quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Incêndios e invasões de terra ameaçam uma reserva protegida na Amazônia maranhense

Em meio a campos de milho e pastagens, quilômetros de arame farpado cercam uma ilha de floresta tropical intocada, provavelmente a próxima a ser arrasada. Logo adiante, na Reserva Biológica do Gurupi, uma rede de estradas empoeiradas corta a copa das árvores, levando às profundezas de um dos últimos trechos de floresta protegida nessa parte da Amazônia — e sinalizando que ela também está sob ataque.

A Reserva Biológica do Gurupi se estende por 341.650 hectares no canto sudoeste do estado do Maranhão. Sob proteção federal desde 1988, essa região de grande biodiversidade oferece habitat para inúmeras espécies, como o veado-mateiro (Mazama americana), a ararajuba (Guaruba guarouba) e o caiarara (Cebus kaapori), um dos primatas mais criticamente ameaçados de extinção no mundo. Foi aqui, em 2017, que os pesquisadores redescobriram o mutum-pinima (Crax fasciolata pinima), ave considerada extinta por 40 anos.

A reserva também faz parte de um corredor ecológico composto por sete áreas protegidas, algumas das quais abrigam povos indígenas que vivem em isolamento voluntário do mundo exterior. A reserva do Gurupi tem o objetivo de proteger regiões especialmente vulneráveis de invasões e exploração ilícita.

“O que restou da floresta amazônica no Maranhão está nessa região”, diz Caroline Yoshida, consultora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), uma organização sem fins lucrativos que trabalha com grupos indígenas em uma área composta por um conjunto de áreas protegidas chamado Mosaico do Gurupi. “O restante já foi transformado em fazendas.”

No entanto, desde sua criação, a reserva do Gurupi vem sofrendo pressão. Dentro de seus limites, os colonos construíram vilas, os criadores de gado transformaram a floresta em pasto e os madeireiros ilegais destruíram variedades de árvores valiosas. Mais recentemente, os traficantes de drogas também se mudaram para lá, arrasando áreas de terra para dar lugar a plantações de maconha. Os pesquisadores estimam que a reserva já perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal, enquanto 70-80% sofreram corte seletivo por madeireiros.

E, apesar dos esforços das autoridades para reprimir as atividades ilegais ao longo dos anos, a destruição continuou. Dados de satélite da Universidade de Maryland visualizados no Global Forest Watch mostram a proliferação de clareiras na reserva do Gurupi nos últimos 12 meses.

“O processo de ocupação está em andamento; ele ainda está vivo”, diz Yoshida. “As pessoas estão invadindo. E, se houver uma oportunidade, elas vão ficar.”

Degradadas pela destruição, partes da reserva do Gurupi tornaram-se propensas a incêndios florestais, alguns dos quais se espalharam para terras vizinhas sob proteção. Os incêndios, geralmente provocados por fazendeiros que usam métodos de corte e queima para renovar pastagens ou plantações improdutivas, podem facilmente sair do controle durante a estação seca, espalhando-se muito além da área que foi inicialmente incendiada.

No Maranhão, assim como no resto do Brasil, a temporada anual de incêndios teve um início dramático este ano, alimentando as preocupações com o que pode vir pela frente. O estado registrou 3.484 focos de incêndio no primeiro semestre deste ano, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Embora esse número seja apenas um pouco maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, ele representa um salto de 20% em relação ao número de incêndios registrados em 2022.

Com a reserva do Gurupi ressequida por meses de seca e chuvas irregulares, os incêndios podem ser especialmente graves este ano, diz Eloísa Mendonça, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão da área.

“A chuva veio mais tarde — e houve muito menos chuva este ano”, diz Mendonça, que trabalha na reserva do Gurupi. “Portanto, estamos muito preocupados com o que pode acontecer nos próximos meses.”

·        Décadas de ocupação

As primeiras tentativas de proteger essa fatia da Amazônia da destruição remontam a 1961, quando o governo brasileiro colocou 1,6 milhão de hectares da região sob proteção federal. O objetivo era proteger essa faixa remota de floresta tropical e os povos indígenas que dependiam dela para sua sobrevivência.

Mas manter os invasores afastados logo se mostrou um desafio, pois a região foi dominada por iniciativas desenvolvimentistas, em grande parte estimuladas pela ditadura militar. Migrantes de outros estados chegaram em massa, atraídos pelas promessas de trabalho abundante e de terras para chamar de suas, nas quais poderiam derrubar e plantar. Na década de 1980, a construção da Estrada de Ferro Carajás, que se estende por 891 quilômetros de São Luís do Maranhão até o Pará, intensificou ainda mais a onda de migração e criou uma nova fronteira de desmatamento na região.

E, com a floresta tropical fragmentada, os madeireiros ilegais puderam avançar para áreas mais intocadas, em busca de variedades de árvores com alto valor de mercado. Em pouco tempo, a madeira extraída ilegalmente de áreas sob proteção tornou-se o motor econômico de cidades próximas, como Buriticupu.

