Em defesa da
democracia, Justiça foi protagonista em 2024
No centro das
discussões mais importantes da política brasileira, o Poder Judiciário teve, em
mãos, questões essenciais para o funcionamento da democracia do país. O Supremo
Tribunal Federal (STF) se debruçou em regras de transparência e rastreabilidade
das emendas parlamentares, além de avançar na investigação sobre tentativa de
golpe de Estado e debater a responsabilidade das plataformas digitais no
combate às notícias falsas. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o desafio foi
o enfrentamento do uso malicioso da inteligência artificial (IA) nas eleições
municipais de 2024.
Os desdobramentos
das emendas seguiram até as vésperas de Natal. O ministro Flávio
Dino, do STF, determinou, nesta semana, a suspensão do pagamento de R$ 4,2
bilhões do montante.
O magistrado mandou a Polícia Federal (PF) abrir um inquérito para investigar o
caso. Ele também ordenou que o governo só poderá executar o montante relativo
ao ano de 2025 com a conclusão de todas as medidas corretivas ordenadas, como a
indicação do autor e do beneficiário final dos recursos no Portal da
Transparência, e a separação entre o relator do Orçamento e autor das emendas.
As emendas são
indicações de gastos que deputados e senadores fazem no Orçamento do governo
para obras e projetos nos estados que os elegeram. O pagamento estava suspenso
desde agosto, por decisão do STF. A decisão obrigou o Executivo e Legislativo a
trabalharem juntos para aprovar uma lei para dar mais transparência e
rastreabilidade aos recursos.
Em dezembro, Dino
autorizou, com ressalvas, a retomada do montante. A situação não gerou uma
crise institucional, mas esbarrou no Judiciário, pois, na avaliação de
especialistas, o texto aprovado possui lacunas sobre as divisões políticas dos
recursos e, ao tirar o controle de uma parte considerável da execução do
Orçamento, pode invadir a competência do governo — responsável por fazer a
política pública dos repasses.
Para o professor de
estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma (EUA), Fabio de Sá e Silva, a
atuação da Corte mostrou que, em meio a tantas disfunções que acometem as
instituições, ainda pode fazer diferença na qualificação da democracia
brasileira. "Isso ficou claro quando o ministro Dino, dando sequência ao
que já fizera Rosa Weber, pressionou o Congresso a conferir transparência e
rastreabilidade a emendas e, mais ainda, quando vieram à tona os detalhes
da tentativa de golpe
de Estado —
os quais, dificilmente, saberíamos sem o trabalho da PF."
O cientista
político e advogado Nauê Bernardo de Azevedo vai além e afirma que há
protagonismo do Supremo em todos os momentos agudos da República desde 1988.
"Mas o STF não é o único órgão da Justiça brasileira, apesar de ser o
órgão de cúpula. Tribunais como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o TST
(Tribunal Superior do Trabalho) também possuem imensa relevância",
ressalta.
Azevedo aponta a
investigação do suposto golpe como o tema mais importante do ano em termos de
repercussão, mas destaca outros assuntos com grande impacto na vida dos
brasileiros. "A título de exemplo: a limitação de vagas para mulheres na
Polícia Militar; a escolha de regra mais benéfica para aposentadoria; o porte
de maconha; a lei que proíbe vacinação compulsória ou mesmo sobre o Marco Civil
da Internet (embora este não tenha sido finalizado ainda)", elenca.
Na avaliação do
cientista político Elias Tavares, o protagonismo do Judiciário em 2024 reflete
a capacidade do poder de agir como pilar de estabilidade em um cenário político
frequentemente marcado por tensões e polarizações. "Para restaurar o
equilíbrio, o Legislativo e o Executivo devem fortalecer sua capacidade de
liderança, assumindo maior responsabilidade na criação de políticas públicas e
demonstrando eficiência na resposta às demandas da sociedade. O desafio está em
reequilibrar os papéis institucionais sem comprometer a autonomia do
Judiciário", aponta.
<><> Golpe
em destaque
Para 2025, a
Justiça se prepara para o inquérito da Polícia Federal que indiciou o
ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 acusados por tentativa de golpe de Estado
e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A denúncia está nas mãos
da Procuradoria-Geral da República (PGR). Devido ao recesso de fim de ano no
Supremo, que começou em 19 de dezembro e termina em 1° de fevereiro, a
expectativa é a de que o julgamento da eventual denúncia ocorra somente no ano
que vem.
Na investigação do
golpe, agentes da PF recuperaram arquivos deletados no computador do
tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, com detalhes
sobre o plano "Punhal Verde e Amarelo". A trama golpista previa
reverter o resultado das eleições de 2022, além do planejamento de assassinato
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e
do ministro Alexandre de Moraes.
Caberá ao chefe do
Ministério Público Federal (MPF), Paulo Gonet, decidir se Bolsonaro e os demais
indiciados serão denunciados à Corte Suprema pelas acusações. As defesas dos
investigados também deverão se manifestar nos autos do processo.
Neste ano, a PF
também solicitou ao ministro Alexandre de Moraes compartilhamento de
informações da investigação da chamada Abin Paralela, um esquema de espionagem
ilegal montado na Agência Brasileira de Inteligência. Para a corporação, há
conexão entre as ações do esquema e a tentativa de golpe de Estado no país.
