O Pacote
de Haddad: entre o Teto e o Tatame
Após
mais de um mês de especulações, o governo federal ofereceu ao Congresso o seu
pacote fiscal, com previsão de cortes da ordem de R$ 327 bilhões nos próximos
cinco anos. Para 2025 e 2026, no horizonte do atual mandato presidencial,
seriam R$ 71,9 bilhões. Os cortes previstos atingem fortemente a área social. A
contenção nos ajustes do salário-mínimo (SM) é o seu componente principal,
respondendo por 34% daquele montante. Se a isso acrescentarmos ações sobre o
Bolsa-Família, BPC, Abono Salarial e Fundeb, a contribuição de áreas sociais
voltadas para as camadas de menor renda atinge pelo menos 60% dos valores
previstos.
O
pacote de Haddad tem um inequívoco potencial regressivo na distribuição da
renda. Até porque, a recuperação do poder de compra do SM e os diversos
benefícios sociais a ele atrelado têm sido os principais responsáveis pelos
momentos de queda na profunda desigualdade existente no Brasil. Para dourar a
pílula, tal presente de grego veio enfeitado com medidas adicionais que visam
agradar parte da classe média, como a ampliação no limite de isenção do IR para
R$ 5 mil/mês a ser financiado por uma alíquota mínima de tributação dos
“super-ricos” e redução de benefícios diversos. Há, ainda, a previsão de cortes
em gastos tributários no caso de déficits a partir de 2025, a limitação
adicional de expansões nos gastos com pessoal, emendas parlamentares,
“supersalários”, privilégios de militares etc.
O
Congresso deverá apreciar os projetos de lei e emendas constitucionais
associadas ao pacote. Alterações em seu conteúdo são esperadas. Há um projeto
alternativo, de autoria de deputados da oposição, que prevê revisão de gastos
da ordem de R$ 1,1 trilhão nos próximos dez anos e medidas ainda mais
regressivas, com desconstitucionalização de despesas com saúde e educação,
desvinculação de benefícios sociais ao SM, dentre outras. O conflito
distributivo saiu do escuro dos gabinetes do poder e anda solto na Esplanada.
Há
que se ressaltar o esforço do governo em distribuir o “bônus” e o “ônus” dos
ajustes. Os financistas da Faria Lima e de seus porta-vozes na impressa e na
fabricação de análises econômicas renovam as ameaças sempre catastrofistas.
Preços macroeconômicos importantes, como a taxa de câmbio e as taxas de juros
futuras seguem em alta, o que coloca lenha na fogueira da inflação. A temporada
de especulação sobre os ativos locais ficou mais animada, na medida em que o
Congresso experimentará as pressões dos lobbies de rentistas e dos “Donos do
Poder” para cortar mais e beneficiar menos. O Brasil está na mira dos grandes
bancos e fundos de investimentos, que expressam ceticismo quanto ao compromisso
do governo federal com o “equilíbrio fiscal”.
As
medidas propostas nesta semana se impuseram exatamente por força do desejo do
governo federal em cumprir o “Regime Fiscal Sustentável”, conhecido como Novo
Arcabouço Fiscal (PLP 93/2023), que substituiu o Teto de Gastos (Emenda
Constitucional nº 95/2016) aprovado no governo de Michel Temer (2016-2018). O
“Teto de Haddad” é, também, um tatame onde a luta permanente é pela maior
apropriação das receitas públicas, o que implica em empurrar os ônus de
eventuais contenções de despesas para “os outros”.
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Pirão Pouco, Meu Prato Primeiro
Nunca
é demais lembrar que, em 2023, a aprovação do “Teto do Haddad” foi comemorada
no Planalto. O Ministro da Fazenda afirmou que: “… pela expressiva votação nas
duas Casas, que se encontrou um denominador comum entre forças que pareciam
antagônicas, na direção de um entendimento sobre uma regra fiscal que desse à
sociedade brasileira como um todo, aos investidores, aos contribuintes, aos
cidadãos em geral, a certeza de que nós temos uma economia que caminha para o
equilíbrio do ponto de vista fiscal”. O líder do governo na Câmara, Deputado
José Guimarães (PT-PE), falou em “vitória espetacular”.
