quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Ricardo Queiroz Pinheiro: Golpe e contradições da democracia

O Golpe de 08/01/2023 foi mais do que a invasão de prédios públicos por uma turba de descontentes trajados de verde e amarelo. Foi a manifestação de um processo histórico que, se é polissêmico, como dizem os acadêmicos, é porque sintetiza forças diversas e contraditórias que convergem para uma mesma tragédia política. Desde a permanência das Forças Armadas como sombras da política civil até a sabotagem da democracia pelos próprios governos que tentam defendê-la, passando pela consolidação da extrema direita como força organizada em torno de uma cruzada cultural olavista. O golpe é um episódio, mas também um sintoma. Ele reflete não apenas os limites da democracia burguesa, mas as contradições que emergem quando o poder é disputado num campo onde as regras são feitas para manter o abismo social e a desigualdade que dá o enredo.

As Forças Armadas, desde a Proclamação da República, cultivam o fetiche de "poder moderador". Esse delírio jurídico não é apenas um acidente de interpretação, mas uma ferramenta de controle de elites que, temendo perder espaço na política civil, garantiram aos militares o papel de vigilantes da ordem. É um pacto tácito: os fardados mantêm sua influência e, em troca, os setores dominantes os acionam quando necessário. E necessário foi, mais uma vez, em janeiro de 2023, quando a frustração eleitoral de uma classe média à deriva e ressentida e de uma elite incapaz de aceitar qualquer mobilidade social transbordou em violência. Essa relação de mútua dependência vai além de um simples acordo circunstancial: os interesses das Forças Armadas estão intrinsecamente alinhados com os da burguesia e do capital. Essa aliança estratégica confere um poder maior a ambos, ampliando sua capacidade de impor limites e de reprimir qualquer tentativa de ruptura na ordem social estabelecida.

Mas a história não começa aqui. Décadas de desmonte político e econômico abriram caminho para a ascensão do bolsonarismo como força política. O uso da guerra cultural pela extrema direita foi estratégico e devastador. O PT, enquanto implementava políticas redistributivas, negligenciava a disputa simbólica, deixando a esfera da cultura e da moral à mercê dos seus adversários. Desde 2013, o discurso antipolítico, alimentado pela Lava Jato e pela demonização da classe política, ofereceu o terreno ideal para que a extrema direita articulasse sua agenda: Deus, pátria e família contra o "marxismo cultural" e outros espasmos similares. É preciso reconhecer que essa cruzada cultural não foi um apêndice do golpe, mas sua força motriz, articulada com maestria pelos olavistas que moldaram uma geração, inclusive dentro das Forças Armadas.

E aqui está a complexidade da crítica à esquerda. Não se trata apenas de apontar desvios morais ou falhas individuais, mas de entender como as contradições da disputa pelo poder, em um sistema profundamente desigual, moldaram suas escolhas e limites. Os governos progressistas não foram apenas vítimas de um sistema hostil, mas agentes que, ao disputar espaço, também cederam às suas armadilhas. Ao se inserirem no jogo democrático burguês, aceitaram operar em um campo delimitado por interesses de classe que jamais os aceitou de fato.

Por um lado, é verdade que Lula e Dilma realizaram avanços sociais significativos com precedentes apenas no getulismo. Mas, por outro, não conseguiram (ou não quiseram) confrontar as estruturas que sustentam a desigualdade e o autoritarismo. Não tocaram na democratização dos meios de comunicação, hesitaram diante do poder corporativo das Forças Armadas e fizeram concessões ao mercado financeiro. E aqui, cabe lembrar, o capital especulativo pairava como uma sombra, influenciando decisões e condicionando políticas, enquanto sua instabilidade era habilmente convertida em argumento contra qualquer reforma estrutural. Foram escolhas determinadas pela necessidade de governar em uma democracia limitada, mas que também refletiram a dificuldade de articular uma estratégia de enfrentamento às forças reacionárias que cresciam nas sombras.

Enquanto isso, a extrema direita entendia o que estava em jogo e agia. Não foi apenas no Congresso ou nas urnas que ela avançou; foi na capacidade de mobilizar ressentimentos, de articular medo e ódio como forças políticas. E aqui a esquerda, particularmente o PT, foi pega desprevenida. A crença de que os resultados econômicos falariam por si revelou-se ilusória. O aumento do consumo, embora importante, não foi acompanhado de um aumento equivalente na consciência política. Quando as condições econômicas retrocederam, a extrema direita já tinha transformado o ressentimento em força organizada.

O golpe de 08/01/23 não foi apenas um ataque às instituições; foi o ápice de um projeto político que soube aproveitar as falhas da democracia liberal e da esquerda para se consolidar. Ele escancarou as inconsistências do capitalismo periférico, a fragilidade de uma democracia baseada em acordos muitos vezes incontornáveis, mas no geral frágeis e que moldam a insuficiência de uma estratégia progressista que tenta governar sem enfrentar as bases estruturais do sistema.

