Ricardo
Queiroz Pinheiro: Golpe e contradições da democracia
O
Golpe de 08/01/2023 foi mais do que a invasão de prédios públicos por uma turba
de descontentes trajados de verde e amarelo. Foi a manifestação de um processo
histórico que, se é polissêmico, como dizem os acadêmicos, é porque sintetiza
forças diversas e contraditórias que convergem para uma mesma tragédia
política. Desde a permanência das Forças Armadas como sombras da política civil
até a sabotagem da democracia pelos próprios governos que tentam defendê-la,
passando pela consolidação da extrema direita como força organizada em torno de
uma cruzada cultural olavista. O golpe é um episódio, mas também um sintoma.
Ele reflete não apenas os limites da democracia burguesa, mas as contradições
que emergem quando o poder é disputado num campo onde as regras são feitas para
manter o abismo social e a desigualdade que dá o enredo.
As
Forças Armadas, desde a Proclamação da República, cultivam o fetiche de
"poder moderador". Esse delírio jurídico não é apenas um acidente de
interpretação, mas uma ferramenta de controle de elites que, temendo perder
espaço na política civil, garantiram aos militares o papel de vigilantes da
ordem. É um pacto tácito: os fardados mantêm sua influência e, em troca, os
setores dominantes os acionam quando necessário. E necessário foi, mais uma
vez, em janeiro de 2023, quando a frustração eleitoral de uma classe média à
deriva e ressentida e de uma elite incapaz de aceitar qualquer mobilidade
social transbordou em violência. Essa relação de mútua dependência vai além de
um simples acordo circunstancial: os interesses das Forças Armadas estão
intrinsecamente alinhados com os da burguesia e do capital. Essa aliança
estratégica confere um poder maior a ambos, ampliando sua capacidade de impor
limites e de reprimir qualquer tentativa de ruptura na ordem social
estabelecida.
Mas
a história não começa aqui. Décadas de desmonte político e econômico abriram
caminho para a ascensão do bolsonarismo como força política. O uso da guerra
cultural pela extrema direita foi estratégico e devastador. O PT, enquanto
implementava políticas redistributivas, negligenciava a disputa simbólica,
deixando a esfera da cultura e da moral à mercê dos seus adversários. Desde
2013, o discurso antipolítico, alimentado pela Lava Jato e pela demonização da
classe política, ofereceu o terreno ideal para que a extrema direita
articulasse sua agenda: Deus, pátria e família contra o "marxismo
cultural" e outros espasmos similares. É preciso reconhecer que essa
cruzada cultural não foi um apêndice do golpe, mas sua força motriz, articulada
com maestria pelos olavistas que moldaram uma geração, inclusive dentro das
Forças Armadas.
E
aqui está a complexidade da crítica à esquerda. Não se trata apenas de apontar
desvios morais ou falhas individuais, mas de entender como as contradições da
disputa pelo poder, em um sistema profundamente desigual, moldaram suas
escolhas e limites. Os governos progressistas não foram apenas vítimas de um
sistema hostil, mas agentes que, ao disputar espaço, também cederam às suas
armadilhas. Ao se inserirem no jogo democrático burguês, aceitaram operar em um
campo delimitado por interesses de classe que jamais os aceitou de fato.
Por
um lado, é verdade que Lula e Dilma realizaram avanços sociais significativos
com precedentes apenas no getulismo. Mas, por outro, não conseguiram (ou não
quiseram) confrontar as estruturas que sustentam a desigualdade e o
autoritarismo. Não tocaram na democratização dos meios de comunicação,
hesitaram diante do poder corporativo das Forças Armadas e fizeram concessões
ao mercado financeiro. E aqui, cabe lembrar, o capital especulativo pairava
como uma sombra, influenciando decisões e condicionando políticas, enquanto sua
instabilidade era habilmente convertida em argumento contra qualquer reforma
estrutural. Foram escolhas determinadas pela necessidade de governar em uma
democracia limitada, mas que também refletiram a dificuldade de articular uma
estratégia de enfrentamento às forças reacionárias que cresciam nas sombras.
Enquanto
isso, a extrema direita entendia o que estava em jogo e agia. Não foi apenas no
Congresso ou nas urnas que ela avançou; foi na capacidade de mobilizar
ressentimentos, de articular medo e ódio como forças políticas. E aqui a
esquerda, particularmente o PT, foi pega desprevenida. A crença de que os
resultados econômicos falariam por si revelou-se ilusória. O aumento do
consumo, embora importante, não foi acompanhado de um aumento equivalente na
consciência política. Quando as condições econômicas retrocederam, a extrema
direita já tinha transformado o ressentimento em força organizada.
O
golpe de 08/01/23 não foi apenas um ataque às instituições; foi o ápice de um
projeto político que soube aproveitar as falhas da democracia liberal e da
esquerda para se consolidar. Ele escancarou as inconsistências do capitalismo
periférico, a fragilidade de uma democracia baseada em acordos muitos vezes
incontornáveis, mas no geral frágeis e que moldam a insuficiência de uma
estratégia progressista que tenta governar sem enfrentar as bases estruturais
do sistema.
Resta
agora a questão mais difícil: como avançar? A pergunta, que remete à clássica
indagação de Lenin, não pode ser tratada como de costume, como um clichê.
Resistir, por si só, é insuficiente quando o adversário avança na cruzada
cultural, no Congresso, na mídia e nas ruas. É preciso admitir que, ao disputar
o poder, governos progressistas enfrentam não apenas seus inimigos, mas suas
próprias contradições. É preciso confrontar as bases materiais e simbólicas que
sustentam o autoritarismo – não apenas para sobreviver politicamente, mas para
transformar o que ainda pode ser transformado.
É
sempre bom lembrar Lima Barreto, como que nos espreitando do início do século
XX, afirma com uma lucidez que ainda machuca: "A República não redimiu
ninguém, apenas trocou o chicote de mãos." Mais do que um diagnóstico, é
um chamado. Não haverá emancipação enquanto a estrutura continuar sendo a
mesma; não haverá democracia enquanto o poder for gerido para perpetuar
desigualdades.
Porque,
se há algo que o golpe de 08/01/23 nos ensina, é que a disputa política não se
limita à ocupação do Planalto e aos pleitos eleitorais. Ela reside na
capacidade de intervir nas disputas simbólicas e materiais. A esquerda, ao
operar dentro de um campo já delimitado pelas estruturas de poder, acaba muitas
vezes se enfraquecendo ao não questionar profundamente as bases que sustentam a
desigualdade social. O golpe expôs a fragilidade da democracia burguesa e a
ausência de uma estratégia progressista capaz de romper com essas estruturas de
poder. A verdadeira mudança, portanto, exige uma nova articulação política que
seja capaz de ir além da simples reação ao adversário, enfrentando as
contradições que perpassam a história política e social do país. Sem essa
consciência, o próximo golpe não será apenas mais um episódio. Será o início de
uma longa noite sem lua e sem amanhecer.
¨
Num tempo de
desmoronamento das democracias, a resistência popular é obrigatória. Por Paulo
Moreira Leite
"Por
um triz evitamos um golpe, por um triz derrotamos o 8 de janeiro", diz
José Genoíno em entrevista conduzida por Dafne Ashton, na TV 247. "Não
podemos continuar vivendo assim".
A
oportuna denúncia de Genoíno tem como referência o artigo 142 da Constituição
brasileira. O contexto diz respeito ao retorno de um conhecido inimigo da
democracia -- o fantasma da impunidade, que ressurge para proteger a mais
recente geração de golpistas que, depois de agir em 1954, 1964, 1968 e em
vários momentos da década de 1970, voltou a mostrar suas garras para ameaçar os
direitos das brasileiras e brasileiros.
No
já distante ano de 1988 a bancada herdeira da ditadura de 64 conseguiu
infiltrar uma visão anti-democrática e reacionária, que contraria o espirito
que deu origem à própria Carta de Leis aprovada há 36 anos.
No
artigo 142 abre-se um caminho perverso, incompatível com o espírito da própria
Constituição -- a subordinação da democracia política à vontade das Forças
Armadas, utilizada para emparedar governos comprometidos com necessidades dos
trabalhadores e da maioria da população.
Num
país onde golpes de Estado tem funcionado como recursos frequentes na história
republicana, sendo utilizados sempre que a classe dominante se mostra incapaz
de ganhar eleições nas urnas, a resistência dos trabalhadores e da maioria da
população torna-se uma atitude necessária para assegurar a soberania da nação,
essência de toda democracia verdadeira.
Criada
como um regime de fraque e cartola, destinado a agradar interesses de grandes
latifundiários e seus patrões do imperialismo, a Republica brasileira enfrenta
ameaças que atravessaram várias constituições.
Foi
assim que se fez do Brasil um país onde os golpes de Estado exibem sua face
medonha sempre que brasileiras e brasileiros resolvem lutar por seus direitos e
eleger governos comprometidos com mudanças que interessam a uma maioria cansada
de trabalhar muito e ganhar pouco.
Este
espírito reacionário do andar de cima alimentou as conspirações contra Getúlio
Vargas e Juscelino, contra João Goulart, contra Lula e contra Dilma Rousseff.
Embora
seja possível fazer críticas localizadas e apontar problemas específicos em
todo e qualquer governo, sujeito a falhas como toda obra humana, não se pode
ignorar seu papel fundamental, na defesa da soberania da nação e das
necessidades da maioria.
Alvo
de uma burguesia de mentalidade tacanha, espírito reacionário e formação
entreguista desde os tempos de Colonia, que fez do combate golpista ao inédito
Lula 3 uma questão de prioridade máxima, típica de quem quer fugir de uma
disputa honesta em 2026, a segunda metade do terceiro mandato se anuncia como
um cenário de jogo sujo e guerra permanente.
Mais
uma vez, estarão em disputa os horizontes do Brasil que acorda cedo, trabalha
duro e recebe pouco pelo esforço de cada dia.
Como
sempre acontece, a nação disputa seu futuro contra elementos parasitários que
alugam o destino do país para garantir a vida mansa do conforto e dos
privilégios que se alimentam de uma desigualdade que causa vergonha no mundo
inteiro.
Alguma
dúvida?
¨ Pela responsabilização imediata dos golpistas. Por Alfredo Attié
Quase
dois anos se passaram desde a invasão e depredação da Praça dos Três
Poderes.
Foi
o ponto culminante de um golpe preparado, dia após dia, durante o curso do
regime anticonstitucional, que começou a se desenhar e estabelecer em 2016,
realizou-se e se aprofundou a partir de 2018, tendo o chamado “governo”
Bolsonaro se dedicado a sua pregação e atuação, envolvendo autoridades civis e
militares na trama de imposição da ditadura, a partir de um golpe disfarçado de
comando constitucional, apoiado em um forjado apoio popular.
Todos
esses atos, em conjunto e isoladamente, configuram crimes contra o Estado
Democrático de Direito. Adicionam-se a tantos outros crimes comuns e de
responsabilidade cometidos pelo regime ilegal, que procurou destruir
Constituição, política e o pouco de laços de representação legítima que ainda
haviam permanecido - e ajudaram, mesmo que na última hora e com eficácia
limitada, a evitar os piores efeitos dos atos e omissões de um “governo”
voltado a destruir a democracia e a soberania brasileiras.
Apresentado
o relatório da Polícia Federal, já após os prejuízos causados à política
brasileira - pela participação intensa dos adeptos do golpe e do próprio
Partido que apoiou e se apoiou em sua montagem e operação, com intromissão do
próprio Bolsonaro, que exibia sua imagem, em sustentação de candidaturas e
crítica de outras, mesmo que em estado de inelegibilidade, a par de restrições
cautelares determinadas pela Justiça - , a notícia é a de que ainda haverá
demora em análise e preparação de atuação pelo Ministério Público
Federal.
Nesse
aspecto, cabe indagar se realmente foi a moderação que saiu vencedora da
eleição, como pretende uma interpretação muito tolerante do resultado do
pleito, ou se houve uma acentuação do extremismo, cujos adeptos agora
procurariam disfarçar sua concepção de mundo, por meio de um discurso que, em
verdade, não reflete a realidade de sua atuação, na titularidade de funções
públicas de representação.
A
constatação histórica dessa lentidão (que pode decorrer de muitos fatores,
entre os quais o despreparo do aparato judicial para o trato de questões mais
complexas, que transbordam os limites da formação tradicional dos profissionais
do direito, ou, ainda, da constante implicação recíproca entre o direito e a
política, que, em vez de trazer virtudes ao sistema judicial, o tem
prejudicado, na história brasileira), em levar a cabo o processo e julgamento
dos responsáveis indicados pelos crimes - a par das questões que ainda resta
responder, relativas a ações e omissões de outros responsáveis, na esfera
pública e privada -, tem permitido, lamentavelmente, a construção de narrativas
e teorias imaginárias, em pretensa justificação dos atos e omissões e mesmo defesa
dos até aqui indiciados.
Da
lentidão à imaginação, alimenta-se o conjunto das pessoas e grupos, mesmo
partidários, que pretendem aprofundar a eficácia e difundir a doutrina perigosa
de sua luta contra o Estado Democrático de Direito.
Responder
aos que propagam essas versões irreais do mundo e dos fatos, contra-argumentar
seu falatório fanático e irresponsável, significaria apenas dar a essas pessoas
insidiosas a oportunidade de se apresentarem como detentoras da liberdade de
expressão verdadeira, batalhadoras legítimas no campo formado pelas “quatro
linhas” falsas de uma Constituição que desprezam e negam de modo militante e
cruel.
A
cidadania não pode continuar a sofrer mais.
Possui
seus direitos, como protagonista verdadeiramente legítima do poder
constitucional.
É a
presença da cidadania e de sua soberania, aliás, que costura a legitimidade de
atuação de todos os Poderes, de todas as instituições republicanas.
É
ela a titular não apenas desses diretos, mas, igualmente de políticas públicas
– nas quais se incluem a Segurança e a Justiça -, e de deveres constitucionais.
É
preciso que a questão da responsabilidade dos golpistas se apresente em sua
integridade político-jurídica.
O
tempo conta em desfavor da democracia, atualmente. Não há motivo
jurídico-político autêntico para que se adie cada vez mais o acerto de contas
com o passado, cujas efeitos nocivos parecem querer se enraizar cada vez mais,
destruindo os laços de confiança da sociedade e da esfera pública.
A
cidadania não pode continuar a sofrer ataques a sua existência e presença, aos
valores consagrados na Constituição.
A
cidadania sabe que o verdadeiro garantismo funda-se na Constituição e na defesa
expressa de seu conteúdo civilizatório.
Pode
e deve se manifestar para a consecução de seu poder, sinônimo de democracia e
fonte da soberania.
Ela
exige, para que a história prossiga de modo construtivo, que o que se passou
deixe de atuar no presente, mediante a responsabilização dos que quiseram e
agiram para destruir o já difícil processo de constituição da paz e da
segurança efetivas, da igualdade verdadeiramente inclusiva, da liberdade e da
solidariedade autênticas em nosso País.
Fonte:
Brasil 247
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