Durante
uma audiência no Congresso Nacional, em 17 de maio de 2023, Haddad argumentou
que a ampla aceitação das novas regras ajudaria a “despolarizar” o país. A
Febraban, por meio de nota assinada por seu presidente, saudou o fato de que o
novo arcabouço representava a introdução de “… regras mais rigorosas para a
gestão das finanças públicas e que se mostrem mais críveis em sua execução.” Um
ano após ser sancionada, o clima já era outro, com os rentistas e seus
economistas manifestando “desconfiança”.
O
orçamento público é uma expressão de diversos interesses dentro de uma
sociedade, os quais podem ser considerados como legítimos ou não. As despesas
sociais são difusas e atingem múltiplos grupos de distintas formas. Com uma
população de mais de 200 milhões de pessoas, grandes assimetrias sociais
derivadas da profunda desigualdade na distribuição da renda e da riqueza, e uma
economia que cresce abaixo da média global nos últimos quarenta anos, torna-se
complexo atender plenamente as demandas reprimidas, ampliando a qualidade da
rede de proteção social. Ao mesmo tempo, salta aos olhos a generosidade do
orçamento para com grupos de interesse mais organizados.
Há,
por exemplo, cerca 7% do PIB em “gastos tributários”, 70% dos quais
concentrados em nível federal. O recente Relatório Nacional sobre Gasto
Tributário revela a forte expansão dessa despesa nas últimas duas décadas,
partindo de um patamar ao redor de 2% do PIB no começo dos anos 2000. Tais
despesas representam subsídios diversos, usualmente na forma de renúncia
fiscal. A divulgação detalhada dos CNPJs beneficiados permite verificar que é
mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que encontrar alguma
grande empresa que não se beneficie da generosidade orçamentária. E não faltam
lobbies no Congresso e esforços coordenados das elites brasileiras para
proteger seus ganhos e ocultar suas pegadas.
O
Brasil é uma anomalia em termos dos níveis das taxas de juros reais (juros
básicos, descontada a inflação) que alimentam os rentistas. Com dados do
último World of Debt, da Unctad, pode-se
calcular o valor mediano dos gastos com juros com relação à renda (PIB) entre
2010 e 2023: para os países de alta renda esse resultado é de 1,4%, para o
conjunto dos emergentes, 1,5% e para o Brasil 5,2%. Os fundamentos
macroeconômicos do Brasil não são tão piores assim que expliquem tais
diferenças. Existem indícios que os mecanismos de gestão da dívida pública
facultam de maior capacidade relativa dos segmentos rentistas locais em se
apropriarem de rendas públicas em comparação com seus congêneres ao redor do
mundo. Esse é o “mercado financeiro”, cujas dinâmicas decisórias também estão
imbricadas com o empresariado tradicional: parte do resultado de diversas
empresas é composta por ganhos de tesouraria associados ao mercado financeiro.
Isso auxilia a compreensão das restrições que o governo se defronta.
Já
na área social, os sucessivos relatórios da OCDE demonstram que os gastos per
capita em educação e saúde no Brasil são insuficientes e muito abaixo da média
dos países que pertencem àquela instituição. Como um todo, os gastos sociais de
origem pública são, em média, de 21,1% do PIB na OCDE, com importantes
variações. Países como Itália e França, possuem estruturas mais robustas, com
um gasto da ordem de 30% do PIB. Dentre os países de alta-renda da OCDE, o
parâmetro médio é de 25%; já em países como Chile (19,6%), Colômbia (15,2%)
Costa Rica (14,5), Turquia (12,9%) e México (7,9%) tais volumes são bem
menores. Para o Brasil, a CEPAL informa gastos de 16% do PIB pelo governo
central, ao passo que a OCDE estima em 21% PIB tal despesa para todos os níveis
do setor público.
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Todos de Olho em 2026
Os
ganhos dos rentistas têm como contrapartida a piora na oferta de bens públicos
que são fundamentais para o combate às iniquidades sociais do país, tanto no
curto como no longo prazo. Ao mesmo tempo, os permanentes ajustes estruturais
paralisam o crescimento econômico e os processos de desenvolvimento e de
incorporação de tecnologias que elevam a produtividade do trabalho e que
decorrem do investimento produtivo.
