Incêndios
e invasões de terra ameaçam uma reserva protegida na Amazônia maranhense
Em meio a campos de milho e pastagens, quilômetros de
arame farpado cercam uma ilha de floresta tropical intocada, provavelmente a
próxima a ser arrasada. Logo adiante, na Reserva Biológica do Gurupi, uma rede
de estradas empoeiradas corta a copa das árvores, levando às profundezas de um
dos últimos trechos de floresta protegida nessa parte da Amazônia — e
sinalizando que ela também está sob ataque.
A Reserva Biológica do Gurupi se estende por 341.650
hectares no canto sudoeste do estado do Maranhão. Sob proteção federal desde
1988, essa região de grande biodiversidade oferece habitat para inúmeras
espécies, como o veado-mateiro (Mazama americana), a ararajuba (Guaruba
guarouba)
e o caiarara (Cebus kaapori), um dos primatas mais criticamente
ameaçados de extinção no mundo. Foi aqui, em 2017, que os pesquisadores redescobriram o mutum-pinima (Crax
fasciolata pinima),
ave considerada extinta por 40 anos.
A reserva também faz parte de um corredor ecológico
composto por sete áreas protegidas, algumas das quais abrigam povos indígenas
que vivem em isolamento voluntário do mundo exterior. A reserva do Gurupi tem o
objetivo de proteger regiões especialmente vulneráveis de invasões e exploração
ilícita.
“O que restou da floresta amazônica no Maranhão está
nessa região”, diz Caroline Yoshida, consultora técnica do Instituto Sociedade,
População e Natureza (ISPN), uma organização sem fins lucrativos que trabalha
com grupos indígenas em uma área composta por um conjunto de áreas protegidas
chamado Mosaico do Gurupi. “O restante já foi transformado em fazendas.”
No entanto, desde sua criação, a reserva do Gurupi vem
sofrendo pressão. Dentro de seus limites, os colonos construíram vilas, os
criadores de gado transformaram a floresta em pasto e os madeireiros ilegais
destruíram variedades de árvores valiosas. Mais recentemente, os traficantes de
drogas também se mudaram para lá, arrasando áreas de terra para dar lugar a plantações
de maconha. Os pesquisadores estimam que a reserva
já perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal, enquanto 70-80%
sofreram corte seletivo por madeireiros.
E, apesar dos esforços das autoridades para reprimir as
atividades ilegais ao longo dos anos, a destruição continuou. Dados de satélite da
Universidade de Maryland visualizados no Global Forest Watch mostram a
proliferação de clareiras na reserva do Gurupi nos últimos 12 meses.
“O processo de ocupação está em andamento; ele ainda
está vivo”, diz Yoshida. “As pessoas estão invadindo. E, se houver uma
oportunidade, elas vão ficar.”
Degradadas pela destruição, partes da reserva do Gurupi
tornaram-se propensas a incêndios florestais, alguns dos quais se espalharam
para terras vizinhas sob proteção. Os incêndios, geralmente provocados por
fazendeiros que usam métodos de corte e queima para renovar pastagens ou
plantações improdutivas, podem facilmente sair do controle durante a estação
seca, espalhando-se muito além da área que foi inicialmente incendiada.
No Maranhão, assim como no resto do Brasil, a temporada
anual de incêndios teve um início dramático este ano, alimentando as
preocupações com o que pode vir pela frente. O estado registrou 3.484 focos de
incêndio no primeiro semestre deste ano, de acordo com dados do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Embora esse número seja apenas um pouco
maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, ele representa um
salto de 20% em relação ao número de incêndios registrados em 2022.
Com a reserva do Gurupi ressequida por meses de seca e
chuvas irregulares, os incêndios podem ser especialmente graves este ano, diz
Eloísa Mendonça, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação e
Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão da área.
“A chuva veio mais tarde — e houve muito menos chuva
este ano”, diz Mendonça, que trabalha na reserva do Gurupi. “Portanto, estamos
muito preocupados com o que pode acontecer nos próximos meses.”
·
Décadas de ocupação
As primeiras tentativas de proteger essa fatia da
Amazônia da destruição remontam a 1961, quando o governo brasileiro colocou 1,6
milhão de hectares da região sob proteção federal. O objetivo era proteger essa
faixa remota de floresta tropical e os povos indígenas que dependiam dela para
sua sobrevivência.
Mas manter os invasores afastados logo se mostrou um
desafio, pois a região foi dominada por iniciativas desenvolvimentistas, em
grande parte estimuladas pela ditadura militar. Migrantes de outros
estados chegaram em massa, atraídos pelas promessas de trabalho abundante e de
terras para chamar de suas, nas quais poderiam derrubar e plantar. Na década de
1980, a construção da Estrada de Ferro Carajás, que se estende por 891
quilômetros de São Luís do Maranhão até o Pará, intensificou ainda mais a onda
de migração e criou uma nova fronteira de desmatamento na região.
E, com a floresta tropical fragmentada, os madeireiros
ilegais puderam avançar para áreas mais intocadas, em busca de variedades de
árvores com alto valor de mercado. Em pouco tempo, a madeira extraída
ilegalmente de áreas sob proteção tornou-se o motor econômico de cidades
próximas, como Buriticupu.
