Como as
eólicas devastam a saúde de comunidades
O
que se tratava, inicialmente, de um trabalho de campo de Saúde Coletiva e
Agroecologia, acabou por se transformar na descoberta de impactos
socioambientais gerados por projetos de energia renovável. Essa é a síntese da
pesquisa liderada por Wanessa Gomes, professora da Universidade de Pernambuco
no campus de Garanhuns, e André Monteiro, da Fiocruz.
Iniciado
em 2020, o projeto de residência em Saúde Coletiva das instituições
universitárias visava atender territórios quilombolas e de transição
agroecológica. Os pesquisadores acabaram por constatar que tais comunidades têm
suas vidas social e produtiva inviabilizadas pelas usinas de energia eólica. O
processo de adoecimento é quase generalizado, o Estado e o SUS são ausentes e
as empresas descumprem suas promessas de progresso econômico com dividendos
sociais. Um enredo bastante conhecido, agora com a roupagem da
sustentabilidade.
]“Pensamos
em observar questões de saúde mental, mas já descobrimos que existem outras
doenças aqui, inclusive catalogadas no CID. É o caso da Síndrome da Turbina
Eólica (STE) e a doença vibroacústica (DVA)”, contou Wanessa Gomes, em
entrevista ao Outra Saúde.
Como
relata, os índices de adoecimento são assombrosos. “Observamos que mais 54% das
pessoas relataram alteração na acuidade auditiva, 31% incômodo visual por causa
das sombras da torre (o efeito estroboscópico), e 49% apresentaram alergias,
pois havia alteração da água. Segundo as pessoas entrevistadas, os moradores
desenvolvem tais alergias em razão do que chamam ‘fogo branco’ que sai das
torres de turbinas, a fuligem cai no teto das casas e vai para a cisterna com a
água da chuva”, relatou.
Ao
longo do trabalho de campo, os pesquisadores se depararam com os efeitos
diretos da chamada “autorregulação dos mercados”, notoriamente apoiada pela
direção do Estado brasileiro nos últimos anos, que tornou os Estudos de Impacto
Ambiental um trâmite burocrático alheio às evidências científicas. Na prática,
não há estudos reais de impactos.
“É
preciso ter diálogo, porque essas empresas chegam trazendo promessas de que as
comunidades vão contribuir para o desenvolvimento do país, não tem impacto
nenhum etc. Tal discurso é aceito, até pela falta de falta de conhecimento dos
impactos dessas torres. Isso está acontecendo agora em vários outros
municípios, a exemplo de Serra Talhada (PE), onde as torres impactam
comunidades”.
Apesar
de já se reconhecerem problemas derivados do ruído das turbinas, os efeitos em
saúde vão muito além. Há variadas doenças desenvolvidas em razão do estresse e
da piora da qualidade de vida. E o SUS local, como relata Wanessa Gomes, ainda
não responde à altura das necessidades das pessoas afetadas.
“Todos
os mutirões de atendimento em saúde aconteceram com ajuda de profissionais das
universidades, parceiros, Médicos e Médicas Sem Fronteiras, Médicas(os) do MST,
mas os profissionais da unidade de saúde que cobre esse território não
participaram em nenhum momento, mesmo sendo convidados. A comunidade reclama
muito da falta de assistência, inclusive a falta de medicações, a exemplo da
alergia à agua. Elas têm de pagar consultas em dermatologistas e comprar
medicação por conta própria”, lamentou.
Do
lado das empresas, apenas reuniões e pouca ação de reparação. Além da
necessidade de reassentamento a pelo menos 2 quilômetros de distância dos
parques eólicos, Wanessa Gomes critica a falta de compartilhamento da riqueza
econômica ali gerada. Por sinal, algumas donas de empreendimentos são as mesmas
multinacionais que comandam fontes de energia “suja” das matrizes mais
tradicionais, como a AES.