Resta agora a questão mais difícil: como avançar? A pergunta, que remete à clássica indagação de Lenin, não pode ser tratada como de costume, como um clichê. Resistir, por si só, é insuficiente quando o adversário avança na cruzada cultural, no Congresso, na mídia e nas ruas. É preciso admitir que, ao disputar o poder, governos progressistas enfrentam não apenas seus inimigos, mas suas próprias contradições. É preciso confrontar as bases materiais e simbólicas que sustentam o autoritarismo – não apenas para sobreviver politicamente, mas para transformar o que ainda pode ser transformado.

É sempre bom lembrar Lima Barreto, como que nos espreitando do início do século XX, afirma com uma lucidez que ainda machuca: "A República não redimiu ninguém, apenas trocou o chicote de mãos." Mais do que um diagnóstico, é um chamado. Não haverá emancipação enquanto a estrutura continuar sendo a mesma; não haverá democracia enquanto o poder for gerido para perpetuar desigualdades.

Porque, se há algo que o golpe de 08/01/23 nos ensina, é que a disputa política não se limita à ocupação do Planalto e aos pleitos eleitorais. Ela reside na capacidade de intervir nas disputas simbólicas e materiais. A esquerda, ao operar dentro de um campo já delimitado pelas estruturas de poder, acaba muitas vezes se enfraquecendo ao não questionar profundamente as bases que sustentam a desigualdade social. O golpe expôs a fragilidade da democracia burguesa e a ausência de uma estratégia progressista capaz de romper com essas estruturas de poder. A verdadeira mudança, portanto, exige uma nova articulação política que seja capaz de ir além da simples reação ao adversário, enfrentando as contradições que perpassam a história política e social do país. Sem essa consciência, o próximo golpe não será apenas mais um episódio. Será o início de uma longa noite sem lua e sem amanhecer.

 

¨      Num tempo de desmoronamento das democracias, a resistência popular é obrigatória. Por Paulo Moreira Leite

"Por um triz evitamos um golpe, por um triz derrotamos o 8 de janeiro", diz José Genoíno em entrevista conduzida por Dafne Ashton, na TV 247. "Não podemos continuar vivendo assim".

A oportuna denúncia de Genoíno tem como referência o artigo 142 da Constituição brasileira. O contexto diz respeito ao retorno de um conhecido inimigo da democracia -- o fantasma da impunidade, que ressurge para proteger a mais recente geração de golpistas que, depois de agir em 1954, 1964, 1968 e em vários momentos da década de 1970, voltou a mostrar suas garras para ameaçar os direitos das brasileiras e brasileiros.

No já distante ano de 1988 a bancada herdeira da ditadura de 64 conseguiu infiltrar uma visão anti-democrática e reacionária, que contraria o espirito que deu origem à própria Carta de Leis aprovada há 36 anos.

No artigo 142 abre-se um caminho perverso, incompatível com o espírito da própria Constituição -- a subordinação da democracia política à vontade das Forças Armadas, utilizada para emparedar governos comprometidos com necessidades dos trabalhadores e da maioria da população.

Num país onde golpes de Estado tem funcionado como recursos frequentes na história republicana, sendo utilizados sempre que a classe dominante se mostra incapaz de ganhar eleições nas urnas, a resistência dos trabalhadores e da maioria da população torna-se uma atitude necessária para assegurar a soberania da nação, essência de toda democracia verdadeira.

Criada como um regime de fraque e cartola, destinado a agradar interesses de grandes latifundiários e seus patrões do imperialismo, a Republica brasileira enfrenta ameaças que atravessaram várias constituições.

Foi assim que se fez do Brasil um país onde os golpes de Estado exibem sua face medonha sempre que brasileiras e brasileiros resolvem lutar por seus direitos e eleger governos comprometidos com mudanças que interessam a uma maioria cansada de trabalhar muito e ganhar pouco.

Este espírito reacionário do andar de cima alimentou as conspirações contra Getúlio Vargas e Juscelino, contra João Goulart, contra Lula e contra Dilma Rousseff.

Embora seja possível fazer críticas localizadas e apontar problemas específicos em todo e qualquer governo, sujeito a falhas como toda obra humana, não se pode ignorar seu papel fundamental, na defesa da soberania da nação e das necessidades da maioria.

Alvo de uma burguesia de mentalidade tacanha, espírito reacionário e formação entreguista desde os tempos de Colonia, que fez do combate golpista ao inédito Lula 3 uma questão de prioridade máxima, típica de quem quer fugir de uma disputa honesta em 2026, a segunda metade do terceiro mandato se anuncia como um cenário de jogo sujo e guerra permanente.

Mais uma vez, estarão em disputa os horizontes do Brasil que acorda cedo, trabalha duro e recebe pouco pelo esforço de cada dia.

Como sempre acontece, a nação disputa seu futuro contra elementos parasitários que alugam o destino do país para garantir a vida mansa do conforto e dos privilégios que se alimentam de uma desigualdade que causa vergonha no mundo inteiro.

Alguma dúvida?

 

¨      Pela responsabilização imediata dos golpistas. Por Alfredo Attié

Quase dois anos se passaram desde a invasão e depredação da Praça dos Três Poderes. 

Foi o ponto culminante de um golpe preparado, dia após dia, durante o curso do regime anticonstitucional, que começou a se desenhar e estabelecer em 2016, realizou-se e se aprofundou a partir de 2018, tendo o chamado “governo” Bolsonaro se dedicado a sua pregação e atuação, envolvendo autoridades civis e militares na trama de imposição da ditadura, a partir de um golpe disfarçado de comando constitucional, apoiado em um forjado apoio popular. 

Todos esses atos, em conjunto e isoladamente, configuram crimes contra o Estado Democrático de Direito. Adicionam-se a tantos outros crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelo regime ilegal, que procurou destruir Constituição, política e o pouco de laços de representação legítima que ainda haviam permanecido - e ajudaram, mesmo que na última hora e com eficácia limitada, a evitar os piores efeitos dos atos e omissões de um “governo” voltado a destruir a democracia e a soberania brasileiras. 

Apresentado o relatório da Polícia Federal, já após os prejuízos causados à política brasileira - pela participação intensa dos adeptos do golpe e do próprio Partido que apoiou e se apoiou em sua montagem e operação, com intromissão do próprio Bolsonaro, que exibia sua imagem, em sustentação de candidaturas e crítica de outras, mesmo que em estado de inelegibilidade, a par de restrições cautelares determinadas pela Justiça - , a notícia é a de que ainda haverá demora em análise e preparação de atuação pelo Ministério Público Federal. 

Nesse aspecto, cabe indagar se realmente foi a moderação que saiu vencedora da eleição, como pretende uma interpretação muito tolerante do resultado do pleito, ou se houve uma acentuação do extremismo, cujos adeptos agora procurariam disfarçar sua concepção de mundo, por meio de um discurso que, em verdade, não reflete a realidade de sua atuação, na titularidade de funções públicas de representação.

A constatação histórica dessa lentidão (que pode decorrer de muitos fatores, entre os quais o despreparo do aparato judicial para o trato de questões mais complexas, que transbordam os limites da formação tradicional dos profissionais do direito, ou, ainda, da constante implicação recíproca entre o direito e a política, que, em vez de trazer virtudes ao sistema judicial, o tem prejudicado, na história brasileira), em levar a cabo o processo e julgamento dos responsáveis indicados pelos crimes - a par das questões que ainda resta responder, relativas a ações e omissões de outros responsáveis, na esfera pública e privada -, tem permitido, lamentavelmente, a construção de narrativas e teorias imaginárias, em pretensa justificação dos atos e omissões e mesmo defesa dos até aqui indiciados. 

Da lentidão à imaginação, alimenta-se o conjunto das pessoas e grupos, mesmo partidários, que pretendem aprofundar a eficácia e difundir a doutrina perigosa de sua luta contra o Estado Democrático de Direito.

Responder aos que propagam essas versões irreais do mundo e dos fatos, contra-argumentar seu falatório fanático e irresponsável, significaria apenas dar a essas pessoas insidiosas a oportunidade de se apresentarem como detentoras da liberdade de expressão verdadeira, batalhadoras legítimas no campo formado pelas “quatro linhas” falsas de uma Constituição que desprezam e negam de modo militante e cruel. 

A cidadania não pode continuar a sofrer mais. 

Possui seus direitos, como protagonista verdadeiramente legítima do poder constitucional.

É a presença da cidadania e de sua soberania, aliás, que costura a legitimidade de atuação de todos os Poderes, de todas as instituições republicanas. 

É ela a titular não apenas desses diretos, mas, igualmente de políticas públicas – nas quais se incluem a Segurança e a Justiça -, e de deveres constitucionais.

É preciso que a questão da responsabilidade dos golpistas se apresente em sua integridade político-jurídica.

O tempo conta em desfavor da democracia, atualmente. Não há motivo jurídico-político autêntico para que se adie cada vez mais o acerto de contas com o passado, cujas efeitos nocivos parecem querer se enraizar cada vez mais, destruindo os laços de confiança da sociedade e da esfera pública.

A cidadania não pode continuar a sofrer ataques a sua existência e presença, aos valores consagrados na Constituição.

A cidadania sabe que o verdadeiro garantismo funda-se na Constituição e na defesa expressa de seu conteúdo civilizatório.

Pode e deve se manifestar para a consecução de seu poder, sinônimo de democracia e fonte da soberania. 

Ela exige, para que a história prossiga de modo construtivo, que o que se passou deixe de atuar no presente, mediante a responsabilização dos que quiseram e agiram para destruir o já difícil processo de constituição da paz e da segurança efetivas, da igualdade verdadeiramente inclusiva, da liberdade e da solidariedade autênticas em nosso País.

 

Fonte: Brasil 247

 

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