segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Paulo Capel Narvai: Não é a economia, estúpido

Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta

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“É a economia, estúpido!”, a frase celebrizada nas eleições de 1992, que levou Bill Clinton à presidência dos Estados Unidos, é frequentemente descontextualizada e manipulada por analistas políticos, conforme o interesse de quem debate as relações entre economia e política. A economia está sempre subordinada à política, mas negacionistas de todos os matizes fingem ignorar isso para atribuir à economia um protagonismo pseudopragmático, fundado na lógica acaciana de que as despesas devem ser menores do que as receitas.

A frase “É a economia, estúpido” voltou a frequentar o debate político na última semana de novembro de 2024, quando o ministro da Fazenda Fernando Haddad anunciou um conjunto de medidas para enfrentar o déficit das contas públicas e cumprir as regras do regime fiscal instituído pela Lei Complementar nº 200/2023, conhecida como arcabouço fiscal.

As medidas anunciadas pelo governo federal agora tramitarão no Congresso Nacional, onde devem ser aprovadas até o final do ano, provavelmente com muitas mudanças.

Em reunião na Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em São Paulo, o ministro Fernando Haddad respondeu às críticas, que vieram de todo o espectro político, sobre as medidas, já indicando o grau de dificuldades e também o tom que o debate terá no Congresso Nacional. Não é o “gran finale” do esforço do governo para o ajuste das contas públicas, disse Haddad, assegurando que não se quer “vender fantasia” e que se as medidas anunciadas necessitarem de revisão “vamos voltar para a mesa de discussão”, pois “a caixa de ferramentas é infinita”.

A finalidade do conjunto de medidas, que implica um corte no orçamento da União da ordem de R$ 70 bilhões em dois anos, é cumprir as regras do arcabouço fiscal. Serão cortados, segundo Fernando Haddad, R$ 30 bilhões em 2025 e R$ 40 bilhões em 2026. O conjunto implica mudanças no financiamento de políticas públicas e nas despesas do governo federal, incluindo transferências para Estados e Municípios, que se referem ao imposto de renda, salário mínimo, abono salarial, previdência dos militares, supersalários, programas Bolsa Família, Vale Gás, Pé-de-Meia, Proagro, Benefício de Prestação Continuada (BPC), emendas parlamentares, isenções fiscais, salários de servidores públicos, concursos públicos, programas Vale Gás e Pé-de-Meia, fundos constitucionais como o Fundeb e o Fundo Constitucional do Distrito Federal, Lei Aldir Blanc, Desvinculação de Receitas da União (DRU), a criação de despesa e o dever de execução (para informações detalhadas sobre cada item, clique aqui).

As palavras utilizadas na mídia corporativa e nas redes sociais para se referir ao conjunto de medidas, dão a medida do uso ideológico que se faz das palavras. Para a Agência BrasilInfoMoney e O Globo, o governo anunciou um “pacote fiscal”. O Estadão enfatizou que se trata de um “pacote fiscal do governo”. A Veja viu o conjunto como um “pacote fiscal de Haddad”. Para CartaCapital o conjunto corresponde a um “plano de ajuste fiscal”. O UOL e a Forbes se referiram a “ajuste”, mas disseram que se trata de um “pacote fiscal”.

Seja como for, “pacote fiscal” ou “plano de ajustes”, o anúncio do Executivo federal trouxe certo alívio para setores vinculados aos sistemas públicos de educação e saúde, que estavam temerosos com o possível fim dos pisos constitucionais nessas áreas, o que poderia agravar ainda mais o conhecido padrão de subfinanciamento que persistem há décadas. Temia-se também que parte dos R$ 70 bilhões comprometesse o orçamento da Seguridade Social, afetando aposentadorias e pensões. Embora essas áreas tenham sido por enquanto preservadas, seguem as preocupações sobre o rumo que o plano de ajustes terá no Congresso Nacional. “Esse jogo foi ganho no primeiro tempo”, ouvi de um militante da área da saúde, que completou: “O problema agora é ver se conseguimos impedir a virada do placar no segundo tempo”, referindo-se ao Congresso Nacional, sob hegemonia neoliberal.

