Pensando a integração
latino-americana a partir do marxismo orbital-popular de Jaques Roumain
Atualmente no nosso continente, talvez seja
interessante refletir sobre o eixo e a coluna que o marxismo haitiano
representa, plenamente articulados com outros dois eixos e colunas que
considero fundamentais para pensar um marxismo indígena-afro-crioulo americano:
José Carlos Mariátegui, no Peru, e Carlos Astrada, na Argentina. Em trabalhos
anteriores, como a La
filosofía y teología de la liberación haitiana en la historia y en la filosofía
mundial, procurei apresentar, de forma sintética, o maior número possível
de elementos da Revolução Haitiana como modelo e paradigma ético e épico de
libertação, o que lhe dará o conteúdo multifacetado
(espiritual-material-formal-factual) ao
nascente marxismo haitiano.
A filosofia e a teologia ética da Revolução
Haitiana não são apenas revolucionárias e libertadoras, mas também épicas,
devido às fraquezas e forças assumidas ao longo da história. No sentido épico,
essa revolução não tem precedentes, sendo, por exemplo, o primeiro Estado
independente formado a partir da libertação e revolução dos escravizados.
Esse marxismo, que se incorpora na América
através do caribenho-haitiano revolucionário, numa experiência única, não
vivida por outra sociedade ou intelectual, e que hoje pode ser considerado o
início de um segundo processo de libertação (‘emancipação’), é um marxismo
crioulo orbital, popular, pluricultural, intercultural e
indígena-afro-americano. Esse marxismo falará e escreverá em crioulo (uma novidade
ético-épico-revolucionária na história), repensando sua teologia, filosofia,
economia, tradição oral e história.
A essa altura, a América – Abya Yala –
havia passado por uma experiência profunda, a partir de uma posição
absolutamente estratégica em toda a história da economia mundial até aquele
momento. É somente aqui, nesse estar lá, naquele vir de lá, que quero falar de
um pensador fundamental, que é esquecido até mesmo dentro do marxismo negro,
que, por sua vez, também é igualmente esquecido. Ele é Jacques Roumain.
Ele é um intelectual haitiano, ativista,
etnólogo (iniciador da etnologia haitiana), antropólogo, escritor, jornalista,
poeta, filósofo e político, que nasceu em 4 de junho de 1907 e morreu em 18 de
agosto de 1944, ambos os eventos ocorrendo em Port-au-Prince (Porto Príncipe),
na República do Haiti. Pertence à geração da ocupação norte-americana, em que
os EUA, “protegidos” pela Doutrina Monroe, exercem e justificam o controle
político e econômico no Caribe (mais tarde expandindo-se para toda a América).
Sob tal contexto/pretexto, invadiram o Haiti e as ruas de Porto Príncipe na
noite de 27 de julho de 1915, quando as tropas norte-americanas, armadas com
rifles e lideradas pelo capitalismo e pelo racismo (e apoiadas internamente
pela rendição das elites mulatas locais), ocuparam a gloriosa terra fundadora
da liberdade durante 34 anos.
·
O Movimento Indígena Haitiano
Roumain é o fundador e principal ativista
do Movimento Indígena Haitiano, com o qual começaram a enfrentar a referida
ocupação. Por volta de 1927, junto com outros jovens, fundou a Revue Indigène (Revista Indígena), o
principal órgão desse movimento. Aqui, é interessante e importante parar por um
momento na denominação crioula indo-afro-haitiana, pois ela é o principal eixo
e coluna do processo revolucionário haitiano (latino-americano), em suas
primeiras e segunda etapas de libertação. Os indígenas, os
afro-americanos e os crioulos começaram a se articular no processo
revolucionário caribenho-haitiano desde o início do século XVI.
O intelectual inicia o movimento
indigenista com essa consciência. Devemos considerar que o afro, o escravo, é
também um indígena e, ao mesmo tempo, um crioulo (longe da África, do século
XVI ao século XX, naquela época). Este último termo significa mestiço nativo, e
Roumain assim o expressa. Por isso, é interessante ver como esse sujeito é, ao
mesmo tempo, os três sujeitos, sem implicar substituição, idealização nem
totalização de qualquer espécie, além dos três sujeitos históricos
concretamente particularizados, presentes tanto no Haiti quanto na América. O
que essa órbita e matriz haitiana também nos permite é ter uma visão de
articulação e complementaridade dentro de cada disciplina, bem como entre elas,
de forma prática e teórica. Todos os elementos estão dentro e fora de cada
sujeito, em permanente e plena ebulição, sendo necessária a conexão com eles.
