terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Pacote de Haddad: entre o Teto e o Tatame

Após mais de um mês de especulações, o governo federal ofereceu ao Congresso o seu pacote fiscal, com previsão de cortes da ordem de R$ 327 bilhões nos próximos cinco anos. Para 2025 e 2026, no horizonte do atual mandato presidencial, seriam R$ 71,9 bilhões. Os cortes previstos atingem fortemente a área social. A contenção nos ajustes do salário-mínimo (SM) é o seu componente principal, respondendo por 34% daquele montante. Se a isso acrescentarmos ações sobre o Bolsa-Família, BPC, Abono Salarial e Fundeb, a contribuição de áreas sociais voltadas para as camadas de menor renda atinge pelo menos 60% dos valores previstos.

O pacote de Haddad tem um inequívoco potencial regressivo na distribuição da renda. Até porque, a recuperação do poder de compra do SM e os diversos benefícios sociais a ele atrelado têm sido os principais responsáveis pelos momentos de queda na profunda desigualdade existente no Brasil. Para dourar a pílula, tal presente de grego veio enfeitado com medidas adicionais que visam agradar parte da classe média, como a ampliação no limite de isenção do IR para R$ 5 mil/mês a ser financiado por uma alíquota mínima de tributação dos “super-ricos” e redução de benefícios diversos. Há, ainda, a previsão de cortes em gastos tributários no caso de déficits a partir de 2025, a limitação adicional de expansões nos gastos com pessoal, emendas parlamentares, “supersalários”, privilégios de militares etc.

O Congresso deverá apreciar os projetos de lei e emendas constitucionais associadas ao pacote. Alterações em seu conteúdo são esperadas. Há um projeto alternativo, de autoria de deputados da oposição, que prevê revisão de gastos da ordem de R$ 1,1 trilhão nos próximos dez anos e medidas ainda mais regressivas, com desconstitucionalização de despesas com saúde e educação, desvinculação de benefícios sociais ao SM, dentre outras. O conflito distributivo saiu do escuro dos gabinetes do poder e anda solto na Esplanada.

Há que se ressaltar o esforço do governo em distribuir o “bônus” e o “ônus” dos ajustes. Os financistas da Faria Lima e de seus porta-vozes na impressa e na fabricação de análises econômicas renovam as ameaças sempre catastrofistas. Preços macroeconômicos importantes, como a taxa de câmbio e as taxas de juros futuras seguem em alta, o que coloca lenha na fogueira da inflação. A temporada de especulação sobre os ativos locais ficou mais animada, na medida em que o Congresso experimentará as pressões dos lobbies de rentistas e dos “Donos do Poder” para cortar mais e beneficiar menos. O Brasil está na mira dos grandes bancos e fundos de investimentos, que expressam ceticismo quanto ao compromisso do governo federal com o “equilíbrio fiscal”.

As medidas propostas nesta semana se impuseram exatamente por força do desejo do governo federal em cumprir o “Regime Fiscal Sustentável”, conhecido como Novo Arcabouço Fiscal (PLP 93/2023), que substituiu o Teto de Gastos (Emenda Constitucional nº 95/2016) aprovado no governo de Michel Temer (2016-2018). O “Teto de Haddad” é, também, um tatame onde a luta permanente é pela maior apropriação das receitas públicas, o que implica em empurrar os ônus de eventuais contenções de despesas para “os outros”.

<><> Pirão Pouco, Meu Prato Primeiro

Nunca é demais lembrar que, em 2023, a aprovação do “Teto do Haddad” foi comemorada no Planalto. O Ministro da Fazenda afirmou que: “… pela expressiva votação nas duas Casas, que se encontrou um denominador comum entre forças que pareciam antagônicas, na direção de um entendimento sobre uma regra fiscal que desse à sociedade brasileira como um todo, aos investidores, aos contribuintes, aos cidadãos em geral, a certeza de que nós temos uma economia que caminha para o equilíbrio do ponto de vista fiscal”. O líder do governo na Câmara, Deputado José Guimarães (PT-PE), falou em “vitória espetacular”.