Em artigo (“Saúde: rumos da transição”) no site A Terra é Redonda escrevi, ainda antes da posse de Lula na presidência da República, que “este não será um governo ultraliberal, mas será um governo neoliberal” e que, em minha constatação, não havia nenhuma novidade e nem se tratava de uma “acusação a Lula ou algo assim”, pois o governo que se estava organizando à época e que buscava sua viabilidade política, havia começado “bem antes das eleições de outubro, lá atrás, quando se firmou a aliança política que resultaria na frente ‘Juntos Pelo Brasil’.

Ali se decidiu, tacitamente, que o governo não seria ultraliberal, mas neoliberal, pois esta era uma exigência derivada da viabilidade política daquela aliança, e condição reconhecida pelas organizações partidárias que a constituíram, de que o programa da Frente, necessário para a derrota político-eleitoral da extrema-direita, aninhada no governo de Bolsonaro, não poderia ir além do neoliberalismo. Enfatizei que “o programa socialista, sonhado por setores do PT e por aliados como o PSOL e outros, ficaria para outra conjuntura política, em outro período histórico”. Agora, não seria possível.

Ponderei que “a aliança costurada por Lula, Alckmin e lideranças políticas próximas a ambos foi celebrada amplamente” e que o “resultado eleitoral revelou o acerto da decisão do início do ano” e que, dali em diante, seria “preciso governar com todos que ‘estão no barco’.” Concluí reiterando: “ultraliberal não, neoliberal. O problema para Lula será manter essa vírgula exatamente na posição em que se encontra, pois não lhe faltarão pressões para alterar a frase para ‘ultraliberal, não neoliberal’, conforme recados que ‘o mercado’ não cessa de lhe enviar. A ver o que a história nos dirá da posição da vírgula, embora até as pedras saibam que a vida não é gramática, mas, frequentemente, dramática”.

Agora, com o “pacote fiscal”, o mercado tomou dramaticamente a ofensiva. Não lhe basta que seja neoliberal. O mercado quer o governo ultraliberal.

Lula cederá? O que fazer?

“É a economia, estúpido!” – dirão alguns leitores.

Ouso responder que não, que não é a economia, mas a política.

Vejamos: as primeiras conversas sobre o “ajuste” falavam em acabar com os pisos constitucionais da educação e saúde. Nada de tocar na tabela do imposto de renda, previdência dos militares, supersalários, emendas parlamentares, isenções fiscais, dentre outros itens. A “economia” seria da ordem de uns R$ 25 a 30 bilhões.

Para “acalmar o mercado”, o próprio governo passou a falar em algo em torno de “uns R$ 40 bilhões”.

Mas o “mercado” seguiu “nervoso” e “aumentou a altura do sarrafo” para R$ 50 bilhões.

O governo reagiu e ampliou o elenco de itens a serem contemplados no plano de ajustes. Para compensar, incluiu a tabela do imposto de renda (com a isenção para rendas inferiores a R$ 5 mil, uma promessa de campanha de Lula) e, para atender às pressões de movimentos sociais e que vinham também da própria Esplanada dos Ministérios, blindou os pisos constitucionais de saúde e educação e a previdência social. Muitas vezes se ouviu ecoar a voz de Lula de que “despesas com saúde e educação pública não são gastos, mas investimentos”. Enfim, propôs o corte que chegou à cifra de R$ 70 bilhões.

Mas nem bem o anúncio ganhou o noticiário, a mídia corporativa já repercutiu a “insatisfação do mercado”, dando voz e protagonismo a “especialistas”, em geral porta-vozes de fundos de investimentos, ou “professores de economia” daqui e dali. De modo praticamente unânime, todos pedem cortes nos fundos que financiam a educação pública, o SUS e a previdência.

“O mercado é um animal voraz”, diria, com razão, Delfim Netto, o insuspeito superministro da ditadura civil-militar. Mas o mercado, que sempre quer mais, não está na cena política apenas por razões econômicas. Está também, por razões políticas e ideológicas.