Lula
e Haddad precisam navegar nas águas turbulentas da política real, pressionados
pelo Teto e o Tatame, pelas legítimas demandas sociais, pelas pressões espúrias
das elites e pela necessidade de reduzir os estragos dos setores da
extrema-direita que tramam permanentemente contra o Estado Democrático de
Direito. Esse componente político também condicionou o conjunto de compromissos
assumidos na posse, dentre eles o arcabouço fiscal e na constituição de um
amplo arco de alianças. Estas englobaram tanto os eleitores tradicionais do
Partido dos Trabalhadores, como os setores sociais mais afinados com a defesa
do status quo, do qual o arranjo entre dívida pública e juros elevados são
componentes.
O
desejo de cumprir todos os compromissos assumidos nos palanques confronta a
dura realidade imposta pelo novo Teto de Gastos. A magnitude desse desafio está
novamente explicitada com a reação do “mercado” ao pacote, insatisfeito com a
ausência de cortes em áreas diretamente vinculadas ao bem-estar da população,
como saúde e educação. Há uma mal disfarçada insatisfação por parte da
oligarquia financeira em relação ao aumento dos impostos sobre os maiores
rendimentos e uma implícita convicção de que o Legislativo manterá sua
tradicional conduta de proteger a renda dos mais ricos.
Já
o ensurdecedor silêncio em relação a nova regra de correção do salário-mínimo
sinaliza a aprovação da proposta de moderação do principal mecanismo da
sociedade brasileira para inclusão social no século XXI. Tributar os ricos é
tão difícil quanto reduzir suas rações generosas de juros e subsídios. E punir
os mais pobres costuma cobrar um preço muito grande em termos de apoio presente
e perspectivas de sucesso eleitoral futuro, como sobejamente demonstrado ao
longo da trajetória da frágil democracia brasileira.
Quando
as urnas forem abertas no futuro, descobriremos se a população tem a mesma
compreensão que o governo sobre a possibilidade de quadratura do círculo:
produzir equilíbrio orçamentário com justiça social a um preço razoável para a
maioria. Pelo que as nuvens sugerem, a conta dos ajustes seguirá sendo mais
alta para quem está na base da pirâmide.
• Falso dilema. Por
Fernando Netto Safatle
Já
faz mais de três semanas que o governo Lula se debruça para saber onde cortar e
quanto cortar em cada área dos ministérios. Até hoje não chegou a um consenso.
Agora a decisão é incluir também os militares para tentar minimizar as críticas
especialmente dentro do PT para que não passe a ideia de que são os pobres que
estão pagando a conta. Na verdade, o governo Lula foi emparedado pela Faria
Lima em um falso dilema: ou fica e o bicho come, ou corre e o bicho pega. Caiu
na armadilha, não deixaram nenhuma saída. Ou corta os gastos, sobretudo, das
áreas sociais, ou não, provocando o descalabro financeiro e o caos. A pressão
da mídia é enorme.
A
grande mídia bate insistentemente na mesma tecla, uma orquestração de um só
maestro, como se não existisse saída, fosse uma estrada de mão única. Os
economistas chamados a depor são todos ligados aos bancos, nenhum divergente,
para dar a impressão de que não existe nenhuma discordância sobre essa matéria.
Assim, sem nenhuma opinião ao contrário, vão encurralando o governo. Lula, o
único que externou opinião contrária afirmou estar estupefato ao saber que mais
de 550 bilhões de reais são gastos com subsídios aos empresários rurais e
industriais, enquanto o governo se esfacela para cortar 20 a 30 bilhões dos
pobres. Isso sem nenhuma contrapartida.
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A dívida pública
Por
exemplo, nenhuma garantia de manutenção do emprego. Estava se referindo à
desoneração fiscal aprovada pelo governo. Infelizmente, isso fica apenas em um
choro de lamentações, sem nenhuma ação prática. É a eterna ilusão que essas
coisas podem ser resolvidas intra muros, a nível institucional. Ora, são
questões candentes, uma verdadeira luta de classes. Agora, se trava uma batalha
por recursos também entre classes, o corte de gastos. Não existe aqui uma saída
única, ao contrário, há várias saídas. Só que, são intocáveis. Por exemplo, a
discussão sobre a dívida pública. Por quê não se discuti como uma das
alternativas do corte de gasto? Porque ela está fora do teto de gasto e do
arcabouço fiscal?
Pode
se cortar os gastos sociais menos os gastos com serviços da dívida? Isso é
intocável! O país gasta hoje 1 trilhão só com o pagamento dos juros da dívida.
São 47% do orçamento público. Enquanto, o rombo fiscal atinge até setembro
deste ano, 105 bilhões. Ou seja, o país tem recursos, não é falta, mas só que
gasta quase a metade com o pagamento do serviço da dívida. Quando Getúlio
Vargas assumiu em 1930 o governo se deparou com uma dívida enorme, convocou seu
ministro Osvaldo Aranha e mandou fazer uma auditagem da dívida interna e
externa. Levantou se que o primeiro contrato da dívida foi feito em 1824,
especialmente com os bancos ingleses, depois vieram uma sucessão deles.
Essa
dívida era herdada ainda de Portugal e transferida para o Brasil. A maioria das
despesas era oriunda do próprio sistema da dívida, com juros exorbitantes,
contratos fraudulentos, dívidas inexistentes, cláusulas abusivas, corrupção,
etc. Essa auditoria foi dividida em seis fases. A primeira delas, realizada em
1932 foi a suspensão do pagamento da dívida. A sexta, nos inícios de 1940, foi
a redução significativa de 60% da dívida. Com esse corte foi possível fomentar
o processo de industrialização, como Petrobras, Vale, a siderurgia e
reestruturação do aparelho estatal. A grande diferença dos investimentos
ocorridos na época de Vargas e diferentemente da era de JK e do regime militar.
Foi
que enquanto Getúlio Vargas obteve recursos de origem interna os dos outros
eram de origem externa. Esse abismal endividamento externo levou o Brasil a um
estrangulamento provocando uma estagnação econômica na década de 80. Os
governos de Fernando Collor, Itamar Franco e FHC tiveram que entregar ao
capital estrangeiro recursos naturais para pagamento de parte da dívida.
Getúlio Vargas foi o único governo a realizar auditoria da nossa dívida
pública. Tivemos outras experiências, mas inacreditavelmente vetadas
recentemente. Outra tentativa de auditar a dívida pública foi realizada durante
o governo de Dilma Rousseff. Acreditem, vetada pela Dilma Rousseff, por
incrível que pareça.
A
proposta foi feita pelo deputado do PSOL, Edmilson Rodrigues. O projeto foi
aprovado pelo Congresso Nacional com a participação de entidades da sociedade
civil. O veto foi publicado no Diário Oficial da União que prevê o planejamento
das contas federais. A justificativa era de que a auditoria já era feita pelo
Banco Central e TCU. Justificativa mais esfarrapada!
O
motivo real, é claro, não foi esse. Pior de tudo que a Constituição Federal de
1988 prevê sua realização através do artigo 26 do Ato das Disposições
Transitórias. Define com muito clareza seus objetivos, tais como: analisar o
processo de endividamento do país; identificar ilegalidades e ilegitimidade na
dívida; promover ações para rever o processo de endividamento.
Ou
seja, estamos com 30 anos descumprindo a nossa Constituição! Em seu segundo
mandato Lula anunciou que tinha pago a dívida com o FMI. Maria Lúcia
Fattorelli, que faz parte da Auditoria Cidadão da Dívida, desmistifica
afirmando que a dívida com o FMI apenas foi transferida para outros credores.
Enquanto lá fora remunerava a 4%, aqui, na época remunera a 19%. Trocou se, a
dívida externa pela dívida interna.
Se
fizermos Auditoria hoje da dívida pública certamente iríamos encontrar a mesma
situação que Getúlio Vargas encontrou na década de 1930, cerca de 60% de nossa
dívida inexistente. E porque não cumpre com a legislação constitucional e
realiza a auditoria da dívida pública?
Está
lá na Constituição! Convoca-se um Plebiscito e joga a discussão para população
decidir, com isso, ganha o seu apoio. Ora, não adianta ficar perplexo e querer
resolver essa briga intramuros, com negociações em nível institucional. São
questões de disputa de recursos entre classes que se deixar para resolver na
mesa de negociação vamos perder sempre.
É
uma ilusão achar que as coisas vão ser decididas, pura e simplesmente, assim. A
alteração na correlação de forças só vai ser modificada se for para as ruas.
Politiza essa questão e convoca um Plebiscito para ganhar apoio e convocar o
Congresso para definir uma convocação de auditagem da dívida pública. Os
recursos para cobrir o rombo tem que vir da auditagem da dívida pública.
Afinal, a Constituição assim o exige!
Fonte:
Por André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach no Jornal GGN/A Terra é
Redonda
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