“Naquela época, era como se fosse o Velho Oeste”, diz o
tenente Daniel Holanda dos Santos, que faz parte do Batalhão de Polícia
Ambiental do Maranhão e participou de operações no Mosaico do Gurupi no início
dos anos 2000. “Costumávamos pegá-los, os madeireiros, tentando levar caminhões
cheios de madeira para fora da floresta tropical.”
Em 1986, cerca de 47,1% da área sob proteção federal já
estava povoada por madeireiros, agricultores, colonos e pecuaristas.
Em uma tentativa de fortalecer as proteções, o governo
demarcou seis reservas indígenas na década de 1980, expulsando dessas áreas as
pessoas de fora. O restante da floresta tropical também foi colocado sob
proteção federal com a criação da Reserva Biológica do Gurupi, onde todas as
atividades humanas, exceto pesquisa científica e trabalho de conservação, foram
proibidas.
Ao longo dos anos, as autoridades conseguiram expulsar
alguns grandes proprietários de terras da parte norte do Gurupi. No entanto,
outros pequenos agricultores, muitos dos quais haviam recebido lotes de terra
indevidamente de agências estaduais de reforma agrária mesmo após a criação da
reserva, nunca foram removidos. Hoje, ainda há cerca de 6.300 pessoas vivendo
dentro dos limites do Gurupi.
“Em teoria, deveria ser apenas floresta e
biodiversidade”, diz Mendonça. “Mas a realidade é que há ocupação.”
Ananias Pereira da Silva fundou o assentamento Vila
Aeroporto em meados da década de 1990, em uma época em que havia apenas “mato e
madeireiros” na reserva do Gurupi. “Não havia nada lá”, disse o pastor de 81
anos em uma entrevista à Mongabay. “Então, começamos a trabalhar na terra.
Carregávamos água nas costas, plantávamos arroz para podermos nos alimentar.”
A comunidade, composta por 331 famílias, foi assentada
pelo Instituto de Colonização e Terras do Maranhão, órgão estadual responsável
pela redistribuição de terras públicas a famílias pobres para a agricultura de
subsistência. Com recursos do estado, a comunidade construiu estradas, linhas
de transmissão de energia e poços, erguendo sua aldeia nas profundezas da
reserva do Gurupi.
“Aquela área não pertencia a ninguém”, diz Silva, cuja
família vive em 100 hectares dentro da reserva do Gurupi. “Na época, não se
falava em nenhuma reserva.”
·
Uma disputa de terras de
longa data
Por quase duas décadas, os órgãos federais exigiram que
aldeias como a de Silva fossem realocadas para áreas fora da reserva. Mas as
autoridades estaduais têm rejeitado esses pedidos, argumentando que o Maranhão
não tem terras públicas suficientes para reassentar essas comunidades.
Enquanto isso, as comunidades dentro da reserva
permanecem no limbo, vivendo com medo constante de serem despejadas, diz
Adriana Marques dos Santos, presidente da associação de moradores da Vila
Aeroporto.
“A maioria das pessoas que vivem nessa área nasceu e
foi criada aqui”, diz Adriana, que chegou à reserva do Gurupi como
recém-nascida em 1992. “Tudo o que você tem está dentro deste lugar. Temos
raízes aqui. Não temos para onde ir.”
Alguns, como José Duerta Alves, um fazendeiro de 61
anos que cria 200 cabeças de gado em um terreno de 145 hectares dentro da
reserva, dizem que só abririam mão de seus lotes de terra se fossem indenizados
de forma justa pelas autoridades.
“Essa reserva foi criada ilegalmente em cima das
pessoas que já estavam aqui”, disse Alves, que comprou seu lote de terra de
outro colono em 2000. “Nós só queremos o que é justo.”
A legalidade da reserva foi examinada em 2013, quando
um legislador propôs um projeto de lei que teria eliminado a reserva,
argumentando que as autoridades federais não seguiram o devido processo e não
compensaram os grandes proprietários de terras no momento da criação da
reserva. No entanto, a legislação proposta não conseguiu obter votos
suficientes no Congresso e acabou sendo arquivada.
Agora, alguns dos colonos estão exigindo uma revisão
dos limites da reserva do Gurupi, que deixaria suas comunidades fora da região
sob proteção. Mas Mendonça diz que a ideia de redesenhar os limites da reserva
foi “descartada”, pois abriria um precedente arriscado. “É um risco enorme para
a reserva e para a biodiversidade da Amazônia no Maranhão”, disse ela.
“Portanto, não é uma solução simples e fácil.”
À medida que o agronegócio brasileiro ganha mais
influência nas casas legislativas do país, as tentativas de reduzir o tamanho
das áreas de conservação, ou eliminá-las completamente, têm se tornado cada vez
mais comuns. Defensores do meio ambiente disseram à Mongabay que uma revisão
dos limites da reserva do Gurupi poderia abrir a porta para uma redução
drástica da área sob proteção, com legisladores favoráveis aos interesses
agrícolas provavelmente pressionando para que as terras anteriormente
degradadas, onde a floresta está se recuperando agora, também sejam excluídas.