“Naquela época, era como se fosse o Velho Oeste”, diz o tenente Daniel Holanda dos Santos, que faz parte do Batalhão de Polícia Ambiental do Maranhão e participou de operações no Mosaico do Gurupi no início dos anos 2000. “Costumávamos pegá-los, os madeireiros, tentando levar caminhões cheios de madeira para fora da floresta tropical.”

Em 1986, cerca de 47,1% da área sob proteção federal já estava povoada por madeireiros, agricultores, colonos e pecuaristas.

Em uma tentativa de fortalecer as proteções, o governo demarcou seis reservas indígenas na década de 1980, expulsando dessas áreas as pessoas de fora. O restante da floresta tropical também foi colocado sob proteção federal com a criação da Reserva Biológica do Gurupi, onde todas as atividades humanas, exceto pesquisa científica e trabalho de conservação, foram proibidas.

Ao longo dos anos, as autoridades conseguiram expulsar alguns grandes proprietários de terras da parte norte do Gurupi. No entanto, outros pequenos agricultores, muitos dos quais haviam recebido lotes de terra indevidamente de agências estaduais de reforma agrária mesmo após a criação da reserva, nunca foram removidos. Hoje, ainda há cerca de 6.300 pessoas vivendo dentro dos limites do Gurupi.

“Em teoria, deveria ser apenas floresta e biodiversidade”, diz Mendonça. “Mas a realidade é que há ocupação.”

Ananias Pereira da Silva fundou o assentamento Vila Aeroporto em meados da década de 1990, em uma época em que havia apenas “mato e madeireiros” na reserva do Gurupi. “Não havia nada lá”, disse o pastor de 81 anos em uma entrevista à Mongabay. “Então, começamos a trabalhar na terra. Carregávamos água nas costas, plantávamos arroz para podermos nos alimentar.”

A comunidade, composta por 331 famílias, foi assentada pelo Instituto de Colonização e Terras do Maranhão, órgão estadual responsável pela redistribuição de terras públicas a famílias pobres para a agricultura de subsistência. Com recursos do estado, a comunidade construiu estradas, linhas de transmissão de energia e poços, erguendo sua aldeia nas profundezas da reserva do Gurupi.

“Aquela área não pertencia a ninguém”, diz Silva, cuja família vive em 100 hectares dentro da reserva do Gurupi. “Na época, não se falava em nenhuma reserva.”

·        Uma disputa de terras de longa data

Por quase duas décadas, os órgãos federais exigiram que aldeias como a de Silva fossem realocadas para áreas fora da reserva. Mas as autoridades estaduais têm rejeitado esses pedidos, argumentando que o Maranhão não tem terras públicas suficientes para reassentar essas comunidades.

Enquanto isso, as comunidades dentro da reserva permanecem no limbo, vivendo com medo constante de serem despejadas, diz Adriana Marques dos Santos, presidente da associação de moradores da Vila Aeroporto.

“A maioria das pessoas que vivem nessa área nasceu e foi criada aqui”, diz Adriana, que chegou à reserva do Gurupi como recém-nascida em 1992. “Tudo o que você tem está dentro deste lugar. Temos raízes aqui. Não temos para onde ir.”

Alguns, como José Duerta Alves, um fazendeiro de 61 anos que cria 200 cabeças de gado em um terreno de 145 hectares dentro da reserva, dizem que só abririam mão de seus lotes de terra se fossem indenizados de forma justa pelas autoridades.

“Essa reserva foi criada ilegalmente em cima das pessoas que já estavam aqui”, disse Alves, que comprou seu lote de terra de outro colono em 2000. “Nós só queremos o que é justo.”

A legalidade da reserva foi examinada em 2013, quando um legislador propôs um projeto de lei que teria eliminado a reserva, argumentando que as autoridades federais não seguiram o devido processo e não compensaram os grandes proprietários de terras no momento da criação da reserva. No entanto, a legislação proposta não conseguiu obter votos suficientes no Congresso e acabou sendo arquivada.

Agora, alguns dos colonos estão exigindo uma revisão dos limites da reserva do Gurupi, que deixaria suas comunidades fora da região sob proteção. Mas Mendonça diz que a ideia de redesenhar os limites da reserva foi “descartada”, pois abriria um precedente arriscado. “É um risco enorme para a reserva e para a biodiversidade da Amazônia no Maranhão”, disse ela. “Portanto, não é uma solução simples e fácil.”

À medida que o agronegócio brasileiro ganha mais influência nas casas legislativas do país, as tentativas de reduzir o tamanho das áreas de conservação, ou eliminá-las completamente, têm se tornado cada vez mais comuns. Defensores do meio ambiente disseram à Mongabay que uma revisão dos limites da reserva do Gurupi poderia abrir a porta para uma redução drástica da área sob proteção, com legisladores favoráveis aos interesses agrícolas provavelmente pressionando para que as terras anteriormente degradadas, onde a floresta está se recuperando agora, também sejam excluídas.