“Precisamos
desmistificar a ideia de que fontes renováveis de energia não têm impacto
ambiental. Quando o poder público tiver essa consciência começará a exigir
estudos antes da implantação dos empreendimentos, que hoje funcionam ao bel
prazer das empresas, que negociam e impõem seus interesses com uma discrepância
enorme de conhecimento entre as partes”, resumiu.
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Confira a entrevista completa com Wanessa Gomes.
• Primeiramente, como
funciona sua linha de pesquisa em saúde coletiva em Garanhuns, nas áreas que
contam com projetos de exploração de energia eólica?
Começou
em 2020, depois de um chamado da própria comunidade e de movimentos sociais que
atuam nas áreas vulnerabilizadas por usinas eólicas, em especial a Comissão
Pastoral da Terra. Fomos convidados a conhecer os territórios atingidos pelos
empreendimentos eólicos. Antes, atuávamos em Lagoinha e Pau Ferro, que são
alguns sítios do município de Caetés. Fizemos o diagnóstico territorial,
começamos a entrevistar pessoas e ouvir seus relatos.
Em
2022, fomos a uma reunião na comunidade de Sobradinho, outro sítio também em
Caetés, onde ficamos chocados com as situações relacionadas ao meio ambiente e
ao território, os animais locais, o sumiço das abelhas e dos sapos, e o incômodo
do ruído das turbinas. Em Sobradinho, foram umas 15 famílias conversar conosco
e todas tinham sacolas com várias medicações, principalmente medicações para
dormir, benzodiazepínicos, ansiolíticos….
• Quais os efeitos
principais gerados na saúde da população? Já podemos dizer que relacionar seus
efeitos apenas à saúde mental é uma noção obsoleta?
Ficamos
chocados, víamos as pessoas chorarem, mostrarem muita tristeza… Foi um marco
pra entendermos que havia algo a mais a afetar aquela comunidade. Percebemos
que as pessoas tinham muitas questões relacionadas à saúde. Por meio de um
edital do Inova Fiocruz, conseguimos aprovar um projeto de pesquisa na região,
com duração de três anos, até o fim de 2025. Depois, esperamos iniciar outros
projetos porque esta pesquisa abriu um leque de questões desconhecidas.
Pensamos em observar questões de saúde mental, mas já descobrimos que existem
outras doenças aqui, inclusive catalogadas no CID (Cadastro Internacional de
Doenças). É o caso da Síndrome da Turbina Eólica (STE) e a Doença Vibroacústica
(DVA).
Quando
começamos a estudá-las e escutar os moradores da região, vemos que os sintomas
coincidem com a descrição de tais síndromes. Escolhemos a comunidade de
Sobradinho para iniciar a pesquisa. Passamos em todas as casas, fizemos um
diagnóstico em saúde e observamos que mais 54% das pessoas relataram alteração
na acuidade auditiva, 31% incômodo visual por causa das sombras da torre (o
efeito estroboscópico), e 49% apresentaram alergias, pois havia alteração da
água. Segundo as pessoas entrevistadas, os moradores desenvolvem tais alergias
em razão do que chamam “fogo branco” que sai das torres de turbinas, a fuligem
cai no teto das casas e vai para a cisterna com a água da chuva. Muitas pessoas
não usam mais a água das cisternas.
Fizemos
dois mutirões de saúde, uma equipe multiprofissional, médicos, enfermeiros,
fonoaudiólogos, psicólogos, uma grande diversidade de profissionais e seguimos
acompanhando. Alguns dados são gritantes, como o fato de 70% da população usar
algum medicamento de forma contínua oito anos depois das chegadas das torres;
64% utilizam a medicação para conseguir dormir, isso é muito alto para uma
comunidade rural, mais ainda quando se trata desde crianças a idosos. Existe um
conjunto de efeitos em saúde física e mental. Se as pessoas não estão
conseguindo dormir, desenvolvem transtornos como ansiedade e depressão, além do
próprio cansaço e estresse. Também pode se levar à hipertensão e doenças
associadas.