Este movimento indígena é muito importante,
pois é o precedente direto (na filosofia, na teologia, na história, na
política, na literatura, na estética, etc.) do movimento da negritude, que
Jacques Roumain também iniciou, junto com Jean Price-Mars. J. P. Mars
(1876-1969), proeminente intelectual haitiano, professor, etnógrafo, médico,
político, escritor, diplomata etc., com a publicação de Ainsi parla l’oncle (Assim disse o tio),
de 1928, fortalecerá o que havia começado com Jacques Roumain. Seu escrito será
um dos textos fundadores do movimento negritude, e não só isso, será
considerado o primeiro manifesto da condição negra, sendo anterior ao encontro
de estudantes africanos em Paris e, na época, também anterior a Aimé Césaire,
Frantz Fanon, Léopold Sédar Senghor, Léon Gontran Damas, etc.
O movimento negritude foi uma das causas do
processo de descolonização na África e também tem como lugar de enunciação o Haiti,
a ‘América Latina’ e sua rica história revolucionária. É algo profundo, que
toca diferentes fibras (filosófica, teológica, econômica, política, racial,
simbólica, estética, ecológica etc.) e, ao mesmo tempo, está inserido na
estrutura do sistema-mundo.
É mais uma clara pisada americano-haitiana
(não apenas conceitual, mas também teórico-prática) na história universal.
Roumain vai em frente e pensa esse movimento (de revitalização das origens) de
forma integrada e articulada, e não de forma meramente ontológica e
etnocêntrica (totalizando raízes e valores afro), como aquele em que a
negritude mais tarde caiu e que levou a líderes como A. Césaire ou F. Fanon a
se distanciarem de tais totalizações, mas não de tais lutas. Porém, não
totalizar também é parte essencial das novas lutas.
O livro mais importante de F. Fanon, Os
Condenados da Terra, publicado em 1961, para o qual Jean-Paul
Sartre escreve um prólogo no qual diz e reconhece muitos elementos essenciais,
tem em seu título a anterioridade do movimento indigenista e negro haitiano,
por meio de dois poemas fundamentais de Roumain, nos quais a expressão ‘os
condenados da terra’ e todo o seu conteúdo se encontram explicitados de forma
literária. E isso em forma de prosa e estilo magistral que Fanon desenvolverá,
acrescentando também novos temas, como toda a análise específica e terapêutica
da psicopatologia da violência causada pelo colonialismo/neocolonialismo
francês e seus aliados na Argélia.
Os poemas de Jacques Roumain são Novo Sermão Negro: ‘Sustentem os condenados da
terra / Sustentem os condenados da fome’; e Negros
Sujos: ‘E aqui estamos / todos os condenados da terra’. Os sujeitos
da história, para Roumain, são os condenados da terra, os prisioneiros da fome,
que premonitoriamente serão os governadores do orvalho, e, para mim,
parafraseando-o, serão os governadores da história (da libertação). Na minha
opinião, estes são os povos tripartidos e suas misturas. Aqui, a ligação entre
os marxismos indo-afro-crioulos americanos é fundamental. O livro de Fanon será
a base para os movimentos populares de libertação, para os feminismos, para a
descolonialidade do conhecimento, do ser, do poder, do sentir, do ver, etc.
¨
Saramago e Kafka: Da abertura e
daquilo que a fecha
Dialogar com O processo enriquece
a leitura de Todos os nomes. O universo
criado por Franz Kafka se aproxima do cotidiano burocrático do Sr. José, o
protagonista do romance de José Saramago. O funcionário da Conservatória Geral
do Registo Civil poderia, inclusive, se chamar Josef K.. Há, sobretudo, uma
semelhança onomástica. Mas não é somente esta que nos remete ao universo
kafkiano. É toda uma arquitetura labiríntica, que lembra, com muita
insistência, desde a primeira linha do romance até a última, a atmosfera que é
descrita em O processo.