Durante uma audiência no Congresso Nacional, em 17 de maio de 2023, Haddad argumentou que a ampla aceitação das novas regras ajudaria a “despolarizar” o país. A Febraban, por meio de nota assinada por seu presidente, saudou o fato de que o novo arcabouço representava a introdução de “… regras mais rigorosas para a gestão das finanças públicas e que se mostrem mais críveis em sua execução.” Um ano após ser sancionada, o clima já era outro, com os rentistas e seus economistas manifestando “desconfiança”.

O orçamento público é uma expressão de diversos interesses dentro de uma sociedade, os quais podem ser considerados como legítimos ou não. As despesas sociais são difusas e atingem múltiplos grupos de distintas formas. Com uma população de mais de 200 milhões de pessoas, grandes assimetrias sociais derivadas da profunda desigualdade na distribuição da renda e da riqueza, e uma economia que cresce abaixo da média global nos últimos quarenta anos, torna-se complexo atender plenamente as demandas reprimidas, ampliando a qualidade da rede de proteção social. Ao mesmo tempo, salta aos olhos a generosidade do orçamento para com grupos de interesse mais organizados.

Há, por exemplo, cerca 7% do PIB em “gastos tributários”, 70% dos quais concentrados em nível federal. O recente Relatório Nacional sobre Gasto Tributário revela a forte expansão dessa despesa nas últimas duas décadas, partindo de um patamar ao redor de 2% do PIB no começo dos anos 2000. Tais despesas representam subsídios diversos, usualmente na forma de renúncia fiscal. A divulgação detalhada dos CNPJs beneficiados permite verificar que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que encontrar alguma grande empresa que não se beneficie da generosidade orçamentária. E não faltam lobbies no Congresso e esforços coordenados das elites brasileiras para proteger seus ganhos e ocultar suas pegadas.

O Brasil é uma anomalia em termos dos níveis das taxas de juros reais (juros básicos, descontada a inflação) que alimentam os rentistas. Com dados do último  World of Debt, da Unctad, pode-se calcular o valor mediano dos gastos com juros com relação à renda (PIB) entre 2010 e 2023: para os países de alta renda esse resultado é de 1,4%, para o conjunto dos emergentes, 1,5% e para o Brasil 5,2%. Os fundamentos macroeconômicos do Brasil não são tão piores assim que expliquem tais diferenças. Existem indícios que os mecanismos de gestão da dívida pública facultam de maior capacidade relativa dos segmentos rentistas locais em se apropriarem de rendas públicas em comparação com seus congêneres ao redor do mundo. Esse é o “mercado financeiro”, cujas dinâmicas decisórias também estão imbricadas com o empresariado tradicional: parte do resultado de diversas empresas é composta por ganhos de tesouraria associados ao mercado financeiro. Isso auxilia a compreensão das restrições que o governo se defronta.

Já na área social, os sucessivos relatórios da OCDE demonstram que os gastos per capita em educação e saúde no Brasil são insuficientes e muito abaixo da média dos países que pertencem àquela instituição. Como um todo, os gastos sociais de origem pública são, em média, de 21,1% do PIB na OCDE, com importantes variações. Países como Itália e França, possuem estruturas mais robustas, com um gasto da ordem de 30% do PIB. Dentre os países de alta-renda da OCDE, o parâmetro médio é de 25%; já em países como Chile (19,6%), Colômbia (15,2%) Costa Rica (14,5), Turquia (12,9%) e México (7,9%) tais volumes são bem menores. Para o Brasil, a CEPAL informa gastos de 16% do PIB pelo governo central, ao passo que a OCDE estima em 21% PIB tal despesa para todos os níveis do setor público.

<><> Todos de Olho em 2026

Os ganhos dos rentistas têm como contrapartida a piora na oferta de bens públicos que são fundamentais para o combate às iniquidades sociais do país, tanto no curto como no longo prazo. Ao mesmo tempo, os permanentes ajustes estruturais paralisam o crescimento econômico e os processos de desenvolvimento e de incorporação de tecnologias que elevam a produtividade do trabalho e que decorrem do investimento produtivo.