Outro momento que
marcou o Judiciário neste ano e que, possivelmente, há ligação com o golpe,
segundo a PF, é o atentado no estacionamento da Câmara dos Deputados e do STF,
em novembro. Francisco Wanderley Luiz, de 59 anos, carregava uma mochila com
explosivos e, após lançar outros artefatos, se deitou no chão e acionou a bomba
junto à nuca. O homem morreu na explosão.
A Polícia Federal
investiga a relação direta entre o fato e os atos golpistas de 8 de janeiro de
2023 — que culminaram na depredação dos prédios dos Três Poderes. Natural de
Santa Catarina, Francisco tinha alugado uma casa há 3 meses na região
administrativa de Ceilândia, a 30 quilômetros do local das explosões.
Para o cientista
político Elias Tavares, a Justiça demonstrou força em momentos críticos.
"A tentativa de golpe foi um divisor de águas para o Judiciário. Ele
mostrou que a democracia brasileira não se curva diante de ameaças, enviando
uma mensagem clara de que atos antidemocráticos não passarão impunes",
diz. "O Judiciário mostrou que está disposto a enfrentar as big techs, mas
isso é só o começo. O verdadeiro desafio será criar uma regulação que seja
eficaz, mas que também respeite direitos fundamentais", completa.
Fabio de Sá e Silva
reforça a importância do avanço das investigações. "Nada vai superar a
conclusão dos inquéritos (das fake news, atos antidemocráticos, milícias
digitais, joias, cartão de vacinas e golpe de estado) e o julgamento dos
envolvidos, entre os quais devem aparecer figurões como Bolsonaro e generais.
Isso não 'recivilizará o Brasil', como aspira o presidente do Supremo, ministro
Luís Roberto Barroso, mas se acertarem mais que errarem na condução desses
processos, o saldo final será favorável aos magistrados e ao país."
<><> Eleições
O ano na Justiça eleitoral,
por sua vez, foi marcado pela posse da ministra Cármen Lúcia como presidente do
TSE. Ao assumir o lugar do ministro Alexandre de Moraes, o desafio se
concentrou em tocar projetos de enfrentamento à desinformação nas eleições
municipais deste ano, além de julgamentos importantes como, por exemplo, os que
envolvem o ex-chefe do Executivo.
No pleito deste
ano, a Justiça Eleitoral saiu do radar de ataques de grupos extremistas que, no
pleito anterior, tentaram descredibilizar as urnas brasileiras. Outro temor do
Judiciário também não se concretizou: o uso da inteligência artificial (IA)
para disseminação de notícias falsas.
Uma das razões para
a ausência de ataque à Corte se deve ao fato de que a operacionalização e
organização das eleições municipais ficam a cargo dos Tribunais Regionais
Eleitorais (TREs) nos estados. Nesse caso, o papel do TSE é prestar apoio
logístico e institucional, além de concentrar a totalização dos votos.
Por outro lado, o
tribunal enfrentou a onda de violência no pleito deste ano. Foram 76
assassinatos em 2024, segundo levantamento do Grupo de Investigação Eleitoral
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Giel/Unirio). O número é
mais que o triplo do mesmo período de 2020, quando foram contabilizados 168
casos de violência política. Em 2022, foram 174 casos. A situação fez com que a
ministra Cármen Lúcia solicitasse aos Tribunais Regionais Eleitorais, o
Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal prioridade na solução de
casos.
<><> Para
o ano que vem
Além da conclusão
do inquérito do golpe, o Supremo deve retomar, no ano que vem, o julgamento que
discute a responsabilidade das redes sociais por conteúdos publicados por seus
usuários. No total, são três ações que discutem o Marco Civil da Internet, lei
que regula a atuação das plataformas no Brasil.
O debate gira em
torno da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil, que exige uma ordem
judicial prévia para excluir conteúdo e responsabilizar as empresas pelos danos
causados pelas publicações. Os processos em discussão estão sob relatoria dos
ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.
"O tribunal
enfrenta uma questão complexa, frente à inércia do Legislativo em regular
plataformas para coibir violações de direitos. Alguns processos relativos à
reforma tributária e corte de gastos podem igualmente movimentar a pauta",
ressalta Fabio de Sá.
No balanço de fim
de ano, Luís Roberto Barroso anunciou que, nas metas para o Judiciário em 2025,
está o julgamento de processos mais antigos dos acervos. O magistrado também
apresentou um resumo das atividades desenvolvidas pela Corte.
Ele citou temas,
ações e projetos desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como a
homologação do Plano Pena Justa, programa voltado ao aprimoramento do sistema
prisional; e o fortalecimento do Pacto Nacional pela Linguagem Simples, que
busca dar maior transparência aos textos jurídicos.
O presidente do STF
destacou ainda as ações que vêm sendo feitas para reduzir a judicialização no
país e mencionou a extinção de mais de 7 milhões de processos de execuções
fiscais, além da diminuição de 14% na taxa de congestionamento de execuções
ativas (de 83% para 69%).
Fonte: Correio
Braziliense
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