Além
de tudo isso, que são doenças provocadas pelo ruído audível, tem o ruído
inaudível, que são os infrassons, sons abaixo de 20 Hz que também provocam
problemas no corpo e na saúde, tanto humana quanto animal e vegetal. É uma
espécie de vibração que as torres provocam, muito comum em aeroportos, e que
também têm efeitos como hipertensão arterial. Causam ainda problemas
endócrinos, porque aumentam produção de colágeno e elastina, coisas já
comprovadas. São essas as condições que criam a doença vibroacústica.
Já
a síndrome da turbina eólica é causada tanto por infrassons quanto pelos sons
audíveis. Fizemos um estudo em parceria com a Uncisal, de Alagoas, no qual se
fez uma audiometria e um diagnóstico da situação local. Enviamos o diagnóstico
para as empresas que exploram essa matriz energética na área e elas tratam como
se ainda não fosse algo cientificamente certo. Mas são pesquisas qualitativas
que relatam sinais e sintomas e sua correlação com as usinas eólicas.
Neste
ano, começamos nova etapa da pesquisa, com exames para avaliar perda auditiva,
já relatada por muitas pessoas nos 31 exames que já fizemos até hoje. Dessas 31
pessoas que participaram, 82% dos participantes relataram dificuldade na
compreensão auditiva, e aí com os testes vimos que quase 80% apresentam a
diminuição da acuidade auditiva em pelo menos um dos ouvidos.
Também
iniciaremos testes relacionados à saúde bucal, porque aqui temos outro aspecto
gerado pelo estresse e a perda do sono devido ao ruído, que é o bruxismo, uma
disfunção da articulação temporomandibular, causa ranger e travar de dentes,
com consequentes lesões cariosas e até quebra de alguns dentes. Por fim, as
equipes de saúde mental estão iniciando um trabalho de pesquisa e mapeamento de
condições relacionadas às turbinas eólicas.
• O SUS se preparou para
lidar com isso? Como é a absorção destas pessoas pelo sistema de saúde?
É
complicado. Ao menos em Caetés tivemos apoio da secretaria de saúde para atuar
no território, porém, em termos estruturais precisamos de mutirões para ter uma
estrutura de atendimento, pois tivemos até de levar macas e montar consultórios
na casa das pessoas. Mas falta um apoio efetivo de profissionais.
Todos
esses mutirões aconteceram com ajuda de profissionais das universidades,
parceiros, Médicos e Médicas Sem Fronteiras, Médicas(os) do MST, mas os
profissionais da unidade de saúde que cobre esse território não participaram em
nenhum momento, mesmo sendo convidados. A comunidade reclama muito da falta de
assistência, inclusive a falta de medicações, a exemplo da alergia à agua que
vêm relatando. Elas têm de pagar consultas em dermatologistas e comprar
medicação por conta própria.
Vimos
o caso de uma senhora que precisou fazer empréstimo no banco para poder se
tratar dessa alergia, além da compra de ansiolíticos e remédios para dormir,
que muitas vezes não tem na unidade de saúde. O SUS local não vem conseguindo
olhar para a especificidade das comunidades.
• E o que fazem as
empresas que exploram o negócio da energia eólica? Tem alguma relação de
assistência com as pessoas afetadas?
Elas
têm estado presentes fazendo pesquisas. Já houve algumas reuniões em grupo e as
pessoas relatam que não suportam mais a presença da empresa só para fazer
levantamento, sem nenhuma atitude realmente relacionada ao que estão passando.
As empresas até aparecem nos territórios, mas ainda não fizeram nenhuma ação
concreta de mitigação dos efeitos das usinas eólicas.
• Quais as soluções mais
recomendáveis, de acordo com a percepção que vocês desenvolveram nos trabalhos
de campo?
Uma
das coisas importantes a ressalvar é que não somos contra a energia renovável
nem eólica. Questionamos a forma como o Brasil implementa esse tipo de fonte de
energia, prejudicial a uma parcela da população.