Não é a economia, estúpido, sou tentado a dizer.

É a política, pois o que está em disputa também nesse episódio é o rumo que o Estado brasileiro deve tomar, e sobretudo nessas áreas que remetem ao sistema de seguridade social previsto na Constituição de 1988 e na área de educação. É, portanto, o tipo de Estado que a Constituição Federal de 1988 delineou que segue sendo atacado ainda agora – como, aliás, vem ocorrendo desde que Ulysses Guimarães anunciou a “Constituição Cidadã”, em outubro de 1988. Desde então “o mercado” anuncia, diariamente, insistentemente, que aquele conjunto de direitos nas áreas de previdência pública, assistência social, saúde e educação “não cabe no orçamento”.

Mas não parece haver qualquer problema no Orçamento da União, para o pagamento pelo governo, das despesas, incluindo juros estratosféricos, da dívida pública. Bancos e fundos de investimentos – ou seja, os que vivem de rendas do capital, mas não produzem um litro de leite – nunca reclamam, pois o “seu quinhão” está, sempre, garantido.  

Para o “mercado”, porém, não se trata apenas de “economia”, de garantir o “seu quinhão”. É também, e sobretudo, político e ideológico.

O mercado quer que “tudo isso”, nas áreas de previdência pública, assistência social, saúde e educação, que “não cabe no orçamento”, seja transformado em mercadoria a ser comercializada pelo mercado.

O mercado não quer um Estado para assegurar o exercício dos direitos à educação, à saúde, à seguridade social, mas um Estado que defina as “regras do jogo” para a livre comercialização dos “produtos” saúde, educação e previdência privada. O mercado finge não entender de direitos, mas apenas de “produtos”.

Por isso, o mercado que cortar, estrangular, desfinanciar, deixar à míngua, todas as políticas públicas nessas áreas.

É disso que se trata. Esta é, para o mercado, uma “frente de lutas” de importância crucial. Mais importante até mesmo do que se o governo de Lula lhes oferecesse nessa “festa da faca” de cortar, e cortar e cortar sempre mais e mais fundo, algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois nunca basta.

Não é a economia, estúpido, é o tipo de Estado.

Ninguém se iluda. É essa batalha, sobre o tipo de Estado e o destino das seções que tratam dos direitos de cidadania, a batalha que se travará no Congresso Nacional até o final de dezembro.

¨      Gleisi Hoffmann sobre alta do dólar: elite é egoísta e não se importa em prejudicar o Brasil para tentar atingir Lula

Neste sábado (30). a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, criticou o que chamou de “resistência das elites brasileiras” às medidas de ajuste fiscal anunciadas pelo governo Lula.

Em referência à reação do mercado com a alta do dólar que chegou a uma contração de R$ 6.

“Impressionante a resistência das elites brasileiras em apoiar a desoneração de IR [Imposto de Renda] de quem ganha até R$ 5 mil", destacou a deputada.

"Dizem que o mercado está chiando e aumentando o dólar por isso. Mentira, mercado chiaria de qualquer jeito, sobre qualquer programa, plano que apresentássemos, a menos que o plano fosse o deles, corte total em cima de programas sociais e dos mais pobres. Mas aí não faria sentido nosso governo”, acrescentou.

Para a parlamentar, “essa gente é tão egoísta que não se importa em prejudicar o Brasil para tentar atingir politicamente o governo de Lula”.

¨      Correia: 'centrão e bolsonaristas têm urgência para cortar dos mais pobres'

O deputado federal Rogério Correia (PT-MG) afirmou que o Centrão está se mobilizando contra a população mais pobre. "Para cortar dos pobres o centrão e bolsonaristas tem urgência, mas quando se fala em fazer justiça no Imposto de Renda, a direita se une e vai defender milionários. Proposta de Lula é isentar de IR quem ganha até 5 mil reais e cobrar dos muito ricos que nada pagam de dividendos", escreveu .

