quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Chico Teixeira: A tutela militar

Dois eventos históricos, já seculares, informam a doutrina militar hoje vigente na República. O primeiro é o chamado "Espírito de Guararapes", ou seja as condições em que se deram as lutas pela expulsão dos holandeses do Nordeste no século XVII. A partir de uma visão teleológica, finalista, a expulsão dos holandeses aparece como um esforço "patriótico" de todos os brasileiros contra o "estrangeiro" que ocupava parte do país. 

Tal interpretação, que torna o Estado do Brasil - distinto do Estado do Grão Pará e Maranhão, bem como das capitanias ao Sul de São Vicente e São Paulo e, claro, de toda a área das chamadas "Missões" - como já sendo uma "Nação", representando o Brasil. Trata-se de um "Brasil" já contido, como futuro inevitável, nas lutas coloniais . Tal "Nação" estaria contida e representada na presença do branco - como João Fernandes Vieira, escravista, Senhor de engenho endividado com banqueiros de Amsterdã; Felipe Camarão, indígena criado e educado por jesuítas e nomeado com o nome do rei de Espanha; e Henrique Dias, filho de escravizados africanos - enquanto líderes "patrióticos".  Assim, a pretensa "síntese" das três raças "tristes", conforme a fantasia poética de Olavo Bilac, opera a construção precoce, anterior aos casos europeus,  do "nascimento" do Brasil. 

Um único documento, onde um dos rebelados - em especial contra a cobrança de dívidas por parte dos holandeses - fala em "pátria" serve de "prova" da fundação do Brasil. Não atentam os especialistas militares para o fato de que a pátria era, então, o Pernambuco, ou seja, simplesmente o lugar de nascimento, como era uso comum tanto na Península Ibérica quanto na França. Nem negros escravizados, nem índios aldeados em torno das missões católicas tiveram quaisquer ganhos com a vitória - considerada feito militar maior - colonial portuguesa sobre os holandeses. Nada mudou as condições de vida ou respeito histórico, como atesta a luta letal contra o Quilombo dos Palmares, culminando no Massacre do Povo Negro da Serra da Barriga em 1695 ou o genocídio dos cariris em 1682. 

No entanto, uma tradição acertada ao conceito de "brasilidade”, comum ao nacionalismo folclórico típico dos anos de 1930, incluindo as narrativas integralistas, foi recepcionada pelo "sistema" de ensino militar no Brasil. Da mesma forma, o golpe de Estado Militar de 1889, o segundo evento histórico apropriado pela Direita nacionalista e militar,  é visto como nascimento da República - sem considerar o republicanismo democrático de 1789 ( Minas Gerais) e de 1799 (Bahia).

Em 1889 os militares teriam incorporado o decaído   "Poder Moderador" exercido pelo Imperador, não recepcionado na Constituição de 1891. Assim, incorporado aos "deveres" de um inexistente "Poder Militar", passaria a ser dever militar vigiar e controlar a República.  Em cartilhas (sic!), currículos e textos tais eventos seriam a base histórica de Forças Armadas muito mais voltadas para a manutenção do status quo interno do que para a defesa da soberania nacional.  

Por esta via estruturou-se a noção de uma "tutela militar sobre a República", base doutrinária das Forças Armadas, e plenamente recepcionada por organizações militares como as Forças Especiais, chamada de "kids pretos". Assim, criaram-se unidades militares como "os Henriques" ou a nomeação de brigadas, incluindo ainda a existência de uma "doutrina" de guerra assimétrica baseada na experiência das chamadas "Milícia dos Descalços", em várias academias militares, em especial ao empoderar historicamente o conceito de guerra  assimétrica dos "Kids pretos". 

O fato de que jamais foi colocado em questão o escravismo, o latifúndio e a expropriação das terras indígenas e o seu genocídio, agrega, para a Direita,  ainda mais valor a tal versão militarizada e "pacificadora" da História do Brasil. O fato que na mesma ocasião, entre 1652 e 1654, a Holanda estava sob bloqueio militar imposto pela Inglaterra (aliada de Portugal) e sua frota lutava pela própria sobrevivência, não desempenha qualquer papel na explicação da pretensa "rendição" batava frente a "guerra assimétrica" - numa interpretação anacrônica e teleológica - praticada pelas "Milícias dos Descalços".

