O dilema
dos parentes de quem opta pela morte assistida
No
mesmo dia em que Marjorie* tomou conhecimento do diagnóstico de câncer da mãe,
soube da sua decisão de deixar o Reino Unido e ir para a Suíça, onde poderia
legalmente optar por uma morte assistida. Apesar de ter reservas quanto a esse
anúncio abrupto, Marjorie concordou em ajudá-la na viagem. Ela nos contou que
sua mãe havia feito esta escolha "porque ela sempre foi muito independente
e odiava a ideia de ter que depender de mim. Ela era cientista. Estava agindo
de acordo com sua abordagem bastante racional da vida."
Mas
havia outro motivo pelo qual a mãe de Marjorie se candidatou a fazer parte da
organização suíça sem fins lucrativos Dignitas, que oferece suicídio assistido
por médicos a pessoas com doença terminal, ou doença física ou mental grave.A
mãe foi marcada pela experiência de ter visto seu próprio pai morrer, e não
pôde ajudar a abreviar o sofrimento. Como Marjorie explicou: “O vovô sempre
teve o controle de tudo, mas isso lhe foi negado em sua morte. Minha mãe era
muito próxima a ele. Quando ele começou a morrer, implorou para que isso
acontecesse logo. Porém, ainda levou mais três dias em sofrimento até a morte
chegar. Minha mãe disse que a experiência confirmava sua opinião de que era
necessário ter um plano no bolso para quando isso acontecesse. Aconteceu quando
ela recebeu o diagnóstico.”
A
história de Marjorie é apenas uma das milhares que acontecem no mundo todo a
cada ano. Alguma forma de morte acelerada é legal, ou está em vias de se tornar
legal, em todos ou em parte de pelo menos 13 países, e está sendo considerada
em vários outros. O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, apoia uma
mudança na lei sobre a morte assistida — uma proposta para legalizar o
procedimento na Inglaterra e no País de Gales, que está em tramitação no
Parlamento, recebeu o aval de parlamentares no fim de novembro, abrindo caminho
para uma mudança na legislação. Atualmente, a Inglaterra e o País de Gales têm
sido amplamente criticados por sua falta de clareza sobre o assunto. Uma equipe
policial está sendo processada por prender um cidadão que estava retornando da
organização Dignitas, sob suspeita de incentivar o suicídio. Enquanto isso, o
Parlamento escocês parece estar pronto para seguir a Irlanda na legalização do
direito de morrer com assistência em casos previstos. Em Jersey e na Ilha de
Man, territórios com certa autonomia, a legislação já foi aprovada. Optar por
abreviar o fim da vida é uma decisão muito pessoal e cuidadosamente
considerada. Mas, raramente é tomada de forma isolada: as pessoas contam com o
apoio emocional e prático de familiares, amigos e médicos de confiança. Depois
que a morte ocorre, elas continuam conectadas ao episódio para testemunhar
sobre a jornada extraordinária - e suas próprias experiências.
Com
colegas da Universidade de Lancaster, nós entrevistamos a família e os amigos
de muitas pessoas que decidiram apressar a própria morte, seja por meio da
eutanásia (quando um médico administra medicamentos letais), do suicídio
assistido (um médico prescreve um medicamento, mas o paciente o administra por
conta própria) ou da interrupção voluntária da ingestão de alimentos e bebidas.
Também conversamos com profissionais de saúde que estiveram várias vezes
presentes no processo de mortes aceleradas. Muitos relatos de quem decidiu
ajudar alguém nessa empreitada continham o sentimento de uma enorme
responsabilidade. Alguns descreveram a incumbência como uma “honra”, que pode
ter sido parcialmente motivada por sua convicção moral de ajudar a evitar o
sofrimento desnecessário, já que não há esperança de cura, e dar dignidade para
a despedida final da vida. No entanto, as pessoas com quem conversamos estavam
sempre cientes de serem julgadas por outras pessoas, tanto por terem escolhido
apressar a própria morte ou por terem ajudado outros com o mesmo objetivo. Em
alguns casos, isso levou a sentimentos duradouros de culpa e ansiedade,
complicando a dor já gerada por ver - e ajudar - um amigo próximo ou ente
querido a falecer.
