Judiciário
e saúde suplementar se aproximam em busca de soluções para a judicialização nos
planos de saúde
O
ano de 2024 tem sido marcado por grandes mudanças em relação à judicialização
da saúde no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre a
questão e buscou conciliação com diferentes agentes para encontrar caminhos
para a redução no número de processos e diminuição do impacto financeiro
provocado por demandas judiciais. Além das decisões em relação à saúde pública,
estabelecendo critérios mais rígidos para o fornecimento de medicamentos não
incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) através da justiça, o Supremo tem
se aproximado da saúde suplementar para contribuir com a redução da
judicialização no setor.
A
pauta ganha apoio de membros do Judiciário de renome num contexto de chegada de
medicamentos de alto custos e ampliação de cobertura de tratamentos para
transtorno do espectro autista (TEA) e o impacto nas operadoras. A intersecção
entre Saúde e Judiciário pode ser observada na participação, por um lado, de
ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Congresso da
Associação Brasileira de Planos de Saúde (Ambrange) e, por outro, dos diretores
da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no III Congresso Nacional do
Fórum Nacional do Poder Judiciário (Fonajus), durante os dias 21 e 22 de
novembro.
Essa
articulação se dá em um contexto de aumento de casos de judicialização no país,
o que preocupa ministros. “Em 2020, entravam 21 mil novas ações judiciais
relacionadas à saúde por mês. Agora, em 2024, a média mensal de novas ações de
saúde é superior a 60 mil ações. Portanto, em pouquíssimo tempo, nós tivemos um
aumento de quase 300%. Não é possível aumentar a estrutura do Poder Judiciário
progressivamente se a judicialização em todas múltiplas áreas continuar”, disse
o ministro do STF Luís Roberto Barroso, durante o Congresso Abramge.
Levantamento
da associação, utilizando dados da ANS, aponta que R$ 5,5 bilhões foram gastos
pelas operadoras com processos judiciais em 2023. Houve um aumento de 37,6% em
relação ao ano anterior, o que tem contribuído para que os magistrados busquem,
junto ao setor, avançar na desjudicialização da saúde.
O
CNJ tem sido considerado outro grande parceiro da saúde suplementar para
embasar juízes na tomada de decisões técnicas, através dos Núcleos de Apoio ao
Judiciário (NATJus) e do sistema e-NATJus, que concentra pareceres sobre
tratamentos e medicamentos. A conselheira Daiane Lira tem figurado entre os
eventos da saúde suplementar, em busca de criar pontes com o setor.
No
entanto, a falta de obrigatoriedade para que juízes utilizem a plataforma é
considerada uma barreira para avançar no tema. Por isso, a presença de
ministros do STF e do STJ, assim como posicionamentos e falas sobre a
judicialização da saúde, têm sido vistas como importantes para impulsionar a
redução de processos no país.
“Nós
temos no âmbito da saúde suplementar 335 mil ações ajuizadas, sendo que só
neste ano foram 210 mil demandas. E, em São Paulo, diferentemente de outros
estados da federação, a litigiosidade em relação à saúde suplementar é maior do
que a litigiosidade em relação à saúde comum. Ou seja, há mais ações contra
planos de saúde do que ações contra o SUS, de medicamentos e de determinados
tratamentos”, observou o ministro Barroso.
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Histórico e mudança de cenário da judicialização
A
judicialização dos planos de saúde sempre foi um desafio para o setor. Entre
processos considerados devidos e excessos, as operadoras gastaram R$17 bilhões
nos últimos 5 anos, de acordo com levantamento da Abramge. O tema voltou ao
centro do debate no pós-pandemia, com o setor enfrentando crises financeiras e
prejuízos.
“Segundo
um painel de estatísticas processuais do Conselho Nacional de Justiça, em
setembro de 2024, havia mais de 800 mil processos de judicialização da saúde no
Brasil, dos quais 483 mil iniciados este ano. Esses são números extremamente
preocupantes, não apenas porque em termos absurdos são muito elevados, mas
porque eles revelam uma tendência de crescimento”, afirmou o ministro Barroso.