A Conservatória Geral do Registo Civil é
descrita, por Saramago, como um prédio que vai assumindo proporções
assustadoras pela pretensão de abarcar todos os nomes, de todos os vivos e de
todos os mortos. Assim, contribui para despertar um sentimento de pequenez
naquele que se dispuser a olhá-la em todo o esplendor dela. Possui, em seu
interior, estantes ciclópicas e sobre-humanas. Em face dessas mobílias
gigantescas, que se erguem até o teto, por trás dos funcionários, estes são
levados à redução. Percebe-se, nesse prédio, no qual trabalham inúmeros
funcionários, uma disposição dos lugares feita de acordo com a posição
hierárquica que ocupam. Na primeira fila, estão os auxiliares de escrita. Atrás
dela, os oficiais. A seguir, os subchefes. E, por último, completamente
isolado, o conservador. Essa arquitetura de um sistema hierarquizado tem o
papel de lembrar, constantemente, a seus funcionários o lugar que cada um
ocupa. Reforça-se, assim, o poder que o conservador – o chefe – exerce sobre os
demais. A posição privilegiada deste, na última fila, permitindo-o vigiar, sem
que o percebam nesta ação, contribui também para manter esse domínio. O menor
deslize – desatenção, negligência, falta de zelo -, por parte dos funcionários,
pode ser captado por um olhar disposto a aplicar, sempre que necessário, a
sanção exigida, a fim de que se restabeleça a disciplina.
A distribuição das tarefas, na
Conservatória, segue uma regra simples: cada categoria deve executar o máximo
de atividades possíveis, deixando o mínimo de trabalho para a categoria
seguinte. Isso leva a concluir que, na primeira bancada – a dos auxiliares de
escrita -, a sobrecarga de funções é maior, podendo ser verificada, inclusive,
na agitação contínua destes. Compondo essa primeira fila, encontra-se o Sr.
José e já se pode, então, imaginar a exploração à qual estará submetido.
A casa do Sr. José, localizada ao lado da
repartição, foi a única que restou de um sistema de relações de trabalho no
qual o controle exercido pelos superiores sobre a vida dos subordinados era
ainda mais rígido, sob a justificativa de garantir o bom funcionamento dos
serviços. Uma mudança nos critérios municipais relacionados ao ordenamento
urbanístico do bairro onde se situava a Conservatória resultou na demolição das
antigas casas, com exceção de uma, que foi preservada como documento
arquitetônico de uma época. É nessa casa que vive o Sr. José. O prédio
monumental da Conservatória representa uma constante ameaça à residência do escriturário,
parecendo poder esmagá-la a qualquer momento.
Para evitar que a situação fosse vista como
um privilégio, o Sr. José recebeu ordens para que fechasse a porta que fazia a
comunicação da casa dele com a Conservatória Geral do Registo Civil, impedindo
que ele por ali passasse. Deveria entrar e sair pela porta grande da
repartição, como outra pessoa qualquer. Cioso do poder que tinha, o conservador
não precisou nem mesmo tomar a chave das mãos do sr. José. Afinal, tinha a
certeza de que o auxiliar de escrita não desrespeitaria jamais as ordens dele.
Foi exatamente o que aconteceu durante um longo tempo.
O Sr. José, assim como Josef K., também se
vê esmagado por um cotidiano opressivo. Por isso mesmo, a pertinência da
aproximação com a personagem kafkiana, mas o escriturário não desiste de buscar
uma brecha, mínima que seja, dentro da Conservatória Geral do Registo Civil.
Todo movimento do auxiliar de escrita, no decorrer do romance, vai se
transformando numa grande recusa à vida reificada que possui. Desaparecem as
certezas e as garantias do mundo ordenado. O único compromisso da personagem é
com a busca. Realizará pequenas transgressões, mas esses momentos já
representam muito na vida dele. Se por um lado, na Conservatória Geral do
Registo Civil, o Sr. José continua a ser o funcionário explorado; por outro, o
acaso lhe propicia encontrar pequenas brechas no labiríntico prédio.
No universo de Kafka, ao contrário do de
Saramago, não há qualquer alternativa capaz de instaurar uma esfera outra em
meio a um cotidiano hostil. Logo no início de O processo, o
leitor fica sabendo da detenção de Josef K.: “Alguém certamente havia caluniado
Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Ele é
entregue a um aparelho burocrático, cujo funcionamento é controlado por
instâncias que desconhece, sendo finalmente condenado e executado. A
parábola Diante da lei, inserida no capítulo nove de O processo e
publicada também, separadamente, no livro Um
médico rural, é uma importante chave para ler a obra de Kafka e, sobretudo, o
itinerário de Josef K.. Ela é narrada a este pelo capelão da prisão no capítulo
anterior ao da execução do protagonista. Esse relato, do qual destaco um
trecho, traz a situação de um homem que se deixou paralisar pelo obstáculo:
(…) agora reconhece no escuro um brilho que
irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida.
Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça
para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno
para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O
porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura
mudou muito em detrimento do homem. “O que é que você ainda quer saber?”,
pergunta o porteiro. “Você é insaciável.” “Todos aspiram à lei”, diz o homem.
“Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O
porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição
em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta
entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.
