Os relatos
de experiência de quase morte: 'Ouvia os gritos dos médicos tentando me salvar'
Durante
dois anos, a gaúcha Fernanda Schreiber Ramos Pereira passou por um tratamento
de fertilização que não deu certo. Pouco tempo depois, para sua surpresa, ela
engravidou naturalmente.
"Foi
um milagre", diz. "Mas eu mal sabia o que vinha pela frente."
Com
30 semanas de gestação, Fernanda passou por um parto de emergência em janeiro
de 2021, durante a pandemia de covid.
A
cirurgia foi um traumático divisor de águas em sua vida.
Um
choque hemorrágico no decorrer do procedimento a levou a perder 3,8 litros de
sangue dos 4,2 do seu corpo.
"Eu
ouvia todos os gritos dos médicos tentando me salvar, pedindo bolsa de sangue,
dizendo 'não consigo encontrar o [local do] rompimento uterino'. Via todo
aquele desespero e não tinha medo. Não entrei naquele clima. Porque eu não me
encontrava ali."
O
choque hemorrágico foi contido, e ela e a bebê foram realocadas para uma UTI.
Fernanda,
hoje com 39 anos, acabou sobrevivendo. Sua filha não resistiu.
"Pedi
sinceramente para me juntar [à filha], porque não tinha mais o que eu fazer
aqui. Só que a vida não é o que a gente quer. É o que tem."
Depois
da alta do hospital, Fernanda teve que reaprender a andar. E enquanto
vivenciava o luto pela filha, começou a processar o que tinha ocorrido durante
a cirurgia.
Naquela
fronteira entre a vida e a morte, ela conta que lembra de ter se visto fora do
corpo na mesa de operação. E de vivenciar um estado alterado de consciência em
forma de duas "visões".
"A
primeira foi que eu estava em um campo de flores. Não conseguia ver o céu, mas
conseguia ver que era um campo sem fim. Tinha várias flores e desse campo saía
um buquê gigantesco de rosas vermelhas. E foi um sentimento que eu nunca senti
na vida. Como uma plenitude", conta Fernanda.
"Eu
estava nesse lugar, mas não queria voltar porque eu me sentia parte de todo
aquele lugar, de tudo, assim. Não sabia quem estava me dando aquela flor, não
sabia se era a natureza, Deus... não sei, o universo. Não sabia quem estava me
dando aquela flor, mas, assim, foi maravilhoso."
A
segunda foi menos coerente.
"Essa
era como um videogame. Eu assistia a uma TV ou a um jogo, algo assim. Aí
nitidamente eu vi ursinhos pulando, e vinha doce em direção a eles. Eles
falavam e brincavam. Na hora eu não entendia e não queria saber o significado
dessa imagem. Só registrava. Mais adiante eu pensei que podia ser a ideia de
superar uma fase difícil, como num videogame."
Estados
alterados de consciência (as "visões", a sensação de se ver fora do
corpo) são cenários frequentemente descritos por pessoas que passaram pela
experiência de quase morte (EQM), um campo de estudo relativamente novo e que
vem atraindo mais atenção nos últimos anos, inclusive no Brasil.
Fernanda
muitas vezes é questionada se isso foi uma alucinação resultante de efeitos da
anestesia cirúrgica.
"Eu
ouço: 'Será que tu não teve algum delírio?'. Mas eu já passei por diversas
anestesias e não tive algo parecido."
• 'Quase morte'
Antes
de entrar na questão, é preciso entender as circunstâncias que propiciam esses
estados. Afinal, o que é uma "quase morte" para a ciência, para a
medicina?
De
forma geral, é um estágio em que o coração já parou de bater, mas em que ainda
resta uma janela de tempo para ressuscitação. Segundo o consenso tradicional na
medicina, logo após a parada cardíaca, oxigênio e sangue deixam de ser
bombeados e o cérebro para de funcionar.
A
questão é: se ele está desligado, o que explica a capacidade de produzir as visões
durante uma EQM? E como ficam depois gravadas na memória? Afinal, mesmo para
uma "alucinação" é preciso um cérebro em atividade.
A
pesquisadora Jimo Borjigin, da Universidade de Michigan (EUA), monitorou o
nível de atividade cerebral durante esse estágio de quase colapso da vida,
primeiro em ratos e, posteriormente, em quatro pacientes humanos.
E
se deparou com um cenário que contradiz a medicina clássica: o cérebro não está
paralisado. Pelo contrário, há uma "tempestade" de atividade.
"É
como se um celular de conexão 1G de repente virasse um 5G", diz ela à BBC
News Brasil. "Dessa forma, o cérebro pode carregar mais informação de
forma muito mais rápida."
Borjigin
aponta que há uma torrente de atividade gama, de ondas super-rápidas, na
chamada "zona quente do cérebro" — uma área acionada em experiências
visuais e auditivas, além de estar relacionada a sonhos, alucinações visuais da
epilepsia e justamente estados alterados de consciência.
Essa
hiperatividade parece consonante com a intensidade dos relatos de EQM: são os
"filmes da vida" que se passam em microssegundos, cenas com explosões
de cores e tonalidades, uma sensação de paz interior, além do inefável — o que
fica difícil traduzir em palavras.