 Assim, fica sem explicação o fato dos vencidos holandeses terem exigido, para sair do Nordeste, um resgate de 63 toneladas de ouro como imposto no Tratado de Paz de 1661. Mas, o apagamento da História real parece mais belo que a própria História e, sem dúvida, mais útil politicamente que a pesquisa histórica.

 

¨      As eminências pardas do golpe 'punhal verde-amarelo'. Por Elizabeth Lopes

Elocubrações convenientemente oportunistas têm sido publicadas nas redes sociais, ou veiculadas na grande mídia sobre os futuros julgamentos, se houver a denúncia pela Procuradoria Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF), das 37 pessoas indiciadas pela Polícia Federal, entre estas, o ex Presidente Bolsonaro, além de um número expressivo de militares e de alguns civis pelos crimes de: Abolição violenta do estado democrático de direito, organização criminosa, tentativa de golpe de Estado e plano de assassinato do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, do Vice Presidente Geraldo Alkmin e do Ministro do STF Alexandre de Moraes.

O intuito dessas publicações, como a de Tarcísio de Freitas (Republicanos), de Flávio Bolsonaro (PL) e de Janaína Paschoal (PP), entre outros que simpatizam com o bolsonarismo, é seguramente confundir a opinião pública, uma vez que essas elocubrações não se sustentam. Para os distraídos, entretanto, bastam narrativas repetidas para tornarem-se validadas e espalhadas em rodas de conversa, como: “há uma narrativa disseminada contra o Presidente Jair Bolsonaro e que carece de provas”; “pensar em matar não é crime; “para ser golpe de estado teria que ser intentado pela totalidade das forças armadas”. São muitas teses sem fundamento nenhum, mas com fins ideológicos de minimização dos fatos estarrecedores, ocorridos ao longo do ano 2022.

Os tempos de uma convivência minimamente aceitável entre adversários ideológicos deixou de existir, desde o avanço de uma extrema direita fascista, movida pelo ódio, pela aderência a regimes totalitários e a pautas retrógadas, censoras de todo e qualquer avanço nos costumes. Esse segmento da política ultraliberal defende a permanência da concentração de renda nas mãos de poucos, inclusive nas suas próprias mãos atreladas visceralmente ao mercado.

Nesse horizonte dominante, os projetos progressistas do atual poder executivo federal em favor da diminuição da desigualdade social, mediante políticas públicas de bem estar social destinadas a maioria alijada de condições de existência decente, têm sido constantemente limitados pelo avanço da composição fisiologista da direita e da extrema direita na atual composição do congresso. Esses representantes enganadores do povo e a reboque de seus direitos, só encontram alguns freios pela movimentação de políticos progressistas na judicialização de temas frontalmente inconstitucionais.

Essa atrofia na balança entre legislativo e executivo, favorecida pelo governo anterior que emponderou o legislativo na festa das emendas secretas, afasta qualquer governo que se volte para os interesses do povo. Certamente, pelo golpe de Estado, os legisladores da ala da direita liberal e extrema direita seriam os primeiros a dar guarida à futura ditadura e aos planos de violação dos direitos humanos. Uma troca conveniente, tal como ocorreu no passado, durante a trajetória hedionda dos 21 anos de chumbo.

Nesse contexto adverso, é necessário ressaltar que nas divulgações sobre a recente tentativa de golpe, ainda há lacunas não preenchidas, pelo menos não reveladas até o presente, como indícios de participação de outros políticos do poder legislativo não mencionados no plano macabro acordado entre militares, civis e até mesmo com membros da justiça.

Certamente essas eminências pardas, com elevado poder de barganha, se locupletariam ao máximo pela extirpação dos valores democráticos e pelos ganhos, sem limites, para atender seus obscuros interesses. O papel desses inescrupulosos seria o de mascarar a realidade, dar guarida, a partir de uma falaciosa configuração de legalidade, a exemplo do concretizado durante o processo de impeachment da Presidenta Dilma.

Os oportunistas, mesmo sem a concretização do golpe terrorista, persistem manobrando os destinos do país com poderes interessados nos segmentos que os beneficiam. Perpetuam-se como o mais corrosivo câncer comprometedor do bom funcionamento das células do sistema democrático. De acordo com análise feita por Felipe Nunes na Globo News, com base em pesquisa da Quaest sobre as menções ao inquérito do golpe nas redes sociais, foi observado que nos dias 19, 20 e 21/11 ocorreu um percentual elevado de interações plurais apoiando o inquérito, depois do dia 26/11 a mobilização plural diminui, dando lugar a menções negativas sobre o tema, tendo em vista o engajamento de bolhas de rede, de acordo com Felipe Nunes. O que confirma a sanha, a meu juízo, da atuação da extrema direita nos espaços digitais com a intenção de suavizar os graves efeitos dos indiciamentos pelos atos de preparação e execução em parte, do referido golpe.

Com a divulgação, pelo Ministro Alexandre de Morais, do relatório de mais de 800 páginas sobre tentativa de golpe enviado pela PF, vários relatos robustos de evidências vêm à tona, fornecendo indubitavelmente a atuação de cada personagem do golpe. No relatório fica evidente que seus articuladores sempre se reportavam a Bolsonaro, como líder principal no planejamento.

O país está diante de uma oportunidade ímpar para extirpar, ou pelo menos na pior das hipóteses, minimizar alguns sintomas dessa patologia que vem reincidindo e afetando o funcionamento democrático da República pós fim da ditadura militar, como o golpe de impeachment da presidenta Dilma, a prisão injusta do Presidente Lula, que tinha como objetivo retirá-lo da eleição presidencial de 2018, orquestrada pelas armações da Operação Lava Jato, ao arrepio do devido processo legal. Para tanto, os segmentos progressistas do país não podem se calar diante da gravidade dos crimes efetivados e tentados.

O conjunto de provas que compõem o relatório da PF são incontestáveis. Por mais que a parte aliada à organização criminosa tente argumentar ao contrário, essas investidas não têm atingido os fins de confundir a opinião pública. Com a efetivação dos futuros tramites processuais estará aberta a temporada do salve-se quem puder na escuta dos envolvidos no plano do golpe, nas oitivas de testemunhas e nas possíveis delações premiadas. No entanto, a sociedade brasileira não poderá calar em berço esplêndido.

A urgência do trabalho da Procuradoria Geral da República, diante da robusta comprovação da trama criminosa golpista, fartamente documentada no eficiente trabalho da PF, deve marcar os próximos passos da denúncia pela PGR.

Por fim, é imprescindível ressaltar o Manifesto que solicita expulsão com desonra dos militares protagonistas do plano de assassinato de Lula, de Alckimin e de Alexandre de Morais. Tal documento expresso em abaixo assinado, está disponível em: https://www.expulsaocomdesonra.com.br/. Neste, os honrosos signatários referem em um dos trechos: “A horrorosa trama vinda a público é, no entanto, uma oportunidade única para a República afirmar na prática os princípios e fundamentos estampados em sua Constituição, com a punição exemplar desses vilões disfarçados de soldados. Com todo o devido respeito aos direitos à ampla defesa e ao contraditório, deve-se combater a impunidade com medidas imediatas”.

Numa perspectiva democrática e de devido processo legal, diferentemente do que já vivenciamos nos tempos da Lava Jato, é urgente e necessária a punição dos golpistas antidemocráticos. O povo brasileiro merece viver num país livre de golpes fardados e civis, livre de políticos algozes, livre de fisiologistas, de fascistas e de falsos representantes do povo que exercem seus mandatos unicamente em favor de seus interesses individuais e corporativos.

Precisamos de mais Luizas Erundinas, que em seus quase 90 anos de idade, marcou sua digna atuação parlamentar em potente discurso na Câmara de Deputados pela defesa do mandato de Glauber Braga (PSOL), em processo que pode resultar na injusta cassação deste deputado, em que disse: “Nós perguntamos aos eleitores do Rio de Janeiro que elegeram em cinco mandatos consecutivos o deputado Glauber Braga, se eles concordam que o seu mandato seja cassado por essa comissão? [..] O povo é o soberano e em qualquer democracia, soberano é o povo, é aquele que delega poder através do voto democrático soberano, independente, secreto para que seja preservada a soberania popular”. [..] Esse tempo é sagrado para a gente continuar lutando pela democracia, não estamos com a democracia consolidada, é uma plantinha ameaçada quase todo dia por golpes e mais golpes, temos que cessar com isso”. (A fala integral da deputada está disponível em várias plataformas das redes sociais).Encerro este texto mencionando mais uma fala de Erundina, a verdadeira deputada do povo, na sessão 1.2021 21 da Câmara de Deputados: “Presidente, lamentavelmente, repete-se de uma gestão para outra a mesma alienação desta Casa daqueles que dizem que aqui é a Casa do Povo, porque é uma Casa sem povo, é uma Casa que não governa pensando no povo, que não representa de fato o povo”.

Que possamos gravar esse recado em nossas mentes, ao depositarmos nosso voto sagrado na urna, com a certeza de que nunca mais sejam eleitos usurpadores da democracia.

 

¨      "Kids Pretos" (com bolinhas verde-amarelas). Por Ronaldo Lima Lins

A nação tomou conhecimento, estarrecida, das estrepolias de um grupo de elite militar, conspirando para tomar o poder e assassinar o Presidente, o Vice e um Ministro do Supremo. Graças à Polícia Federal, soubemos que essa gente integrava os chamados “Kids pretos” e se associava a Comandos Especiais, programados para lutar contra subversivos e guerrilheiros. Sob a capa de defensores do Estado, agiram para ameaçar e tentar derrubar autoridades constituídas por meio de uma insurreição capitaneada por membros do antigo governo. 

Os tais elementos, com prestígio adquirido não se sabe onde, e inspirados no modelo dos rangers norte-americanos, exageraram nas suas vocações e se esqueceram de que as Forças Armadas existem para proteger e não para torpedear governos eleitos. Respeito aos pleitos, nos sistemas democráticos, representa uma função primordial de quem detém as armas. Nesse sentido, pareceu exemplar a ida à Câmara dos Deputados do General Tomás Paiva, Comandante do Exército, tirando dúvidas e prestando esclarecimentos aos parlamentares. 

No confronto com Marcel van Hatten, o jovem irreverente e agressivo sempre a ponto de explodir, colocou-o no devido lugar pela pura determinação dos argumentos, como se, de fato, estivesse ao lado da Lei. Mostrou-se inteligente, preparado e formado nas normas do espírito democrático. Um líder autêntico, enquanto, do outro lado, tínhamos um militante partidário preocupado em desestabilizar a administração vigente em favor da extrema direita. 

Nas conspirações agora denunciadas, os tais “Kids” agitaram bandeiras que nada tinham a ver com a discrição ou a neutralidade dos capuzes com os quais costumam se disfarçar. Implícitas nas ações e nas palavras colhidas segundo as investigações havia declarações de guerra contra os resultados eleitorais para a perpetuação dos antigos dirigentes no poder. Claro que obedeciam a orientações de cima, através de laços com autoridades próximas a Jair Bolsonaro e seus asseclas, incluindo os generais Braga Netto, Heleno, Mauro Cid e outros.

 Para quadros supostamente bem treinados (com dinheiro público) visando defender a democracia, resvalaram para clara subversão. Os “Kid pretos” (com bolinhas verde-amarelas) fariam melhor, junto com Tarcísio de Freitas e Malafaia, nos comícios de apoio ao renegado capitão, louco para recuperar prestígio e se livrar de acusações. 

 Nada disso soa tranquilizador no que diz respeito a nossas perspectivas de paz social. Parece evidente que, do ponto de vista ideológico, os treinamentos do Exército falharam drasticamente. Infringiram em sua verdadeira vocação no sentido de dever obediência hierárquica à autoridade superior, no caso ao Presidente da República. 

O que gastamos com o aparelhamento das nossas defesas só se justificaria se, por trás disso, permanecêssemos seguros – e não ameaçados. E não se trata de estrepolias de pequena monta. Algo do tipo poderia ter transbordado e gerado situações trágicas. Uma punição severa é o que os espera. Que nunca mais se imagine a possibilidade de setores, adestrados ou não, se tornarem maiores do que são.

 

Fonte: Brasil 247

 

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