Aqui, diferentemente do que ocorre em Todos os
Nomes, a porta se fecha. Modesto Carone considera a lenda do porteiro,
que era o título original do texto, como “(…) o centro nervoso do
romance O processo e da ficção de Franz Kafka, marcada
por paradoxos”. Sem descartar outras aberturas possíveis, o autor
de Lição
de Kafka, ressaltando o conflito entre a autoridade hierárquica e o homem
do campo, aponta para a resignação deste: “Em última análise, é ele próprio o
responsável pelo malogro de sua iniciativa para “entrar na lei”. Pois se esse
homem não tivesse esperado por uma permissão, teria encontrado o seu direito.” Prossegue
o escritor paulista: “Tanto é assim que aquela porta estava destinada só a ele,
e a entrada por ela nunca foi recusada, apenas adiada (agora, não!).”
Completamente enredada, a personagem
kafkiana passará o restante dos dias tentando escapar do labirinto que a
aprisiona. Tentativa frustrada, porém. Não há aqui qualquer brecha capaz de
possibilitar uma passagem que seja. Nesse espaço, Josef K. não pode mover-se.
Sabendo pelo próprio José Saramago da importância de Kafka para o escritor
português, o diálogo com o escritor de O processo se fez
necessário. Saramago, no entanto, não desistirá de procurar, incessantemente, a
brecha, a passagem. A porta não pode mais ser vista apenas como um impedimento
à travessia. Em Manual
de Pintura e Caligrafia, há uma importante reflexão sobre o espaço
instável entre as ombreiras:
Uma porta é, ao mesmo tempo, uma abertura e
aquilo que a fecha. Nos romances e na vida, pessoas e personagens gastam algum
do seu tempo a entrar e a sair de casas ou de outros lugares. É um acto banal,
pensa-se, um movimento que não costuma merecer reparo ou registo particular.
Que eu me lembre, só o mais literário dos pintores (Magritte) observou a porta
e a passagem por ela com olhos surpreendidos e talvez inquietos. As portas de
Magritte, abertas ou entreabertas, não garantem que do outro lado esteja ainda
o que lá tínhamos deixado. Antes entrámos e era um quarto de cama; outra vez
entraremos e será um espaço livre e luminoso, com nuvens passando devagar sobre
um azul pálido, sereníssimo. Estranho é que a literatura (se muita pintura vi,
também muito livro li) não tenha dado grande importância às portas, a essas
pranchas largas reunidas ou chapas móveis, tampas que a vertical poupa à
gravidade. Estranho, sobretudo, que se tome como insignificante o que digo ser
o espaço instável entre as ombreiras. E, no entanto, é por aí que os corpos
passam e se detêm a olhar.
O narrador convocará a imaginação dos
leitores para presenciar o momento transgressor do protagonista, quando este
decide abrir a porta, proibida a ele por tanto tempo. A insatisfação com o
descaso da literatura em registrar a porta e a passagem por ela, presente
em Manual de pintura e caligrafia, acabou por fazer
com que, anos mais tarde, finalmente, essa lacuna fosse preenchida com a
apaixonante travessia do Sr. José.
Imerso no mundo opaco, o auxiliar de escrita
se acostumou a percepções rotineiras, que conservam o mesmo, o repetitivo, o
habitual, em um cotidiano bastante previsível. Mas eis que o desejo de querer
conhecer tudo sobre a vida do bispo, uma das muitas da coleção de notícias do
Sr. José sobre pessoas famosas, irá fazer com que, pela primeira vez, o
escriturário seja levado a abrir a porta que fazia a comunicação da casa dele
com a Conservatória. O narrador convocará a imaginação dos leitores para
acompanhar esse momento transgressor do protagonista:
Imagine agora quem puder o estado de
nervos, a excitação com que o Sr. José abriu pela primeira vez a porta
proibida, o calafrio que o fez deter-se à entrada, como se tivesse posto o pé
no limiar duma câmara onde se encontrasse sepultado um deus cujo poder, ao
contrário do que é tradicional, não lhe adviesse da ressurreição, mas de tê-la
recusado. Só os deuses mortos são deuses sempre.