Em vez disso, o ICMBio está empenhado em trabalhar com as autoridades estaduais para realocar as famílias que foram assentadas indevidamente “dentro do devido processo legal e respeitando seus direitos constitucionais”, diz Mendonça. “Entendemos que muitas dessas pessoas são vulneráveis e têm medo do futuro”, diz ela. “Mas temos que trabalhar para removê-las. Porque é isso que a lei exige que façamos.”

Mas alguns colonos, como Silva, dizem que não abrirão mão de suas terras a qualquer custo. “Eles querem nos transformar em refugiados”, diz ele, com a voz trêmula. “Mas nós não vamos embora; de jeito nenhum vamos abrir mão desta terra.”

·        Clima em mudança

À medida que a floresta diminui, tanto dentro da reserva quanto ao redor dela, aqueles que vivem aqui há décadas estão testemunhando a mudança climática.

Elizabeth da Silva chegou à Vila Varig, um vilarejo nos arredores da reserva, em 2000. Naquela época, as chuvas eram torrenciais durante a estação úmida, encharcando a terra. Plantados no solo fértil, o açaí e a mandioca cresciam em abundância. No rio próximo, os peixes também eram abundantes.

“Costumávamos ver veados, pacas, macacos — todos estavam bem ali”, diz ela, apontando para um trecho de floresta em declínio do outro lado da estrada. “Aqui era selvagem; naquela época era tudo floresta.”

Mas a vida selvagem desapareceu em sua maior parte nos últimos anos, pois os campos de soja e as fazendas de gado substituíram grande parte da floresta tropical ao redor de sua aldeia. O solo também endureceu, prejudicado pela seca.

“O desmatamento fez tudo desaparecer”, diz ela. “Agora, não podemos plantar nada. Eles borrifam veneno com seus aviões e todas as nossas plantas morrem. Os pássaros desapareceram, eles não têm onde se esconder. Isso parte meu coração.”

Estudos mostram que, nessa parte da Floresta Amazônica, a estação seca anual se tornou cerca de um mês mais longa no último meio século. Quando as chuvas finalmente chegam, é mais provável que sejam escassas e irregulares, proporcionando pouco alívio para a seca.

Embora as florestas tropicais não peguem fogo naturalmente, uma combinação de desmatamento e clima mais seco tornou a vegetação mais propensa a queimadas. Enquanto há algumas décadas os incêndios provocados por fazendeiros eram apagados pela umidade, agora eles podem se espalhar com facilidade pelo dossel ressecado e atingir áreas protegidas vizinhas.

Na aldeia de Maçaranduba, na Terra Indígena Caru, ainda estão frescas as lembranças de um incêndio especialmente grave que invadiu a reserva em 2015. As chamas engoliram a floresta intocada que os indígenas lutaram arduamente durante décadas para proteger de invasores, madeireiros e fazendeiros.

“Passamos mais de um mês tentando apagar o fogo”, diz Paula Guajajara, parte de um grupo de mulheres guerreiras da floresta. “Estávamos quase perdendo as esperanças quando, de repente, começou a chover torrencialmente.”

Após o incêndio, a comunidade formou uma brigada de incêndio indígena composta por 15 homens. O grupo tem trabalhado arduamente para reduzir o risco de incêndios florestais e educar os parentes das nove aldeias espalhadas pelo território de 173 mil hectares sobre como a mudança climática está alterando o comportamento das chamas, muitas vezes usadas pelos povos indígenas para o plantio de subsistência e rituais tradicionais.

Ainda assim, os incêndios vindos de áreas vizinhas, como a reserva do Gurupi, continuam sendo uma ameaça constante, diz Antônio Barbosa Guajajara, que trabalha como bombeiro na brigada há quase uma década. Em 2018, o grupo foi obrigado a combater um grande incêndio que invadiu a TI Caru a partir da reserva do Gurupi.

“Os incêndios começam nessas áreas onde há pasto, onde as pessoas invadem”, diz ele. “O fogo é tão rápido que se espalha muito facilmente em nossa área. E essas áreas são distantes, então leva tempo para chegar lá e combatê-las.”

Na reserva do Gurupi, o ICMBio vem implantando suas próprias brigadas há anos, recrutando e treinando bombeiros de cidades próximas e das próprias comunidades de colonos. Mas o controle das chamas, cada vez mais alimentadas pelas mudanças climáticas, em uma região vasta como essa, tem sido um desafio.

Ao buscar maneiras de conter os incêndios florestais, a agência começou a pressionar pela criação de uma brigada voluntária composta inteiramente por colonos que ocupam a reserva. A esperança é que a brigada possa ensinar outras pessoas das comunidades sobre o uso responsável do fogo, diz Mendonça.

“Queremos que eles entendam que o fogo é um risco tanto para eles quanto para a floresta”, diz ela. “E se não protegermos a floresta, vamos perdê-la.”

 

Fonte: Mongabay

 

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