De acordo com o governo, o pacote fiscal anunciado esta semana vai gerar uma economia de R$ 72 bilhões em 2025 e 2026, e de até R$ 327 bilhões em cinco anos. O projeto alcança pelo menos 6 pontos - salário mínimo, aposentadoria de militares, Benefício de Prestação Continuada (BPC), Abono salarial, Bolsa Família, supersalários de servidores e emendas parlamentares.

No caso do salário mínimo, o reajuste acontece pela soma de 2 índices - o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) em 12 meses até novembro, como prevê a Constituição, o valor está estimado em 4,66% pelo governo. O outro é o índice de aumento real do Produto Interno Bruto (PIB) dos dois anos anteriores. No caso de 2025, vale o PIB de 2023 , que aumentou 2,9%.

Conforme o pacote fiscal, o salário mínimo passaria a ter um aumento real, acima da inflação, com base no PIB de dois anos. Esse aumento com base no PIB fica limitado a 2,5% ao ano.

As mudanças na aposentadoria dos militares terão impacto de R$ 2 bilhões ao ano. familiares perdem o direito à pensão de militares expulsos. Será fixada em 3,5% da remuneração a contribuição dos militares para o Fundo de Saúde até janeiro de 2026. Atualmente, os membros do Exército contribuem com 3,5% do soldo. Os da Aeronáutica e da Marinha pagam um valor menor, mas agora ficarão padronizados.

O pacote cria progressivamente uma idade mínima para a transferência para a reserva remunerada (aposentadoria). Os militares se aposentam com base no tempo de serviço, que estabelece como período mínimo 35 anos de atuação. Ao contrário de outros servidores públicos, os militares não têm idade mínima para se aposentar e, por consequência, militares podem ir para a reserva muito cedo.

O projeto extingue a transferência de pensão militar. Após a morte de militares, a pensão pode ser transferida para parentes mais afastados. O governo quer a transferência limitada apenas para cônjuges e dependentes menores de idade. O pacote prevê o fim da "morte ficta". Atualmente, militares condenados e excluídos das Forças Armadas são declarados mortos (mesmo estando vivos) e seus familiares passam a receber uma pensão integral. A proposta prevê que a família do militar receba apenas o auxílio-reclusão, que todo familiar de preso com contribuição para a previdência tem direito.

Pelo projeto fiscal, o Abono Salarial vai ser pago apenas a quem recebe até R$ 2.640. O governo quer diminuir o número de pessoas que têm direito ao abono salarial. Pelas normas atuais, os trabalhadores que recebem, em média, até dois salários mínimos mensais (R$ 2.824, pelo valor atual) têm direito por ano.

O governo também quer mais rigor nas regras para o Benefício de Prestação Continuada. Beneficiários do BPC ganham um salário mínimo, atualmente em R$ 1.412. A Fazenda estima economia de R$ 12 bilhões com a medida até 2030. A medida deve atingir 1,2 milhão de pessoas.

Para ter direito ao BPC, é necessário estar cadastrado no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal). Nas regras atuais, o BPC vale para idosos com idade igual ou superior a 65 anos, ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. Nos dois casos, é preciso comprovar renda para receber o benefício. A renda deve ser de até um quarto do salário mínimo.

No caso do Bolsa Família haverá inscrição ou atualização de unipessoais deve ser feita em domicílio obrigatoriamente. Cadastros desatualizados há 24 meses serão refeitos. O programa terá biometria obrigatória para inscrição e atualização cadastral.

A equipe econômica também quer diminuir o pagamento de valores que extrapolam o teto do funcionalismo. O valor máximo é de R$ 44.008,52 mensais. Em 2021, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que regulamenta o fim dos chamados "supersalários". Segundo o relator do projeto na Câmara, Rubens Bueno (Cidadania-PR), a proposta pode gerar economia de R$ 3 bilhões a R$ 10 bilhões aos cofres públicos por ano. O texto retornou ao Senado, onde aguarda definição.

Pela proposta do governo, o valor global das emendas parlamentares não poderá subir mais do que 2,5% acima da inflação (limite do arcabouço fiscal) e 50% das emendas das comissões passarão a ir obrigatoriamente para a saúde pública.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Brasil 247

 

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