Em vez disso, o ICMBio está empenhado em trabalhar com
as autoridades estaduais para realocar as famílias que foram assentadas
indevidamente “dentro do devido processo legal e respeitando seus direitos
constitucionais”, diz Mendonça. “Entendemos que muitas dessas pessoas são
vulneráveis e têm medo do futuro”, diz ela. “Mas temos que trabalhar para
removê-las. Porque é isso que a lei exige que façamos.”
Mas alguns colonos, como Silva, dizem que não abrirão
mão de suas terras a qualquer custo. “Eles querem nos transformar em
refugiados”, diz ele, com a voz trêmula. “Mas nós não vamos embora; de jeito
nenhum vamos abrir mão desta terra.”
·
Clima em mudança
À medida que a floresta diminui, tanto dentro da
reserva quanto ao redor dela, aqueles que vivem aqui há décadas estão testemunhando
a mudança climática.
Elizabeth da Silva chegou à Vila Varig, um vilarejo nos
arredores da reserva, em 2000. Naquela época, as chuvas eram torrenciais
durante a estação úmida, encharcando a terra. Plantados no solo fértil, o açaí
e a mandioca cresciam em abundância. No rio próximo, os peixes também eram
abundantes.
“Costumávamos ver veados, pacas, macacos — todos
estavam bem ali”, diz ela, apontando para um trecho de floresta em declínio do
outro lado da estrada. “Aqui era selvagem; naquela época era tudo floresta.”
Mas a vida selvagem desapareceu em sua maior parte nos
últimos anos, pois os campos de soja e as fazendas de gado substituíram grande
parte da floresta tropical ao redor de sua aldeia. O solo também endureceu,
prejudicado pela seca.
“O desmatamento fez tudo desaparecer”, diz ela. “Agora,
não podemos plantar nada. Eles borrifam veneno com seus aviões e todas as
nossas plantas morrem. Os pássaros desapareceram, eles não têm onde se
esconder. Isso parte meu coração.”
Estudos mostram que, nessa
parte da Floresta Amazônica, a estação seca anual se tornou cerca de um mês
mais longa no último meio século. Quando as chuvas finalmente chegam, é mais
provável que sejam escassas e irregulares, proporcionando pouco alívio para a
seca.
Embora as florestas tropicais não peguem fogo
naturalmente, uma combinação de desmatamento e clima mais seco tornou a
vegetação mais propensa a queimadas. Enquanto há algumas décadas os incêndios
provocados por fazendeiros eram apagados pela umidade, agora eles podem se
espalhar com facilidade pelo dossel ressecado e atingir áreas protegidas
vizinhas.
Na aldeia de Maçaranduba, na Terra Indígena Caru, ainda
estão frescas as lembranças de um incêndio especialmente grave que invadiu a
reserva em 2015. As chamas engoliram a floresta intocada que os indígenas
lutaram arduamente durante décadas para proteger de invasores, madeireiros e
fazendeiros.
“Passamos mais de um mês tentando apagar o fogo”, diz
Paula Guajajara, parte de um grupo de mulheres guerreiras da floresta.
“Estávamos quase perdendo as esperanças quando, de repente, começou a chover
torrencialmente.”
Após o incêndio, a comunidade formou uma brigada de
incêndio indígena composta por 15 homens. O grupo tem trabalhado arduamente
para reduzir o risco de incêndios florestais e educar os parentes das nove
aldeias espalhadas pelo território de 173 mil hectares sobre como a mudança
climática está alterando o comportamento das chamas, muitas vezes usadas pelos
povos indígenas para o plantio de subsistência e rituais tradicionais.
Ainda assim, os incêndios vindos de áreas vizinhas,
como a reserva do Gurupi, continuam sendo uma ameaça constante, diz Antônio
Barbosa Guajajara, que trabalha como bombeiro na brigada há quase uma década.
Em 2018, o grupo foi obrigado a combater um grande incêndio que invadiu a TI
Caru a partir da reserva do Gurupi.
“Os incêndios começam nessas áreas onde há pasto, onde
as pessoas invadem”, diz ele. “O fogo é tão rápido que se espalha muito
facilmente em nossa área. E essas áreas são distantes, então leva tempo para
chegar lá e combatê-las.”
Na reserva do Gurupi, o ICMBio vem implantando suas
próprias brigadas há anos, recrutando e treinando bombeiros de cidades próximas
e das próprias comunidades de colonos. Mas o controle das chamas, cada vez mais
alimentadas pelas mudanças climáticas, em uma região vasta como essa, tem sido
um desafio.
Ao buscar maneiras de conter os incêndios florestais, a
agência começou a pressionar pela criação de uma brigada voluntária composta
inteiramente por colonos que ocupam a reserva. A esperança é que a brigada
possa ensinar outras pessoas das comunidades sobre o uso responsável do fogo,
diz Mendonça.
“Queremos que eles entendam que o fogo é um risco tanto
para eles quanto para a floresta”, diz ela. “E se não protegermos a floresta,
vamos perdê-la.”
Fonte: Mongabay
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