A
iniciativa do ministro Gilmar Mendes em criar uma comissão em setembro de 2023
para debater o tema no país resultou em avanços ao SUS, tentando trazer
credibilidade à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema
Único de Saúde (Conitec). Os planos de saúde podem, também, ser indiretamente
impactados, já que as tecnologias incorporadas à saúde pública devem ser
incorporadas por lei ao rol da ANS. “O STF vem discutindo também mudanças que
devem ser eventualmente abrangentes tanto para o setor público quanto à saúde
suplementar. São contribuições relevantes que, se implementadas, certamente
podem contribuir para a racionalização da judicialização do país”, disse o
ministro durante o Congresso da Abramge.
Gilmar
Mendes é um dos nomes que defende a criação de uma agência única de
incorporação de tecnologias em saúde como forma de reduzir a judicialização e
as disparidades entre os setores.
O
Judiciário tem firmado posição em um momento em que a saúde suplementar trava
batalhas com o Congresso Nacional. Após o STJ ter definido que o rol de
procedimentos era taxativo, mas com possibilidade de exceções em 2022,
parlamentares aprovaram lei que obrigava cobertura para além do rol, conhecida
como lei do rol exemplificativo. Ainda, ao longo de 2024, deputados federais
pressionaram os planos por explicações frente a rescisões unilaterais de
contratos.
“O
Supremo tem diversas decisões em que demonstra preocupação justa com a
sustentabilidade financeira e com o equilíbrio econômico-financeiro dos
contratos na área da saúde suplementar . O STF julgou praticamente todas as
leis estaduais que interferiam nas relações contratuais envolvendo o usuário do
plano de saúde e as empresas das vendas”, apontou Barroso, exemplificando o
histórico de atuação da Corte junto ao setor.
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Os próximos passos e expectativas
Durante
o III Fonajus, ANS e CNJ assinaram um acordo para a elaboração de pareceres
técnicos que embasam os juízes em processos relativos à saúde suplementar. É
preciso, ainda, conscientizar os juízes para utilizarem o sistema e-Natjus para
o embasamento técnico na tomada de decisão, já que o processo não é
obrigatório. No caso da saúde suplementar, não há uma súmula vinculante, isto
é, uma decisão de corte superior que obrigue a utilização dos pareceres. Esse
papel de conscientização tem sido cumprido pelos ministros do STF e STJ,
segundo especialistas ouvidos pelo Futuro da Saúde.
“Desde
que entrei no Fonajus a discussão da saúde suplementar ainda é muito rara. Ela
se dá muito sobre a ótica da questão do rol da ANS, mas não se conhece [que
decisões levam à inserção ou não] de uma tecnologia no rol da ANS. A questão de
preço de medicamento é, sim, relevante também em termos de saúde suplementar,
porque a redução de acesso e o aumento de preços em planos impactam a saúde
pública”, disse Daiane Lira, durante painel do Rio Health Forum, ocorrido entre
6 e 8 de novembro.
A
advogada da União e ex-chefe de gabinete do ministro Dias Toffoli, do STF,
tomou posse como conselheira do CNJ em fevereiro de 2024. Desde então, ela tem
participado dos principais eventos do setor, inclusive, de painéis que discutem
a judicialização da saúde. “Esse é o momento em que o Judiciário está aberto a
observar essas questões. Quer ouvir, quer discutir evidência científica, quer
conhecer mais a Conitec, quer ser canal de comunicação com a Conitec, Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e com a indústria farmacêutica. Precisa conhecer mais a
realidade da saúde suplementar, isso ainda é um desafio grande”, afirmou Lira,
no evento no Rio.
De
acordo com o ministro Barroso, a judicialização da saúde não só afeta a União e
as operadoras, mas também aumenta os custos com processos judiciais no Brasil.