Depois da infração cometida, o Sr. José
voltará a casa, certo de que a porta já não poderá mais ser visto apenas como
um impedimento à passagem. Nas andanças noturnas pela Conservatória, é
surpreendido pelo verbete de uma mulher de trinta e seis anos, que vem se
juntar aos nomes famosos. Sem entender as razões que o tinham feito paralisar
diante da ficha, uma vez que nem famosa era essa vida, o auxiliar de escrita
vai desejando saber um pouco mais sobre esse nome até que o desejo o leva a uma
busca incessante pela mulher desconhecida. Parte em direção à rua na qual a
mulher do verbete intruso nasceu e, avistando o prédio no qual ela teria
morado, entra, sobe a escada e encosta o ouvido à porta da casa, na tentativa
de conhecer mais daquele mundo. Escuta o choro de uma criança, o sussurro doce
de embalo feminino e a voz de um homem, que o escriturário logo conclui ser o
pai do menino. Finalmente, afasta-se do prédio e retorna a casa, caindo num
sono profundo. O protagonista é despertado pela ideia inesperada de que talvez
a mulher desconhecida fosse aquela que ele ouvira a embalar a criança. Nesse
caso, a busca teria terminado, “estupidamente terminado”, diz. Não conseguindo
entrar no sono, o Sr. José pensa:
Se a mulher é a mesma, repetia, se depois
disto tudo a mulher é a mesma, rasgo o maldito verbete e não penso mais no
assunto. Sabia que estava só a tentar disfarçar a decepção, sabia que não
suportaria regressar aos gestos e aos pensamentos de sempre, era como se
tivesse estado a ponto de embarcar à descoberta da ilha misteriosa, e no último
instante, já com o pé na prancha, lhe aparecesse alguém de mapa estendido, Não
vale a pena partires, a ilha desconhecida que querias encontrar já está aqui,
repara, tanto de latitude, tanto de longitude, tem portos e cidades, montanhas
e rios, todos com os seus nomes e histórias, o melhor é que te resignes a ser
quem és. Mas o Sr. José não queria resignar-se, continuava a olhar o horizonte
que parecia perdido (…)
O auxiliar de escrita, ao contrário do
homem do campo na parábola kafkiana, não queria se resignar a ser quem é. Não
se pode deixar de evocar aqui O
conto da ilha desconhecida, no qual o protagonista,
desejoso por descobrir um espaço ainda não mapeado, acaba por se aventurar no
desconhecido. Não importa encontrar esse lugar, mas apenas o movimento do se
lançar. É no próprio percurso que está o sentido para querer percorrê-lo.
Em Todos os nomes, o
acaso é o elemento a ser valorizado. Afinal, ele permite que percepções já esperadas,
incrustadas pelo hábito, possam dar lugar a visões inesperadas que apontem para
a mudança. Em entrevista a Juan Arias, José Saramago mostra ter plena
consciência da presença das portas e, sobretudo, das travessias que elas
possibilitam:
As circunstâncias, as situações concretas
em que nos encontramos num determinado momento são as que, muitíssimas vezes,
decidem que se abra uma porta que até então estava fechada. Inclusivamente, até
então, uma pessoa nem sequer imaginava que pudesse encontrar-se numa situação
que a obrigaria a fazer coisas que nunca tinha pensado. (…) E não é a própria
pessoa que a abre, é uma determinada situação que a leva a encontrar-se com
essa porta aberta e provavelmente será ela a primeira a surpreender-se.”
A mudança já se deu, o que falta é o Sr.
José trazer para si a consciência dela. Mais uma vez, interessa recorrer ao que
disse Saramago em entrevista a Juan Arias: “O que é que muda? É como se
fossemos dois: um que muda e outro que assiste à mudança. O que muda não é que
não saiba porque muda, o que não sabe é por que caminhos se faz a mudança. E o
que assiste também não sabe porque está fora.” Saramago, de modo algum, reduz os
conflitos. A porta não é mais um impedimento à passagem, mas também não é a
liberdade total da travessia.
Não se sabe se a trajetória de Josef K.
teria sido outra, se tivesse avançado. O texto não vislumbra qualquer
possibilidade nessa direção. Aliás, é justamente a ausência de saídas que
caracteriza o universo kafkiano. Há um diálogo entre Todos os
Nomes e O processo. O que parece distingui-los é
a aposta de Saramago na transgressão. Ainda que esta não rompa com a lógica do
poder, poderá propiciar momentos de plenitude.
Em tempos neoliberais, como os nossos, em
que se impõe a sujeição como conduta, de tal forma que a ausência de saídas
pareça ser a única alternativa, José Saramago, assim como o protagonista
de Todos os Nomes, também não se resignando a
ser quem é, não deixa esquecer que é premente construir uma saída. Saramago,
numa síntese feliz, que ajuda muito a compreender a nossa época e toda a
literatura dele, diz: “Há-de haver uma chave para abrir/A porta deste muro
desmedido.”
Fonte: Le Monde
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