• O
momento em que se pede para ajudar alguém a morrer
Joanne
e Dale estavam casados há quase 50 anos quando perceberam sinais de que Dale,
um administrador escolar aposentado, estava desenvolvendo demência. Embora
morassem em um dos Estados americanos que permitiam algumas formas de morte
assistida, os requerentes tinham que ter um prognóstico de menos de seis meses
de vida. O casal descobriu a opção alternativa de parar voluntariamente de
comer e beber (a sigla VSED refere-se a Voluntarily Stopping Eating and
Drinking) por meio de uma apresentação da organização local de direitos no fim
da vida. Eles aprenderam que deixar de ingerir líquidos leva à desidratação e à
morte, geralmente entre 10 a 14 dias. Joanne disse que a ideia oferecia uma
maneira de aproveitarem o tempo de qualidade que lhes restava e, paralelamente,
aliviava a ansiedade de Dale sobre um futuro vivendo com demência em uma
instituição de cuidados por muitos anos. “Acho que essa era uma das coisas que
mais o assustava”, disse ela. Joanne pesquisou sobre os caminhos legalmente
disponíveis e concluiu que não estaria se colocando em risco legal ao ajudá-lo
(o VSED não é coberto pela legislação americana e, em geral, é considerado
legal). Outro fator decisivo foi a visita ao médico de Dale, que concordou em
fornecer medicação para reduzir o desconforto durante o processo de parar de
comer e beber voluntariamente. Joanne disse que a decisão deles ajudou a
aliviar os pensamentos suicidas que Dale estava tendo no início, quando suas
habilidades cognitivas começaram a diminuir: “Às vezes, ele ainda acordava à
noite e dizia: 'Preciso acabar com isso. Não posso viver assim’. E eu
respondia: ‘Bem, você sabe que temos um plano - estou aqui e vou apoiá-lo, e
seu médico também’. Isso o tranquilizava e ele podia seguir em frente. Foi o
desespero que ele sentiu que me ajudou a aceitar sua escolha e a perceber que
eu podia fazer isso”.
Nem
todas as pessoas com quem conversamos se sentiram tão à vontade quanto Joanne
ao serem solicitadas a ajudar numa situação dessa. Stephanie, por exemplo,
sabia há muito tempo que seu pai era membro de uma associação de direito à
morte, na Suíça, onde ele tinha nascido. Ela discordava da escolha, mas
respeitava o direito de alguém fazê-la. No entanto, quando o pai anunciou que
buscaria este caminho, após ser diagnosticado com um câncer que progredia
rapidamente, ela admitiu que se sentiu profundamente em conflito: “Quando ele
ficou doente, disse imediatamente: ‘Ah, de qualquer forma, não me importo,
estou registrado em uma associação pelo direito de morrer". E eu ponderei:
'Ouça, primeiro vamos examinar sua situação. Veremos o que é possível fazer.
Primeiro você vai lutar e depois veremos como as coisas vão evoluir’.” No
entanto, mesmo pedindo mais tempo e esperando que ele optasse por uma morte
natural, Stephanie se sentiu obrigada a respeitar a intenção do pai, ajudando-o
a investigar as etapas para realizar uma passagem assistida. À medida que a
doença avançava, ele insistia em manter o controle sobre o momento de sua
morte, os detalhes de seu funeral e assuntos imobiliários. Stephanie e seu
irmão tentaram ajudá-lo, embora pessoalmente não fossem a favor da morte
assistida.
• Planejando
uma morte assistida
Para
Marjorie e sua mãe, os meses entre a decisão de buscar uma morte com a Dignitas
e a partida para a Suíça foram “agridoces”, alternando momentos bons com outros
terríveis. A mãe de Marjorie havia pedido que ela mantivesse segredo sobre os
planos para todos, exceto os mais próximos da família. Ela também precisava de
ajuda para planejar a viagem: ”Ela não conseguia mais usar seu laptop, então
fui eu quem teve que fazer toda a organização.” As pessoas que são importantes
para quem toma decisões definitivas como essas são, geralmente, chamados para
ajudar com a logística, desde os planos de viagem e a organização dos cuidados
em casa até a retirada da receita letal na farmácia. Joanne se recorda de ter
passado meses localizando os suprimentos e os serviços de assistência de que
Dale precisaria quando começasse a viver em VSED - tarefas que se tornaram cada
vez mais difíceis para ele à medida que a demência progredia. Joanne descreveu
o “grande e velho fichário” que ela encheu com todas as informações e formulários
que estava coletando. Ela disse que era muito reconfortante saber que tinha
todas as informações necessárias nas mãos. Então, de repente, a demência de
Dale piorou. Após consultar outra família que havia realizado o VSED, Joanne
relembrou: “Eu havia encomendado todas as coisas de que precisaríamos. Também
descobri onde alugar uma cama de hospital e outras possíveis necessidades. Acho
que isso me ajudou mais do que ajudou Dale, porque ele não estava
necessariamente ciente de todas essas coisas. Mas era algo que eu precisava
fazer, para me sentir preparada. E, no final das contas, eu estava preparada.”
Por outro lado, a determinação de Stephanie e de seus irmãos de respeitar os
desejos do pai foi prejudicada quando ele mudou de ideia várias vezes sobre a
data de sua morte. Ele tomou antibióticos para controlar uma infecção que
poderia ter sido fatal antes da data escolhida e, em seguida, vacilou novamente
na noite anterior à morte planejada. A incerteza desgastou a família, que havia
trazido o pai do hospital para casa para cuidar dele, mas teve dificuldades
para acompanhar suas mudanças de humor. O médico que conduziu a entrevista para
confirmar a elegibilidade do pai levou a decisão dele ao pé da letra; mas,
Stephanie nos disse que gostaria que ele tivesse explorado a ambivalência do
pai mais profundamente. Sentindo-se obrigados a honrar os desejos dele, mas
frustrados quando esses desejos mudaram mais uma vez, Stephanie e seu irmão
finalmente perderam a paciência com o pai na noite anterior à consulta agendada
e disseram a ele que não o acompanhariam na morte.
• Acompanhar
um ente querido em sua jornada final
Marjorie
deixou seus dois filhos com uma amiga e resolveu se dedicar apenas à mãe. No
dia em que chegaram a Zurique, elas ficaram sozinhas, sem saber como aproveitar
o tempo. Sua estada lá foi, segundo descreveu, "como o Mágico de Oz a
cores”: ”Tudo foi intensificado. Cada momento se torna realmente precioso. É
impossível acreditar que essa pessoa viva à minha frente estará morta em poucas
horas - simplesmente impossível. Aquela noite foi muito difícil porque fizemos
uma refeição juntas, o último jantar. Nenhuma de nós estava com muita fome, mas
tomamos uma taça de vinho. Ela brincou dizendo que era sua última ceia.”
Uma
das maneiras importantes pelas quais nossos entrevistados - e os especialistas
em ética médica - distinguem a morte acelerada do suicídio é sua natureza mais
social. O suicídio é geralmente ilegal e as pessoas que optam por morrer por
assim tendem a manter seus planos e o ato em segredo, para que outros não
tentem impedi-las ou sejam acusadas de ajudá-las. No entanto, mesmo em uma
morte acelerada, poucas pessoas, além dos apoiadores mais próximos da pessoa
que está morrendo, geralmente sabem dos planos com antecedência. Nos Estados
Unidos, na Suíça e na Áustria, os indivíduos devem autoadministrar o
medicamento, às vezes com bebida, mas, mais comumente (na Suíça), através de
uma infusão intravenosa. As pessoas que param de comer e beber precisam de atenção
24 horas por dia, pois ficam fisicamente mais fracas em um período de uma a
duas semanas. Nas semanas, dias e horas que antecedem a data final da vida, a
família e os amigos relataram muitos sentimentos diferentes. Não existe um
roteiro que diga às pessoas que planejam a morte e àquelas que as ajudam como
se preparar para a ocasião. Muitas vezes, a progressão da doença dita o
momento.
Depois
que a demência de Dale piorou muito, ele e Joanne escolheram deliberadamente a
data de início da VSED com a família em mente. Ela explicou: “Era dezembro, e
ele não queria que isso se sobrepusesse ao Natal. Não é algo que você quer que
seus filhos e netos sempre associem às festas de fim de ano". Mas eles
também tinham receio de esperar até o ano novo, pois nessa época Dale poderia
ter perdido a capacidade de se concentrar em não comer. Em vez disso, eles
optaram por fazer isso rapidamente no início de dezembro: “De muitas maneiras,
isso nos ajudou, porque não havia essa história de: ‘Ah, talvez possamos
esperar mais um mês ou até seis meses. Os cuidadores poderiam estar aqui, o
médico estava a bordo …. Em apenas uma semana, mais ou menos, pudemos dizer:
'Estamos prontos para começar’.”
• O
dia da morte
Nas
horas que antecederam sua morte, a mãe de Marjorie se reuniu com um médico em
um ambiente semelhante a um lar mantido pela Dignitas em uma área residencial
de Zurique. O médico fez perguntas para confirmar que ela entendia o que estava
pedindo. Para Marjorie, o tempo parou: “Minha mãe teve que tomar um medicamento
para evitar vômito primeiro. O período mais curto depois do qual você pode
tomar os barbitúricos é meia hora, e ela disse: ‘Certo, é meia hora’.
Finalmente, o médico disse: ‘Se você tomar isso, você vai morrer’ - e ela
disse: ‘Sim, sim’. Então ela teve que beber na frente deles.”
Para
aqueles que atenderam aos requisitos rigorosos da organização, um médico da
Dignitas prescreve medicamentos que são misturados em água. A pessoa deve beber
a solução na água sozinha ou ser capaz de manipular uma válvula para
administrar os medicamentos por meio de uma sonda nasogástrica ou porta
intravenosa. A mistura é tão amarga que primeiro é administrado um medicamento
contra náusea para reduzir as chances de a pessoa vomitar antes que o
medicamento letal faça efeito. Para a mãe de Marjorie, essa era uma preocupação
especial: “A pior parte para mim foi quando ela começou a passar mal porque o
gosto é muito, muito amargo. Mas então ela simplesmente disse: “Estou me
sentindo tonta” e a colocamos na cama. Tentamos deitá-la, mas eles disseram
para mantê-la de pé por um tempo, para que os medicamentos pudessem passar por
seu corpo. Depois, ela deitou-se, entrou em um sono profundo e, após 20
minutos, o médico disse: ‘Ela se foi’. Tudo aconteceu muito rápido. Ela
simplesmente foi embora. Foi tranquilo, mas isso ficou comigo.” A rapidez de
uma morte planejada é algo que muitos cuidadores familiares relatam. Alguns
descreveram que mantiveram a dor sob controle antes da morte para se
concentrarem nas necessidades do paciente ou na logística; outros relataram o
alívio de que o ente querido pôde morrer do jeito que queria, com menos
sofrimento do que a doença poderia acarretar. Um aspecto singular da morte por
falta de comida e bebida é que, à medida que o paciente fica mais fraco e menos
consciente, os cuidadores precisam desempenhar um papel ativo para garantir que
a morte ocorra como planejado - permanecendo vigilantes para mantê-lo
confortável e lembrá-lo de não beber. Isso pode ser estressante tanto para os
entes queridos quanto para os profissionais de saúde. Joanne relatou: “Dale
deixou bem claro no início que não queria que nossos filhos estivessem aqui nos
primeiros dias. Ele pensou: ‘Se as crianças vierem, possivelmente vão me pedir
para mudar de ideia, para esperar’… Então, todos chegaram no oitavo dia. Isso
foi um pouco difícil para eles, mas tiveram a chance de estar com o pai antes
do início do fim.”
As
famílias geralmente descrevem esse período como significativo, porém lento.
Joanne contava com a ajuda de auxiliares contratados para ficar com Dale à
noite, para que ela pudesse comer sem distraí-lo e dormir o tão necessário
sono: “Esses dias foram difíceis para mim porque eu sabia que estávamos
chegando ao fim. Ao mesmo tempo, eu me perguntava quanto tempo mais poderia
durar, porque não havia como saber - e ele tinha entrado nessa situação como
alguém de boa saúde.”
Para
Stephanie, o dia da morte de seu pai trouxe a reconciliação. Ela foi acordada
por uma ligação dizendo que ele planejava seguir com sua decisão. Quando
chegaram, ele pediu desculpas por ter prejudicado a família com suas exigências
de controle. Stephanie se lembra dele lhe dizendo: “Você prometeu que seguraria
minha mão!” Ela respondeu: “Eu prometi, estou aqui e vou ficar, então não se
preocupe.” O irmão de Stephanie e a namorada de seu pai se despediram. Agora
ela era o único membro da família que restava com o médico, que preparou a
poção para seu pai tomar: “Depois de tomar o preparo, ele começou a dizer: ‘Ah,
estou feliz - tive uma vida boa, meus netos são ótimos e minha filha me dá a
mão. Isso é ótimo’. E bem, eu não fiquei chocada com o que vi. Senti que estava
testemunhando uma morte natural - mas, por outro lado, senti a vida escorrendo
por entre meus dedos; realmente vivenciei isso.”
Depois
de quase três quartos de hora, a morte de seu pai foi declarada. Para
Stephanie, o que permanece não é a forma como seu pai morreu, mas o preço
emocional de chegar lá: “Ele nos levou a um turbilhão, e não sei se ele
realmente tinha o direito de nos arrastar para isso. É algo que não deveríamos
fazer com as pessoas que amamos. Por outro lado, eu não gostaria que ele
tivesse feito isso em segredo e, de repente, recebêssemos um telefonema… Eu
teria ficado muito zangada.”
• Experiências
dos profissionais de saúde
Embora
seja improvável que pessoas como Stephanie, Joanne e Marjorie testemunhem mais
de uma morte acelerada, alguns profissionais de saúde se deparam com esse tipo
de despedida final em várias ocasiões. A magnitude de testemunhar, facilitar ou
administrar os medicamentos letais, pode pesar muito em profissionais mais
treinados e orientados para preservar a vida do que para acabar com ela.
Heleen,
uma auxiliar de saúde em um hospício na Bélgica, disse que tenta realizar tudo
o que os pacientes desejam em suas últimas horas. Em um caso, ela atendeu a um
pedido de manicure, maquiagem e ajuda para vestir a roupa favorita. Em outro,
ela se lembrou de ter ajudado uma família a preencher os tensos minutos finais,
apesar de não saber que se tratava de uma eutanásia planejada: “Começamos a
comer na enfermaria ao meio-dia e meia e, naquele dia, fiz batatas fritas para
todos… Depois, fui ao quarto do paciente: “Quem quer comer batatas fritas? Dois
filhos estavam sentados ao lado da cama e pareciam muito tristes e um pouco
bravos comigo: ‘Não, meu pai vai fazer eutanásia em meia hora’.” Heleen
imediatamente pediu desculpas à família por não ter lido o relatório da
enfermaria antes de ir até eles. Eles lhe disseram que não se preocupasse e ela
continuou com sua ronda de almoço. “Cerca de dez minutos depois, eles vieram
atrás de mim dizendo: ‘Ele quer comer batatas fritas, pedimos ao médico para
demorar um pouco mais’. O paciente queria comer batatas fritas dez minutos
antes da injeção! Então, ele sentou com o prato no colo, e comeu com os filhos.
Foi um final agradável e feliz.”
Para
muitos profissionais de saúde, facilitar esses momentos nos últimos dias e
horas pode aliviar seus próprios sentimentos de dissonância ao saber que uma
vida está prestes a terminar. Todos nos disseram que uma morte acelerada nunca
é "normal” porque ela “fica” com você. Anika, uma médica belga que
supervisiona uma ala de cuidados paliativos, estava bem ciente de como essas
mortes afetam tanto o médico que as presencia quanto toda a equipe: “É
importante providenciar apoio para si mesmo… No dia em que você realiza a
eutanásia, é muito importante ter alguém para sair à noite, por exemplo. Não é
normal e causa muito impacto… Às vezes, você lê sobre médicos que realizam seis
casos de eutanásia em meio ano. Não consigo imaginar isso de jeito nenhum. Para
mim, realmente, leva um ano até que eu supere isso e pense: ‘Ok, agora estou
pronto para uma nova trajetória’.”
• As
consequências de uma morte planejada
Nos
dias e semanas seguintes, Marjorie se viu transmitindo não apenas a notícia da
morte, mas também os meios. Sua mãe havia escrito cartas para seus muitos
amigos para que Marjorie postasse depois de voltar da Suíça, em vez de realizar
um serviço funerário: “Isso foi difícil, porque tive de lidar com as reações
emocionais de todas essas pessoas que eu não conhecia muito bem. Elas sabiam
que minha mãe estava muito doente, e algumas escreveram para dizer que achavam
que a escolha dela era bastante compreensível. Outras pareciam muito chocadas e
desapontadas por não terem sabido do plano antes de ela morrer.”
Familiares
e amigos descreveram o compartilhamento da notícia da morte de um ente querido
como um processo complexo de avaliação: quantos detalhes a outra pessoa
precisa? Ela entenderá a escolha da morte acelerada? Esse tipo de morte deve
ser compartilhado em um obituário? Alguns relataram que se sentiram incapazes
de receber apoio de pessoas, mesmo as próximas, que não conheciam a história
completa. Marjorie disse que a falta de um serviço funerário foi outro fator
complicador para ela: “Tive de enviar e-mails e falar com muitas pessoas. Acho
que se eu as tivesse convidado para um funeral, elas não teriam exigido tanto
do meu tempo e da minha emoção, pois poderiam ter comparecido. Era como se elas
precisassem de uma válvula de escape.”
No
final das contas, Marjorie ficou feliz por ter conseguido atender os desejos de
sua mãe. Mas concluiu que a logística, o sigilo e o esforço eram muito mais do
que uma pessoa que estava morrendo - e sua família precisaria ter que se
reorganizar. Nos anos que se seguiram à morte da mãe, ela começou a se
manifestar publicamente a favor de reformas para mudar a lei, de modo que as
pessoas no Reino Unido pudessem morrer assistidas em suas próprias casas. Ela
descreveu esse trabalho de campanha com orgulho, dizendo: “É como se algo
positivo fosse resultar da morte dela”. Surpreendentemente, alguns de nossos
entrevistados - especialmente aqueles que tiveram uma morte acelerada em
segredo no Reino Unido - sentiram que não podiam acessar o apoio ao luto que
geralmente está disponível para pessoas cujos entes queridos morreram por
causas naturais, por medo de serem presos. Mas, embora a necessidade de sigilo
contínuo sobrecarregue alguns após a morte, as descrições de culpa duradoura
foram raras em nossas entrevistas. Em vez disso, ouvimos muitos descreverem que
se sentiam em paz com sua decisão tomada em favor de um ente querido. Um dos
motivos pode ser o fato de que as pessoas interessadas em antecipar o fim da
vida tendem a pedir ajuda apenas a quem acreditam que as apoiarão ou que, pelo
menos, passarão a apoiá-las com o tempo. Além disso, as pesquisas sobre morte
acelerada geralmente dependem de pessoas que querem compartilhar suas
histórias; aqueles que tiveram experiências negativas podem ter menos probabilidade
de querer contá-las.
• Considerações
finais
É
provável que cresça o número de países que legalizem a opção de decidir quando
morrer, e optar por assistência, inclusive o Reino Unido. A maioria dos debates
sobre a legislação ainda se concentra no direito do indivíduo de fazer uma
escolha, embora isso não seja feito isoladamente. E dois grupos importantes
também precisam de apoio: os profissionais de saúde e as famílias. Há uma
suposição de que a morte assistida será integrada aos sistemas de saúde. No
entanto, embora pesquisas recentes com médicos do Reino Unidos mostrem que a
maioria é a favor de uma mudança na lei para permitir alguma forma de suicídio
com assistência, apenas uma minoria de médicos registrados está disposta a se
envolver diretamente na administração dos medicamentos. Devido a essa relutância,
serão necessários sistemas alternativos que garantam parceiros suficientes em
todos os estágios de uma morte acelerada, reduzindo a exposição dos médicos a
esse evento potencialmente estressante. Para os membros da família envolvidos
de perto, o processo pode parecer menos isolado com a ajuda de profissionais.
No entanto, os familiares e os amigos que estão na periferia podem ter
dificuldades para lidar com uma decisão da qual não fizeram parte devido ao
sigilo inerente à tomada de decisão. O impacto sobre eles pode ser profundo e o
apoio dos serviços de luto será importante.
Em
fevereiro de 2024, o relatório do comitê seleto de saúde e assistência social
do Reino Unido sobre a morte assistida reconheceu a complexidade da questão. É
fácil pensar nisso apenas em termos dos direitos de uma pessoa, mas cada um de
nós faz parte de uma sociedade constituída de direitos amplos. Todas as partes
envolvidas na morte assistida devem ser consultadas antes da introdução de uma
nova legislação. Fizemos um curta-metragem sobre as experiências de muitas
outras pessoas envolvidas em processos relacionados ao tema aqui tratado. O
debate é sutil e profundo, e devemos estar prontos para ouvir todos os relatos.
Se a lei mudar no Reino Unido (e em outros lugares) para permitir a morte
assistida, precisaremos encontrar uma solução que proteja e apoie a pessoa que
a solicita mas, também, os amigos, familiares e profissionais de saúde.
##
*Todos
os nomes neste artigo são pseudônimos para proteger a identidade dos
entrevistados.
Fonte:
Por Nancy Preston e Jane Lowers, para The Conversation
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