A saída, segundo ele, é encontrar caminhos que evitem, quando possível, o
caminho pela via judicial. “ É preciso ter em mente que o país não tem
dinheiro. Já se gasta 1,2% do PIB com o Poder Judiciário, um número acima da
média mundial. Precisamos ter mecanismos para coibir essa judicialização. Até
porque o Judiciário é uma instância patológica na vida de um país, só intervém
quando existe briga, litígio, conflito. E litigiosidade e conflituosidade não
são as variáveis naturais de se viver”, observa.
• ANS e CNJ firmam acordo
para qualificar decisões em processos de judicialização da saúde suplementar
A
definição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre regras mais rígidas para o
fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo por meio de processos
judiciais produziu um efeito de aproximação de órgãos públicos com o
Judiciário. Após a decisão e assinatura de um protocolo de intenções de
parceria entre o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
nesta última semana, foi a vez da saúde privada consolidar sua aproximação com
a justiça. Em 21 de novembro, durante o III Congresso do Fórum Nacional do
Judiciário para a Saúde (Fonajus), a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS) assinou um acordo de cooperação técnica com o CNJ com o objetivo de
prevenir a judicialização no setor.
O
documento assinado pelo presidente do CNJ e do STF ministro Luís Roberto
Barroso e pelo presidente da ANS Paulo Rebello Filho visa garantir celeridade
no julgamento de processos e oferecer subsídios técnico-científicos aos
magistrados. A ideia é expandir o modelo que já auxilia o julgamento de
processos judiciais que envolvem o Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, os
juízes que trabalham nesses processos contam com notas e pareceres médicos
elaborados com base em evidências científicas emitidos por Núcleos de Apoio
Técnico do Poder Judiciário (NATJUS) para tomar decisões com um olhar mais
amplo.
Agora
com o acordo, a ANS vai financiar a emissão de notas para embasar os
julgamentos que envolvam a saúde suplementar e abastecer o e-Natjus, plataforma
que reúne essas informações. “Temos a parceria com o Hospital Albert Einstein
para as notas do SUS e agora vamos fazer o mesmo com os litígios contra os
planos de saúde. A ANS vai arcar com os custos das notas técnicas e contratar
universidades para elaborá-las de modo a facilitar a vida dos juízes em geral e
para que o juiz decida com base em uma assessoria técnica e qualificada e não
[com base] em achismo”, explicou o ministro Barroso durante o evento.
Segundo
a agência, o próximo passo será a criação de um plano de trabalho conjunto que
permita uma maior comunicação entre os órgãos e o compartilhamento de
informações como documentos, dados, estudos e pesquisas. Com duração inicial de
36 meses, o acordo estabelece a utilização de métodos consensuais para resolver
litígios e o desenvolvimento de estratégias conjuntas voltadas para as
principais causas de conflitos no setor. A execução da parceria ficará a cargo
de um grupo de trabalho composto por representantes das duas entidades. Também
serão produzidos relatórios periódicos para monitorar os resultados e assegurar
a eficácia das ações realizadas.
Conforme
o diretor-presidente da ANS Paulo Rebello, o acordo vem para buscar soluções,
diminuir demandas e concretizar a preocupação do setor com a judicialização. “A
saúde suplementar é um desejo coletivo da sociedade baseada no mutualismo. A
saúde tem seu preço, mas a medicina também tem o seu custo cada vez mais alto e
é através do esforço coletivo que conseguimos custear todos os procedimentos
que temos. Esse acordo é uma pequena contribuição para que o setor consiga
sobreviver hoje e no futuro”, afirmou Rebello.
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Crescimento da judicialização e críticas ao acordo
A
judicialização da saúde suplementar está em crescimento. De acordo com o Painel
da Judicialização da Saúde, elaborado pelo CNJ, mais de 250 mil novos processos
ingressaram no sistema judiciário em 2024, um aumento de aproximadamente 7,7%
em relação a 2023. Além disso, mais de 348 mil processos estavam pendentes de
julgamento até outubro deste ano. Ainda de acordo com o painel, cerca de 80%
dos processos resultam no atendimento da demanda.
Diante
da extensão do problema, especialistas acreditam que o acordo firmado não trará
as soluções esperadas. Para o diretor do Centro de Pesquisas em Direito
Sanitário e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo (USP) Fernando Aith, a ANS não deveria estabelecer uma cooperação com o
Judiciário, mas sim focar na regulação do setor privado para reduzir a
judicialização. Isso porque a maioria dos processos judiciais são por negativa
irregular de cobertura, aumento de preço dos planos de saúde e exclusão de
clientes sem justificativa. “Essas são questões que a ANS teria capacidade de
resolver administrativamente, então, para mim, causa um pouco de estranheza
essa cooperação, já que o Judiciário só está sendo chamado porque a agência
reguladora não trabalha direito”, comenta o professor.
Além
disso, existe uma preocupação com um possível conflito de interesses diante da
emissão de notas técnicas financiadas pela ANS. O advogado sanitarista e
conselheiro de advocacy Tiago Farina Matos concorda que as falhas da agência
são responsáveis pelo aumento da judicialização e, por isso, a existência de
NATJUS pagos pela ANS podem possuir um viés. “Vejo um conflito de interesses
que não deveria acontecer. Acredito que os NATJUS deveriam ser órgãos
financiados exclusivamente pelo Judiciário, sem vínculo com partes que podem
também ser causa da ação judicial. Esses pareceres podem ter uma tendência a
prestigiar as decisões da ANS, e as decisões da agência muitas vezes são
equivocadas”, afirma.
Matos
destaca que o acordo de cooperação foi aprovado com urgência e sem a elaboração
prévia de um plano de trabalho, portanto não houve uma avaliação interna sobre
as condições para o cumprimento das medidas. Para o advogado, isso demonstra
que a agência quer aproveitar a decisão do STF e o interesse do Judiciário no
assunto para fazer uma aproximação. “Esse acordo nasce em um ímpeto da ANS de
aproveitar a janela de oportunidade da decisão do STF em relação ao SUS para
gerar um movimento para que a mesma coisa aconteça na saúde suplementar. A
judicialização é um problema que acontece há 20 anos. Não se poderia esperar
mais um mês para estabelecer o plano de trabalho?” questiona.
O
professor Aith também expressa ressalvas em relação ao financiamento das notas
técnicas. Para ele, a forma de operacionalização do acordo precisa ficar mais
transparente para a sociedade, e os recursos destinados poderiam ser melhor
utilizados. “Me espanta a ANS patrocinar essa emissão, em vez de investir em
tornar robusta a sua estrutura e o seu poder regulatório para dar uma resposta
mais adequada que diminua a judicialização na base”, diz.
A
articulação entre o Executivo e o Judiciário, que preocupa especialistas, deve
aumentar. Durante o Fonajus, o Ministério da Saúde anunciou que também trabalha
no desenvolvimento de um acordo de cooperação técnica com o CNJ para o setor
público. O objetivo é firmar uma parceria ainda mais abrangente do que o
protocolo de intenções, já assinado no início deste mês, que visa capacitar a
Política de Incorporação de Tecnologias em Saúde. “Temos um caminho muito
positivo a percorrer e neste ano avançamos de fato com as resoluções do STF e
com as propostas de avanço na cooperação técnica. Esperamos com esse acordo
ampliar nossa compreensão sobre esse processo e contribuir na formação tanto no
campo da saúde, quanto no jurídico, vejo como uma via de mão dupla” disse a
ministra da saúde Nísia Trindade na ocasião.
Para
Aith, os acordos de cooperação podem trazer benefícios para qualificar as
decisões judiciais, no entanto não contemplam o consumidor e a sociedade. “Eu
acho que temos que qualificar a participação do Poder Judiciário nesse
processo. Mas ele não pode simplesmente abraçar tudo aquilo que o Poder
Executivo disser e esquecer que tem ali uma necessidade de saúde real, uma
pessoa, uma vida que está correndo risco. Me parece que os fortes estão se
acertando para deixar o fraco ainda mais fraco”, observa.
Fonte:
Futuro da Saúde
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