Uma
das coisas que observamos a partir da pesquisa e do relato das pessoas é a
distância de uma torre para uma residência e a comunidade, porque essas pessoas
são camponesas, não vivem dentro de casa e saem para trabalhar; há todo um modo
de vida delas naquele território. Portanto, deve se olhar a distância dos
próprios roçados para as torres, é fundamental.
Nessa
comunidade de Sobradinho, conseguimos mapear uma distância máxima de 900
metros, a mínima era de 100, só que aí, com muita luta, já conseguimos realocar
as pessoas que estavam abaixo de 200 metros, a partir de denúncias ao
Ministério Público. Um relatório da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) de
Pernambuco afirma que as empresas deveriam resolver os problemas das pessoas
que vivem a menos de um quilômetro das turbinas, porque todas estão sofrendo as
consequências.
Sugerimos
uma distância mínima de dois quilômetros, até porque já vimos na literatura que
até 1,5 km há afetação por infrassons. Um outro ponto é a questão do Estudo de
Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), pois hoje não
existe legislação no Brasil a obrigar um EIA-RIMA antes da implantação de um
parque de usina eólica.
Por
fim, é preciso ter diálogo, porque essas empresas chegam trazendo promessas de
que as comunidades vão contribuir para o desenvolvimento do país, não tem
impacto nenhum etc. Tal discurso é aceito, até pela falta de falta de
conhecimento dos impactos dessas torres. Isso está acontecendo agora em vários
outros municípios, a exemplo de Serra Talhada, onde as torres impactam
comunidades.
O
discurso da empresa é muito bonito, só fala em benefícios, mas ignora as
dificuldades, o incômodo que essas torres vão causar. E os afetados reais não
são ouvidos, e sim moradores de vizinhanças menos atingidas ou que recebem um
dinheiro e saem do território, enquanto quem fica não chega a assinar acordo
algum e não é ouvido. É necessário pensar estratégias para implantação de
torres social e ambientalmente responsáveis.
E
ainda assim, para além do debate de saúde, entrando até no debate
socioeconômico, esses projetos de energia renovável estão reproduzindo os
velhos projetos das tradicionais fontes de energia elétrica, porque geram
grandes impactos no território, extraem uma grande riqueza econômica e
financeira e no final tal riqueza passa muito longe daquela comunidade. A
contrapartida é muito baixa.
• São duas facetas de
prejuízo econômico, portanto, uma vez que as atividades locais também são
prejudicadas, além de vermos lucros totalmente privatizados que não se
evidenciam em melhorias dos serviços públicos.
Como
dito no início, todo esse trabalho começou em função do acompanhamento de
empreendimentos locais de agroecologia. As torres acabam mudando todo o
ecossistema da região, os agricultores relatam perdas de produtividade, a
criação de animais também é prejudicada, porque os animais sofrem com o
estresse do ruído… Eles dizem, por exemplo, que as galinhas colocam metade dos
ovos de anteriormente e dificilmente um deles se torna um pintinho, é quase um
milagre. Já existem repercussões evidentes no modo de vida e na renda das
famílias que produzem perto de usinas eólicas.
Em
suma, precisamos desmistificar a ideia de que fontes renováveis de energia não
têm impacto ambiental. Quando o poder público tiver essa consciência começará a
exigir estudos antes da implantação de tais empreendimento. Hoje, funcionam ao
bel prazer das empresas, que negociam e impõem seus interesses em cima de
desinformação dos afetados, com uma discrepância enorme de conhecimento entre
as partes. O Estado precisa estar no meio e proteger seus habitantes.
Uma
coisa que nos impressionou neste trabalho de campo é que no final de nossa
pesquisa com os moradores, fazíamos a seguinte pergunta: “Qual o seu sonho?” A
principal resposta era: “sair do território. Antes essa terra era meu sonho,
mas não quero mais morar aqui, não consigo viver”.
Fonte:
Por Wanessa Gomes em entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde
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