Lula e Haddad precisam navegar nas águas turbulentas da política real, pressionados pelo Teto e o Tatame, pelas legítimas demandas sociais, pelas pressões espúrias das elites e pela necessidade de reduzir os estragos dos setores da extrema-direita que tramam permanentemente contra o Estado Democrático de Direito. Esse componente político também condicionou o conjunto de compromissos assumidos na posse, dentre eles o arcabouço fiscal e na constituição de um amplo arco de alianças. Estas englobaram tanto os eleitores tradicionais do Partido dos Trabalhadores, como os setores sociais mais afinados com a defesa do status quo, do qual o arranjo entre dívida pública e juros elevados são componentes.

O desejo de cumprir todos os compromissos assumidos nos palanques confronta a dura realidade imposta pelo novo Teto de Gastos. A magnitude desse desafio está novamente explicitada com a reação do “mercado” ao pacote, insatisfeito com a ausência de cortes em áreas diretamente vinculadas ao bem-estar da população, como saúde e educação. Há uma mal disfarçada insatisfação por parte da oligarquia financeira em relação ao aumento dos impostos sobre os maiores rendimentos e uma implícita convicção de que o Legislativo manterá sua tradicional conduta de proteger a renda dos mais ricos.

Já o ensurdecedor silêncio em relação a nova regra de correção do salário-mínimo sinaliza a aprovação da proposta de moderação do principal mecanismo da sociedade brasileira para inclusão social no século XXI. Tributar os ricos é tão difícil quanto reduzir suas rações generosas de juros e subsídios. E punir os mais pobres costuma cobrar um preço muito grande em termos de apoio presente e perspectivas de sucesso eleitoral futuro, como sobejamente demonstrado ao longo da trajetória da frágil democracia brasileira.

Quando as urnas forem abertas no futuro, descobriremos se a população tem a mesma compreensão que o governo sobre a possibilidade de quadratura do círculo: produzir equilíbrio orçamentário com justiça social a um preço razoável para a maioria. Pelo que as nuvens sugerem, a conta dos ajustes seguirá sendo mais alta para quem está na base da pirâmide.

 

•                        Falso dilema. Por Fernando Netto Safatle

Já faz mais de três semanas que o governo Lula se debruça para saber onde cortar e quanto cortar em cada área dos ministérios. Até hoje não chegou a um consenso. Agora a decisão é incluir também os militares para tentar minimizar as críticas especialmente dentro do PT para que não passe a ideia de que são os pobres que estão pagando a conta. Na verdade, o governo Lula foi emparedado pela Faria Lima em um falso dilema: ou fica e o bicho come, ou corre e o bicho pega. Caiu na armadilha, não deixaram nenhuma saída. Ou corta os gastos, sobretudo, das áreas sociais, ou não, provocando o descalabro financeiro e o caos. A pressão da mídia é enorme.

A grande mídia bate insistentemente na mesma tecla, uma orquestração de um só maestro, como se não existisse saída, fosse uma estrada de mão única. Os economistas chamados a depor são todos ligados aos bancos, nenhum divergente, para dar a impressão de que não existe nenhuma discordância sobre essa matéria. Assim, sem nenhuma opinião ao contrário, vão encurralando o governo. Lula, o único que externou opinião contrária afirmou estar estupefato ao saber que mais de 550 bilhões de reais são gastos com subsídios aos empresários rurais e industriais, enquanto o governo se esfacela para cortar 20 a 30 bilhões dos pobres. Isso sem nenhuma contrapartida.

<><> A dívida pública

Por exemplo, nenhuma garantia de manutenção do emprego. Estava se referindo à desoneração fiscal aprovada pelo governo. Infelizmente, isso fica apenas em um choro de lamentações, sem nenhuma ação prática. É a eterna ilusão que essas coisas podem ser resolvidas intra muros, a nível institucional. Ora, são questões candentes, uma verdadeira luta de classes. Agora, se trava uma batalha por recursos também entre classes, o corte de gastos. Não existe aqui uma saída única, ao contrário, há várias saídas. Só que, são intocáveis. Por exemplo, a discussão sobre a dívida pública. Por quê não se discuti como uma das alternativas do corte de gasto? Porque ela está fora do teto de gasto e do arcabouço fiscal?