E,
para a pesquisadora, o que é chamado de "alucinação" (um termo mais
adequado para distúrbios psiquiátricos e não para a experiência de quase morte,
ela ressalta) não invalida o fato de que tudo aquilo foi vivenciado
internamente.
"Só
porque temos dificuldade de entender o que os pacientes estão sentindo, não
quer dizer que não aconteceu para eles dentro do cérebro, certo?"
Para
Borjigin, a pergunta mais importante gira em torno da razão para o corpo
disparar essa hiperatividade na cabeça.
"Acho
que essa ativação cerebral talvez indique um mecanismo de sobrevivência
embutido. É como se o cérebro fizesse um cálculo rápido através dessa atividade
gama", diz.
Há
uma vastidão de mistérios a serem compreendidos, inclusive em episódios que
acontecem depois da EQM propriamente dita.
Fernanda,
por exemplo, conta de alguns efeitos intrigantes que ela relaciona à sua
experiência.
"Nunca
fui uma pessoa de escrever ou de ler muito. Após esse episódio, às vezes eu
acordava de madrugada com um texto pronto na minha cabeça. Eu via alguma série
durante o dia ou lia alguma coisa e acordava com uma 'mensagem' completa sobre
o conteúdo. Parecia um canal aberto."
Ela
está participando de uma pesquisa conduzida por Ana Cláudia Mesquita Garcia,
professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas (MG) e
enfermeira paliativista.
A
pesquisadora é interessada em investigar estados alterados da consciência pelo
potencial de benefícios na saúde de forma geral. Ela já estudou como
substâncias psicodélicas podem ajudar portadores de doenças graves, incluindo
pacientes no fim da vida, no alívio de sintomas angustiantes.
Também
coordena o Death Cafe Alfenas, um projeto de extensão baseado em uma ideia que
surgiu na Suíça, em 2004. É um espaço mais informal e relaxado para discutir a
finitude da vida, um tema visto muitas vezes como tabu.
"Na
maior parte desses relatos [de EQM], a pessoa disse que foi uma experiência
transformadora para ela de forma positiva, com um impacto para o resto da vida
dela. Ela passa a repensar as escolhas, então tem realmente, pelo relato dessas
pessoas, um impacto positivo na vida", afirma.
A
proposta de Ana Garcia é analisar entrevistas com pessoas que passaram por uma
EQM. A partir dessa coletânea, identificar os padrões que caracterizam esses
episódios, usando uma escala científica desenvolvida pelo psiquiatra americano
Bruce Greyson e adaptada para o Brasil.
Ela
quer entender quais são os impactos positivos (e também os negativos) na vida
que provêm de uma experiência de quase morte.
"Os
profissionais de saúde precisam saber que essas experiências existem e saber
como abordar com o paciente, porque muitas vezes a pessoa evita falar porque
acha que não vão acreditar nela. O profissional de saúde pode se preparar para
escutar sem julgar e entender da melhor maneira possível o que o paciente
vivenciou."
Fernanda
passou por estresse pós-traumático e uma espécie de solidão resultante da
experiência. Houve o choque vivenciado na cirurgia. Houve a perda da filha.
"Ter
coragem não é fácil. É muito sofrido. Vou ser bem sincera: por causa do luto
pela morte da minha filha, eu me sinto muito solitária. Para as pessoas, é
difícil compreender o que se passou."
"Os
médicos dizem que eu, meu marido e minha mãe passamos por um estresse
pós-traumático. É como se a gente fosse para guerra e voltasse com vários
gatilhos para o resto da vida. Porque o que a gente vivenciou no hospital foi
muito forte."
A
pesquisadora Ana Garcia também investiga a temática da espiritualidade em
saúde, com o intuito de entender melhor a "dimensão espiritual" do
ser humano — uma expressão que pode soar esotérica, mas que denomina um
elemento de valor na vida de um indivíduo.
"A
espiritualidade é algo que faz parte da gente como ser humano, nós nascemos com
essa busca por significado, por propósito e transcendência, ou seja, uma busca
por algo que está além de nós, que é maior do que nós. Obviamente o que é
transcendente para um pode não ser para o outro."
Fernanda
diz que hoje valoriza o que passou: "Hoje eu me sinto muito honrada de ter
passado por essa experiência, muito honrada mesmo."
"Uma
pergunta que sempre fazem: se eu vi alguém, se alguém falou comigo, como é que
foi? E eu digo que eu não vi ninguém, só a natureza. Então perguntam: 'Tu
sentia que existia uma hierarquia, tipo alguém acima de ti? Sim. Senti. Como eu
falei: eu fazia parte de um todo. Não dizia respeito a uma Fernanda humana, mas
parte de um todo. Mas sentia que era algo maior do que eu."
Ela
hoje desenvolve um projeto com duas psicólogas em que trabalha com mulheres o
fortalecimento feminino por meio de livros, escritos e troca de experiências.
"Fiquei com mais sede de viver. Tenho muito mais amor, mais sangue nos
olhos para viver."
Fonte:
BBC News BRasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário