quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O dilema dos parentes de quem opta pela morte assistida

No mesmo dia em que Marjorie* tomou conhecimento do diagnóstico de câncer da mãe, soube da sua decisão de deixar o Reino Unido e ir para a Suíça, onde poderia legalmente optar por uma morte assistida. Apesar de ter reservas quanto a esse anúncio abrupto, Marjorie concordou em ajudá-la na viagem. Ela nos contou que sua mãe havia feito esta escolha "porque ela sempre foi muito independente e odiava a ideia de ter que depender de mim. Ela era cientista. Estava agindo de acordo com sua abordagem bastante racional da vida."

Mas havia outro motivo pelo qual a mãe de Marjorie se candidatou a fazer parte da organização suíça sem fins lucrativos Dignitas, que oferece suicídio assistido por médicos a pessoas com doença terminal, ou doença física ou mental grave.A mãe foi marcada pela experiência de ter visto seu próprio pai morrer, e não pôde ajudar a abreviar o sofrimento. Como Marjorie explicou: “O vovô sempre teve o controle de tudo, mas isso lhe foi negado em sua morte. Minha mãe era muito próxima a ele. Quando ele começou a morrer, implorou para que isso acontecesse logo. Porém, ainda levou mais três dias em sofrimento até a morte chegar. Minha mãe disse que a experiência confirmava sua opinião de que era necessário ter um plano no bolso para quando isso acontecesse. Aconteceu quando ela recebeu o diagnóstico.”

A história de Marjorie é apenas uma das milhares que acontecem no mundo todo a cada ano. Alguma forma de morte acelerada é legal, ou está em vias de se tornar legal, em todos ou em parte de pelo menos 13 países, e está sendo considerada em vários outros. O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, apoia uma mudança na lei sobre a morte assistida — uma proposta para legalizar o procedimento na Inglaterra e no País de Gales, que está em tramitação no Parlamento, recebeu o aval de parlamentares no fim de novembro, abrindo caminho para uma mudança na legislação. Atualmente, a Inglaterra e o País de Gales têm sido amplamente criticados por sua falta de clareza sobre o assunto. Uma equipe policial está sendo processada por prender um cidadão que estava retornando da organização Dignitas, sob suspeita de incentivar o suicídio. Enquanto isso, o Parlamento escocês parece estar pronto para seguir a Irlanda na legalização do direito de morrer com assistência em casos previstos. Em Jersey e na Ilha de Man, territórios com certa autonomia, a legislação já foi aprovada. Optar por abreviar o fim da vida é uma decisão muito pessoal e cuidadosamente considerada. Mas, raramente é tomada de forma isolada: as pessoas contam com o apoio emocional e prático de familiares, amigos e médicos de confiança. Depois que a morte ocorre, elas continuam conectadas ao episódio para testemunhar sobre a jornada extraordinária - e suas próprias experiências.

Com colegas da Universidade de Lancaster, nós entrevistamos a família e os amigos de muitas pessoas que decidiram apressar a própria morte, seja por meio da eutanásia (quando um médico administra medicamentos letais), do suicídio assistido (um médico prescreve um medicamento, mas o paciente o administra por conta própria) ou da interrupção voluntária da ingestão de alimentos e bebidas. Também conversamos com profissionais de saúde que estiveram várias vezes presentes no processo de mortes aceleradas. Muitos relatos de quem decidiu ajudar alguém nessa empreitada continham o sentimento de uma enorme responsabilidade. Alguns descreveram a incumbência como uma “honra”, que pode ter sido parcialmente motivada por sua convicção moral de ajudar a evitar o sofrimento desnecessário, já que não há esperança de cura, e dar dignidade para a despedida final da vida. No entanto, as pessoas com quem conversamos estavam sempre cientes de serem julgadas por outras pessoas, tanto por terem escolhido apressar a própria morte ou por terem ajudado outros com o mesmo objetivo. Em alguns casos, isso levou a sentimentos duradouros de culpa e ansiedade, complicando a dor já gerada por ver - e ajudar - um amigo próximo ou ente querido a falecer.

                        O momento em que se pede para ajudar alguém a morrer

Joanne e Dale estavam casados há quase 50 anos quando perceberam sinais de que Dale, um administrador escolar aposentado, estava desenvolvendo demência. Embora morassem em um dos Estados americanos que permitiam algumas formas de morte assistida, os requerentes tinham que ter um prognóstico de menos de seis meses de vida. O casal descobriu a opção alternativa de parar voluntariamente de comer e beber (a sigla VSED refere-se a Voluntarily Stopping Eating and Drinking) por meio de uma apresentação da organização local de direitos no fim da vida. Eles aprenderam que deixar de ingerir líquidos leva à desidratação e à morte, geralmente entre 10 a 14 dias. Joanne disse que a ideia oferecia uma maneira de aproveitarem o tempo de qualidade que lhes restava e, paralelamente, aliviava a ansiedade de Dale sobre um futuro vivendo com demência em uma instituição de cuidados por muitos anos. “Acho que essa era uma das coisas que mais o assustava”, disse ela. Joanne pesquisou sobre os caminhos legalmente disponíveis e concluiu que não estaria se colocando em risco legal ao ajudá-lo (o VSED não é coberto pela legislação americana e, em geral, é considerado legal). Outro fator decisivo foi a visita ao médico de Dale, que concordou em fornecer medicação para reduzir o desconforto durante o processo de parar de comer e beber voluntariamente. Joanne disse que a decisão deles ajudou a aliviar os pensamentos suicidas que Dale estava tendo no início, quando suas habilidades cognitivas começaram a diminuir: “Às vezes, ele ainda acordava à noite e dizia: 'Preciso acabar com isso. Não posso viver assim’. E eu respondia: ‘Bem, você sabe que temos um plano - estou aqui e vou apoiá-lo, e seu médico também’. Isso o tranquilizava e ele podia seguir em frente. Foi o desespero que ele sentiu que me ajudou a aceitar sua escolha e a perceber que eu podia fazer isso”.

Nem todas as pessoas com quem conversamos se sentiram tão à vontade quanto Joanne ao serem solicitadas a ajudar numa situação dessa. Stephanie, por exemplo, sabia há muito tempo que seu pai era membro de uma associação de direito à morte, na Suíça, onde ele tinha nascido. Ela discordava da escolha, mas respeitava o direito de alguém fazê-la. No entanto, quando o pai anunciou que buscaria este caminho, após ser diagnosticado com um câncer que progredia rapidamente, ela admitiu que se sentiu profundamente em conflito: “Quando ele ficou doente, disse imediatamente: ‘Ah, de qualquer forma, não me importo, estou registrado em uma associação pelo direito de morrer". E eu ponderei: 'Ouça, primeiro vamos examinar sua situação. Veremos o que é possível fazer. Primeiro você vai lutar e depois veremos como as coisas vão evoluir’.” No entanto, mesmo pedindo mais tempo e esperando que ele optasse por uma morte natural, Stephanie se sentiu obrigada a respeitar a intenção do pai, ajudando-o a investigar as etapas para realizar uma passagem assistida. À medida que a doença avançava, ele insistia em manter o controle sobre o momento de sua morte, os detalhes de seu funeral e assuntos imobiliários. Stephanie e seu irmão tentaram ajudá-lo, embora pessoalmente não fossem a favor da morte assistida.

                        Planejando uma morte assistida

Para Marjorie e sua mãe, os meses entre a decisão de buscar uma morte com a Dignitas e a partida para a Suíça foram “agridoces”, alternando momentos bons com outros terríveis. A mãe de Marjorie havia pedido que ela mantivesse segredo sobre os planos para todos, exceto os mais próximos da família. Ela também precisava de ajuda para planejar a viagem: ”Ela não conseguia mais usar seu laptop, então fui eu quem teve que fazer toda a organização.” As pessoas que são importantes para quem toma decisões definitivas como essas são, geralmente, chamados para ajudar com a logística, desde os planos de viagem e a organização dos cuidados em casa até a retirada da receita letal na farmácia. Joanne se recorda de ter passado meses localizando os suprimentos e os serviços de assistência de que Dale precisaria quando começasse a viver em VSED - tarefas que se tornaram cada vez mais difíceis para ele à medida que a demência progredia. Joanne descreveu o “grande e velho fichário” que ela encheu com todas as informações e formulários que estava coletando. Ela disse que era muito reconfortante saber que tinha todas as informações necessárias nas mãos. Então, de repente, a demência de Dale piorou. Após consultar outra família que havia realizado o VSED, Joanne relembrou: “Eu havia encomendado todas as coisas de que precisaríamos. Também descobri onde alugar uma cama de hospital e outras possíveis necessidades. Acho que isso me ajudou mais do que ajudou Dale, porque ele não estava necessariamente ciente de todas essas coisas. Mas era algo que eu precisava fazer, para me sentir preparada. E, no final das contas, eu estava preparada.” Por outro lado, a determinação de Stephanie e de seus irmãos de respeitar os desejos do pai foi prejudicada quando ele mudou de ideia várias vezes sobre a data de sua morte. Ele tomou antibióticos para controlar uma infecção que poderia ter sido fatal antes da data escolhida e, em seguida, vacilou novamente na noite anterior à morte planejada. A incerteza desgastou a família, que havia trazido o pai do hospital para casa para cuidar dele, mas teve dificuldades para acompanhar suas mudanças de humor. O médico que conduziu a entrevista para confirmar a elegibilidade do pai levou a decisão dele ao pé da letra; mas, Stephanie nos disse que gostaria que ele tivesse explorado a ambivalência do pai mais profundamente. Sentindo-se obrigados a honrar os desejos dele, mas frustrados quando esses desejos mudaram mais uma vez, Stephanie e seu irmão finalmente perderam a paciência com o pai na noite anterior à consulta agendada e disseram a ele que não o acompanhariam na morte.

                        Acompanhar um ente querido em sua jornada final

Marjorie deixou seus dois filhos com uma amiga e resolveu se dedicar apenas à mãe. No dia em que chegaram a Zurique, elas ficaram sozinhas, sem saber como aproveitar o tempo. Sua estada lá foi, segundo descreveu, "como o Mágico de Oz a cores”: ”Tudo foi intensificado. Cada momento se torna realmente precioso. É impossível acreditar que essa pessoa viva à minha frente estará morta em poucas horas - simplesmente impossível. Aquela noite foi muito difícil porque fizemos uma refeição juntas, o último jantar. Nenhuma de nós estava com muita fome, mas tomamos uma taça de vinho. Ela brincou dizendo que era sua última ceia.”

Uma das maneiras importantes pelas quais nossos entrevistados - e os especialistas em ética médica - distinguem a morte acelerada do suicídio é sua natureza mais social. O suicídio é geralmente ilegal e as pessoas que optam por morrer por assim tendem a manter seus planos e o ato em segredo, para que outros não tentem impedi-las ou sejam acusadas de ajudá-las. No entanto, mesmo em uma morte acelerada, poucas pessoas, além dos apoiadores mais próximos da pessoa que está morrendo, geralmente sabem dos planos com antecedência. Nos Estados Unidos, na Suíça e na Áustria, os indivíduos devem autoadministrar o medicamento, às vezes com bebida, mas, mais comumente (na Suíça), através de uma infusão intravenosa. As pessoas que param de comer e beber precisam de atenção 24 horas por dia, pois ficam fisicamente mais fracas em um período de uma a duas semanas. Nas semanas, dias e horas que antecedem a data final da vida, a família e os amigos relataram muitos sentimentos diferentes. Não existe um roteiro que diga às pessoas que planejam a morte e àquelas que as ajudam como se preparar para a ocasião. Muitas vezes, a progressão da doença dita o momento.

Depois que a demência de Dale piorou muito, ele e Joanne escolheram deliberadamente a data de início da VSED com a família em mente. Ela explicou: “Era dezembro, e ele não queria que isso se sobrepusesse ao Natal. Não é algo que você quer que seus filhos e netos sempre associem às festas de fim de ano". Mas eles também tinham receio de esperar até o ano novo, pois nessa época Dale poderia ter perdido a capacidade de se concentrar em não comer. Em vez disso, eles optaram por fazer isso rapidamente no início de dezembro: “De muitas maneiras, isso nos ajudou, porque não havia essa história de: ‘Ah, talvez possamos esperar mais um mês ou até seis meses. Os cuidadores poderiam estar aqui, o médico estava a bordo …. Em apenas uma semana, mais ou menos, pudemos dizer: 'Estamos prontos para começar’.”

                        O dia da morte

Nas horas que antecederam sua morte, a mãe de Marjorie se reuniu com um médico em um ambiente semelhante a um lar mantido pela Dignitas em uma área residencial de Zurique. O médico fez perguntas para confirmar que ela entendia o que estava pedindo. Para Marjorie, o tempo parou: “Minha mãe teve que tomar um medicamento para evitar vômito primeiro. O período mais curto depois do qual você pode tomar os barbitúricos é meia hora, e ela disse: ‘Certo, é meia hora’. Finalmente, o médico disse: ‘Se você tomar isso, você vai morrer’ - e ela disse: ‘Sim, sim’. Então ela teve que beber na frente deles.”

Para aqueles que atenderam aos requisitos rigorosos da organização, um médico da Dignitas prescreve medicamentos que são misturados em água. A pessoa deve beber a solução na água sozinha ou ser capaz de manipular uma válvula para administrar os medicamentos por meio de uma sonda nasogástrica ou porta intravenosa. A mistura é tão amarga que primeiro é administrado um medicamento contra náusea para reduzir as chances de a pessoa vomitar antes que o medicamento letal faça efeito. Para a mãe de Marjorie, essa era uma preocupação especial: “A pior parte para mim foi quando ela começou a passar mal porque o gosto é muito, muito amargo. Mas então ela simplesmente disse: “Estou me sentindo tonta” e a colocamos na cama. Tentamos deitá-la, mas eles disseram para mantê-la de pé por um tempo, para que os medicamentos pudessem passar por seu corpo. Depois, ela deitou-se, entrou em um sono profundo e, após 20 minutos, o médico disse: ‘Ela se foi’. Tudo aconteceu muito rápido. Ela simplesmente foi embora. Foi tranquilo, mas isso ficou comigo.” A rapidez de uma morte planejada é algo que muitos cuidadores familiares relatam. Alguns descreveram que mantiveram a dor sob controle antes da morte para se concentrarem nas necessidades do paciente ou na logística; outros relataram o alívio de que o ente querido pôde morrer do jeito que queria, com menos sofrimento do que a doença poderia acarretar. Um aspecto singular da morte por falta de comida e bebida é que, à medida que o paciente fica mais fraco e menos consciente, os cuidadores precisam desempenhar um papel ativo para garantir que a morte ocorra como planejado - permanecendo vigilantes para mantê-lo confortável e lembrá-lo de não beber. Isso pode ser estressante tanto para os entes queridos quanto para os profissionais de saúde. Joanne relatou: “Dale deixou bem claro no início que não queria que nossos filhos estivessem aqui nos primeiros dias. Ele pensou: ‘Se as crianças vierem, possivelmente vão me pedir para mudar de ideia, para esperar’… Então, todos chegaram no oitavo dia. Isso foi um pouco difícil para eles, mas tiveram a chance de estar com o pai antes do início do fim.”

As famílias geralmente descrevem esse período como significativo, porém lento. Joanne contava com a ajuda de auxiliares contratados para ficar com Dale à noite, para que ela pudesse comer sem distraí-lo e dormir o tão necessário sono: “Esses dias foram difíceis para mim porque eu sabia que estávamos chegando ao fim. Ao mesmo tempo, eu me perguntava quanto tempo mais poderia durar, porque não havia como saber - e ele tinha entrado nessa situação como alguém de boa saúde.”

Para Stephanie, o dia da morte de seu pai trouxe a reconciliação. Ela foi acordada por uma ligação dizendo que ele planejava seguir com sua decisão. Quando chegaram, ele pediu desculpas por ter prejudicado a família com suas exigências de controle. Stephanie se lembra dele lhe dizendo: “Você prometeu que seguraria minha mão!” Ela respondeu: “Eu prometi, estou aqui e vou ficar, então não se preocupe.” O irmão de Stephanie e a namorada de seu pai se despediram. Agora ela era o único membro da família que restava com o médico, que preparou a poção para seu pai tomar: “Depois de tomar o preparo, ele começou a dizer: ‘Ah, estou feliz - tive uma vida boa, meus netos são ótimos e minha filha me dá a mão. Isso é ótimo’. E bem, eu não fiquei chocada com o que vi. Senti que estava testemunhando uma morte natural - mas, por outro lado, senti a vida escorrendo por entre meus dedos; realmente vivenciei isso.”

Depois de quase três quartos de hora, a morte de seu pai foi declarada. Para Stephanie, o que permanece não é a forma como seu pai morreu, mas o preço emocional de chegar lá: “Ele nos levou a um turbilhão, e não sei se ele realmente tinha o direito de nos arrastar para isso. É algo que não deveríamos fazer com as pessoas que amamos. Por outro lado, eu não gostaria que ele tivesse feito isso em segredo e, de repente, recebêssemos um telefonema… Eu teria ficado muito zangada.”

                        Experiências dos profissionais de saúde

Embora seja improvável que pessoas como Stephanie, Joanne e Marjorie testemunhem mais de uma morte acelerada, alguns profissionais de saúde se deparam com esse tipo de despedida final em várias ocasiões. A magnitude de testemunhar, facilitar ou administrar os medicamentos letais, pode pesar muito em profissionais mais treinados e orientados para preservar a vida do que para acabar com ela.

Heleen, uma auxiliar de saúde em um hospício na Bélgica, disse que tenta realizar tudo o que os pacientes desejam em suas últimas horas. Em um caso, ela atendeu a um pedido de manicure, maquiagem e ajuda para vestir a roupa favorita. Em outro, ela se lembrou de ter ajudado uma família a preencher os tensos minutos finais, apesar de não saber que se tratava de uma eutanásia planejada: “Começamos a comer na enfermaria ao meio-dia e meia e, naquele dia, fiz batatas fritas para todos… Depois, fui ao quarto do paciente: “Quem quer comer batatas fritas? Dois filhos estavam sentados ao lado da cama e pareciam muito tristes e um pouco bravos comigo: ‘Não, meu pai vai fazer eutanásia em meia hora’.” Heleen imediatamente pediu desculpas à família por não ter lido o relatório da enfermaria antes de ir até eles. Eles lhe disseram que não se preocupasse e ela continuou com sua ronda de almoço. “Cerca de dez minutos depois, eles vieram atrás de mim dizendo: ‘Ele quer comer batatas fritas, pedimos ao médico para demorar um pouco mais’. O paciente queria comer batatas fritas dez minutos antes da injeção! Então, ele sentou com o prato no colo, e comeu com os filhos. Foi um final agradável e feliz.”

Para muitos profissionais de saúde, facilitar esses momentos nos últimos dias e horas pode aliviar seus próprios sentimentos de dissonância ao saber que uma vida está prestes a terminar. Todos nos disseram que uma morte acelerada nunca é "normal” porque ela “fica” com você. Anika, uma médica belga que supervisiona uma ala de cuidados paliativos, estava bem ciente de como essas mortes afetam tanto o médico que as presencia quanto toda a equipe: “É importante providenciar apoio para si mesmo… No dia em que você realiza a eutanásia, é muito importante ter alguém para sair à noite, por exemplo. Não é normal e causa muito impacto… Às vezes, você lê sobre médicos que realizam seis casos de eutanásia em meio ano. Não consigo imaginar isso de jeito nenhum. Para mim, realmente, leva um ano até que eu supere isso e pense: ‘Ok, agora estou pronto para uma nova trajetória’.”

                        As consequências de uma morte planejada

Nos dias e semanas seguintes, Marjorie se viu transmitindo não apenas a notícia da morte, mas também os meios. Sua mãe havia escrito cartas para seus muitos amigos para que Marjorie postasse depois de voltar da Suíça, em vez de realizar um serviço funerário: “Isso foi difícil, porque tive de lidar com as reações emocionais de todas essas pessoas que eu não conhecia muito bem. Elas sabiam que minha mãe estava muito doente, e algumas escreveram para dizer que achavam que a escolha dela era bastante compreensível. Outras pareciam muito chocadas e desapontadas por não terem sabido do plano antes de ela morrer.”

Familiares e amigos descreveram o compartilhamento da notícia da morte de um ente querido como um processo complexo de avaliação: quantos detalhes a outra pessoa precisa? Ela entenderá a escolha da morte acelerada? Esse tipo de morte deve ser compartilhado em um obituário? Alguns relataram que se sentiram incapazes de receber apoio de pessoas, mesmo as próximas, que não conheciam a história completa. Marjorie disse que a falta de um serviço funerário foi outro fator complicador para ela: “Tive de enviar e-mails e falar com muitas pessoas. Acho que se eu as tivesse convidado para um funeral, elas não teriam exigido tanto do meu tempo e da minha emoção, pois poderiam ter comparecido. Era como se elas precisassem de uma válvula de escape.”

No final das contas, Marjorie ficou feliz por ter conseguido atender os desejos de sua mãe. Mas concluiu que a logística, o sigilo e o esforço eram muito mais do que uma pessoa que estava morrendo - e sua família precisaria ter que se reorganizar. Nos anos que se seguiram à morte da mãe, ela começou a se manifestar publicamente a favor de reformas para mudar a lei, de modo que as pessoas no Reino Unido pudessem morrer assistidas em suas próprias casas. Ela descreveu esse trabalho de campanha com orgulho, dizendo: “É como se algo positivo fosse resultar da morte dela”. Surpreendentemente, alguns de nossos entrevistados - especialmente aqueles que tiveram uma morte acelerada em segredo no Reino Unido - sentiram que não podiam acessar o apoio ao luto que geralmente está disponível para pessoas cujos entes queridos morreram por causas naturais, por medo de serem presos. Mas, embora a necessidade de sigilo contínuo sobrecarregue alguns após a morte, as descrições de culpa duradoura foram raras em nossas entrevistas. Em vez disso, ouvimos muitos descreverem que se sentiam em paz com sua decisão tomada em favor de um ente querido. Um dos motivos pode ser o fato de que as pessoas interessadas em antecipar o fim da vida tendem a pedir ajuda apenas a quem acreditam que as apoiarão ou que, pelo menos, passarão a apoiá-las com o tempo. Além disso, as pesquisas sobre morte acelerada geralmente dependem de pessoas que querem compartilhar suas histórias; aqueles que tiveram experiências negativas podem ter menos probabilidade de querer contá-las.

                        Considerações finais

É provável que cresça o número de países que legalizem a opção de decidir quando morrer, e optar por assistência, inclusive o Reino Unido. A maioria dos debates sobre a legislação ainda se concentra no direito do indivíduo de fazer uma escolha, embora isso não seja feito isoladamente. E dois grupos importantes também precisam de apoio: os profissionais de saúde e as famílias. Há uma suposição de que a morte assistida será integrada aos sistemas de saúde. No entanto, embora pesquisas recentes com médicos do Reino Unidos mostrem que a maioria é a favor de uma mudança na lei para permitir alguma forma de suicídio com assistência, apenas uma minoria de médicos registrados está disposta a se envolver diretamente na administração dos medicamentos. Devido a essa relutância, serão necessários sistemas alternativos que garantam parceiros suficientes em todos os estágios de uma morte acelerada, reduzindo a exposição dos médicos a esse evento potencialmente estressante. Para os membros da família envolvidos de perto, o processo pode parecer menos isolado com a ajuda de profissionais. No entanto, os familiares e os amigos que estão na periferia podem ter dificuldades para lidar com uma decisão da qual não fizeram parte devido ao sigilo inerente à tomada de decisão. O impacto sobre eles pode ser profundo e o apoio dos serviços de luto será importante.

Em fevereiro de 2024, o relatório do comitê seleto de saúde e assistência social do Reino Unido sobre a morte assistida reconheceu a complexidade da questão. É fácil pensar nisso apenas em termos dos direitos de uma pessoa, mas cada um de nós faz parte de uma sociedade constituída de direitos amplos. Todas as partes envolvidas na morte assistida devem ser consultadas antes da introdução de uma nova legislação. Fizemos um curta-metragem sobre as experiências de muitas outras pessoas envolvidas em processos relacionados ao tema aqui tratado. O debate é sutil e profundo, e devemos estar prontos para ouvir todos os relatos. Se a lei mudar no Reino Unido (e em outros lugares) para permitir a morte assistida, precisaremos encontrar uma solução que proteja e apoie a pessoa que a solicita mas, também, os amigos, familiares e profissionais de saúde.

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*Todos os nomes neste artigo são pseudônimos para proteger a identidade dos entrevistados.

 

Fonte: Por Nancy Preston e Jane Lowers, para The Conversation

 

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