Pode se cortar os gastos sociais menos os gastos com serviços da dívida? Isso é intocável! O país gasta hoje 1 trilhão só com o pagamento dos juros da dívida. São 47% do orçamento público. Enquanto, o rombo fiscal atinge até setembro deste ano, 105 bilhões. Ou seja, o país tem recursos, não é falta, mas só que gasta quase a metade com o pagamento do serviço da dívida. Quando Getúlio Vargas assumiu em 1930 o governo se deparou com uma dívida enorme, convocou seu ministro Osvaldo Aranha e mandou fazer uma auditagem da dívida interna e externa. Levantou se que o primeiro contrato da dívida foi feito em 1824, especialmente com os bancos ingleses, depois vieram uma sucessão deles.

Essa dívida era herdada ainda de Portugal e transferida para o Brasil. A maioria das despesas era oriunda do próprio sistema da dívida, com juros exorbitantes, contratos fraudulentos, dívidas inexistentes, cláusulas abusivas, corrupção, etc. Essa auditoria foi dividida em seis fases. A primeira delas, realizada em 1932 foi a suspensão do pagamento da dívida. A sexta, nos inícios de 1940, foi a redução significativa de 60% da dívida. Com esse corte foi possível fomentar o processo de industrialização, como Petrobras, Vale, a siderurgia e reestruturação do aparelho estatal. A grande diferença dos investimentos ocorridos na época de Vargas e diferentemente da era de JK e do regime militar.

Foi que enquanto Getúlio Vargas obteve recursos de origem interna os dos outros eram de origem externa. Esse abismal endividamento externo levou o Brasil a um estrangulamento provocando uma estagnação econômica na década de 80. Os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e FHC tiveram que entregar ao capital estrangeiro recursos naturais para pagamento de parte da dívida. Getúlio Vargas foi o único governo a realizar auditoria da nossa dívida pública. Tivemos outras experiências, mas inacreditavelmente vetadas recentemente. Outra tentativa de auditar a dívida pública foi realizada durante o governo de Dilma Rousseff. Acreditem, vetada pela Dilma Rousseff, por incrível que pareça.

A proposta foi feita pelo deputado do PSOL, Edmilson Rodrigues. O projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional com a participação de entidades da sociedade civil. O veto foi publicado no Diário Oficial da União que prevê o planejamento das contas federais. A justificativa era de que a auditoria já era feita pelo Banco Central e TCU. Justificativa mais esfarrapada!

O motivo real, é claro, não foi esse. Pior de tudo que a Constituição Federal de 1988 prevê sua realização através do artigo 26 do Ato das Disposições Transitórias. Define com muito clareza seus objetivos, tais como: analisar o processo de endividamento do país; identificar ilegalidades e ilegitimidade na dívida; promover ações para rever o processo de endividamento.

Ou seja, estamos com 30 anos descumprindo a nossa Constituição! Em seu segundo mandato Lula anunciou que tinha pago a dívida com o FMI. Maria Lúcia Fattorelli, que faz parte da Auditoria Cidadão da Dívida, desmistifica afirmando que a dívida com o FMI apenas foi transferida para outros credores. Enquanto lá fora remunerava a 4%, aqui, na época remunera a 19%. Trocou se, a dívida externa pela dívida interna.

Se fizermos Auditoria hoje da dívida pública certamente iríamos encontrar a mesma situação que Getúlio Vargas encontrou na década de 1930, cerca de 60% de nossa dívida inexistente. E porque não cumpre com a legislação constitucional e realiza a auditoria da dívida pública?

Está lá na Constituição! Convoca-se um Plebiscito e joga a discussão para população decidir, com isso, ganha o seu apoio. Ora, não adianta ficar perplexo e querer resolver essa briga intramuros, com negociações em nível institucional. São questões de disputa de recursos entre classes que se deixar para resolver na mesa de negociação vamos perder sempre.

É uma ilusão achar que as coisas vão ser decididas, pura e simplesmente, assim. A alteração na correlação de forças só vai ser modificada se for para as ruas. Politiza essa questão e convoca um Plebiscito para ganhar apoio e convocar o Congresso para definir uma convocação de auditagem da dívida pública. Os recursos para cobrir o rombo tem que vir da auditagem da dívida pública. Afinal, a Constituição assim o exige!

 

Fonte: Por André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach no Jornal GGN/A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário: