de alimentos, temos que discutir as noções de direito humano à alimentação, segurança alimentar, soberania alimentar e soberania sobre os recursos naturais, que implicam distintas perspectivas políticas e econômicas, com formas jurídicas diversas. As relações entre Estados nacionais e a conformação do sistema alimentar mundial a partir das suas estratégias de soberania alimentar devem ser conhecidas, pois a organização e o controle da produção e comércio alimentar ocorrem no âmbito do "sistema alimentar mundial", em que os Estados centrais e suas corporações ocupam e disputam constantemente posições de soberania e poder.
Os países desenvolvidos mobilizam diversos e consideráveis recursos visando à garantia de abastecimento alimentar, preços adequados aos produtores agrícolas, controle de tecnologias estratégicas e mercados internacionais para a diversificada gama de produtos agrícolas, que vão desde commodities até insumos (sementes e fertilizantes) e equipamentos de alta complexidade.
O comando da Organização Mundial do Comércio (OMC) na regulação do comércio internacional, instrumental aos interesses dos países centrais e suas corporações produtivas e financeiras, bem como a crise da hegemonia norte-americana frente à China, são processos a serem desvendados. As tensões distributivas entre centro e periferia e internas a cada país expressam o exercício do poder em condições sociais determinadas e apenas podem ser apreendidas por análises específicas: a teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado nos permite decifrar as questões agrária e agrícola brasileiras, cuja solução permanece inacabada, como demonstra o complexo produtivo da soja. Para resolver nossos problemas, temos que pensar com a própria cabeça.
O direito é uma arena central dessa disputa de poder: a ordem econômica brasileira, com seus comandos finalísticos de desenvolvimento, soberania, erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, determina a política agrária, agrícola e alimentar, enfatizando a simultânea dimensão ecológica e tecnológica do desenvolvimento. Os deveres com a alimentação da população pertencem e obrigam a todos os entes da federação, em cooperação. Não é aceitável haver fome em uma potência agrário-exportadora. O Brasil dará o passo político para superar esse atraso e será a generosa nação sonhada pelo fundador de Brasília, Juscelino Kubitschek.
• Samara Oliveira: Complexidade, política e desinformação - as barreiras para falar de mudanças climáticas
Discutir mudanças climáticas é uma tarefa complexa, não apenas pelos aspectos técnicos ou científicos envolvidos, mas também pela série de obstáculos que dificultam uma abordagem clara e abrangente do tema. Em uma sociedade cada vez mais polarizada e suscetível à desinformação, esse desafio se intensifica. Apesar da vasta quantidade de dados científicos e evidências visíveis do aquecimento global, o debate ainda enfrenta barreiras substanciais na sociedade e na política. Uma pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) revela que, embora 95,4% dos brasileiros reconheçam que as mudanças climáticas estão acontecendo, apenas metade considera o fenômeno uma ameaça séria. Esse dado reflete um distanciamento crítico entre a compreensão do problema e a percepção de risco necessária para impulsionar ações efetivas.
A complexidade científica em torno das mudanças climáticas é um dos primeiros obstáculos. Embora termos como “aquecimento global” e “emissões de CO2” já sejam familiares, o entendimento real de suas causas e consequências é mais profundo e, muitas vezes, inacessível para o público em geral. A questão se torna ainda mais complexa ao considerar os modelos climáticos, que envolvem variáveis e projeções para cenários futuros. Esse descompasso entre conhecimento técnico e entendimento popular pode tornar o tema menos tangível, alimentando dúvidas sobre a urgência de ações concretas.
Outro ponto crucial são os interesses econômicos, que frequentemente entram em conflito com os esforços para combater as mudanças climáticas. Setores como o de combustíveis fósseis resistem à transição para energias limpas, defendendo seus interesses por meio de lobbies e até campanhas de desinformação. Essa influência é perceptível em várias partes do mundo, onde a resistência em abandonar atividades lucrativas, como a exploração de carvão e petróleo, é intensa. Essa disputa econômica tende a polarizar o debate e cria uma sensação de que o enfrentamento ao aquecimento global exige um sacrifício econômico muito grande.
A desinformação também é um elemento prejudicial que impede o avanço do diálogo sobre mudanças climáticas. Um relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) revela que um terço das pessoas em países desenvolvidos ainda atribui o fenômeno a causas naturais, o que contradiz o consenso científico de que as atividades humanas, especialmente as emissões de CO2, são os principais motores desse processo. Essa desinformação dificulta o progresso, pois sem um entendimento claro do que está causando o problema, fica mais difícil unir esforços e encontrar soluções viáveis e eficazes.
A polarização política é outro fator que compromete o avanço do diálogo e das políticas climáticas. Em países como os Estados Unidos, por exemplo, a aceitação da ciência do clima é fortemente influenciada pela filiação partidária, sendo que os democratas têm muito mais probabilidade de apoiar políticas climáticas do que os republicanos. Esse tipo de divergência ideológica torna qualquer avanço coletivo desafiador, e o debate sobre mudanças climáticas acaba sofrendo as consequências de um ambiente político polarizado.
A percepção pública sobre o impacto social e econômico das mudanças climáticas também é limitada. Ainda que 73% dos brasileiros estejam preocupados com o impacto para as futuras gerações, de acordo com uma pesquisa da ONU Brasil, muitos hesitam em considerar o problema um risco imediato. Ao focar nos impactos a longo prazo, o público pode se sentir desconectado das consequências atuais, o que enfraquece a urgência de adotar medidas agora. Esse distanciamento temporal faz com que muitos vejam as mudanças climáticas como uma questão “do futuro”, quando na realidade seus efeitos já são sentidos hoje, com o aumento de eventos climáticos extremos.
Esses eventos, como furacões, secas e inundações, aumentaram significativamente nas últimas décadas, de acordo com dados recentes. Esse aumento, por sua vez, afeta diretamente comunidades e economias ao redor do mundo, especialmente em regiões vulneráveis. Mesmo assim, a falta de uma conexão direta entre esses desastres e as atividades humanas, que muitos não compreendem completamente, impede que o público faça essa ligação de forma clara.
Outro aspecto pouco explorado é o impacto dos níveis recordes de CO2 na atmosfera, que, em 2023, atingiram 417 partes por milhão (ppm), o mais alto em 800 mil anos. Essa concentração intensifica o efeito estufa, o que contribui diretamente para o aumento da temperatura global, que já subiu 1,1°C desde 1880. Embora esses números pareçam abstratos, eles têm consequências muito concretas, como o derretimento acelerado das calotas polares e o aumento do nível do mar, que desde 1900 subiu cerca de 20 cm. Esses efeitos não só comprometem a vida em ecossistemas frágeis, mas também ameaçam milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras.
Superar essas barreiras exige uma abordagem mais transparente e colaborativa entre ciência, política, mídia e sociedade civil. Comunicar a realidade das mudanças climáticas de maneira acessível, mas sem simplificações excessivas, é essencial para construir uma base de entendimento comum. É preciso tornar esses dados mais palpáveis, relacionando-os com o dia a dia das pessoas, para que a urgência do problema seja clara. Essa comunicação deve, ao mesmo tempo, combater ativamente a desinformação, buscando um equilíbrio entre informar e conscientizar, sem gerar pânico.
Também é importante que a educação ambiental seja priorizada desde cedo, permitindo que futuras gerações tenham uma compreensão mais profunda sobre as causas e os impactos das mudanças climáticas. Além disso, ao fortalecer políticas que apoiem o desenvolvimento de energias renováveis, podemos criar um ambiente onde o progresso econômico e a preservação ambiental coexistam. Isso demanda coragem política e social para enfrentar interesses estabelecidos, mas é uma mudança essencial para um futuro sustentável.
O caminho para uma discussão aberta sobre mudanças climáticas está cheio de desafios, mas entender essas barreiras e enfrentá-las é o primeiro passo para uma ação coordenada.
Fonte: Correio BrazilienseEnvolverde
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