quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Violência decorrente do uso de agrotóxicos explode no Brasil

A violência decorrente de contaminação por agrotóxicos no Brasil aumentou mais de 850% em um ano, aponta a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em um relatório sobre conflitos do campo divulgado nesta segunda-feira (02/12). Foram 182 casos de contaminação registrados no primeiro semestre deste ano, frente a 19 no mesmo período do ano passado.

De acordo com a organização, a maior parte das ocorrências (156) foi registrada no Maranhão, "onde comunidades estão sofrendo severas consequências da pulverização aérea do veneno".

"A contaminação por agrotóxicos é uma violência contra as condições de existência das comunidades. Ela está relacionada ao avanço da fronteira agrícola e à expansão das monoculturas transgênicas altamente dependentes de agrotóxicos", afirma Valéria Pereira Santos, da Coordenação Nacional da CPT.

"Em 2024, o maior registro de ocorrência dessa violência ocorreu no estado do Maranhão devido à articulação de organizações e comunidades, que intensificaram as denúncias de contaminação de comunidades por meio da pulverização aérea. Como ação de resistência, está sendo promovida uma campanha pela aprovação de um projeto de lei contra a pulverização aérea", diz Santos.

A CPT realiza esse levantamento desde 1976, e o novo dado referente aos agrotóxicos é o maior da série histórica. Os levantamentos são feitos pela entidade com base em fontes coletas por seus agentes em todo o país, bem como em divulgações de órgãos públicos, movimentos sociais e organizações parceiras ao longo do ano.

•                        "Chuvas de veneno"

O alarmante dado divulgado nesta segunda revela um efeito direto da pulverização aérea de pesticidas utilizados pelo agronegócio no Brasil. Na União Europeia, por exemplo, esse tipo de atividade é proibida desde 2009, por causa dos danos potenciais à saúde pública e ao meio ambiente.

No Brasil, apenas o Ceará tem uma legislação semelhante, proibindo as chamadas "chuvas de veneno". A mesma foi questionada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mas, em maio do ano passado, acabou sendo entendida como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Relatora da ação, a ministra Carmen Lúcia afirmou na ocasião que seu voto levava em consideração "os perigos graves, específicos e cientificamente comprovados de contaminação do ecossistema e de intoxicação de pessoas pela pulverização aérea de agrotóxicos".

A decisão do STF abre espaço para que outros estados brasileiros adotem posturas semelhantes. Projetos de lei para banir a pulverização tramitam em estados como São Paulo, Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, e o próprio Maranhão, entre outros, com resistências de entidades ruralistas.

Na esfera federal, também há projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados buscando proibir a pulverização aérea. Atualmente, uma norma do Ministério da Agricultura proíbe esse tipo de ação a menos de 500 metros de cidades, povoados e mananciais ou a menos de 250 metros de moradias isoladas. Mas ativistas reclamam da baixa fiscalização.

•                        Altos índices de violência no campo

De forma geral, o novo relatório da CPT aponta uma leve queda no número de vítimas da violência do campo, embora os dados sigam em um patamar alto, na avaliação da entidade. No total, foram registradas 1.056 ocorrências de conflitos no campo no primeiro semestre de 2024 — no mesmo período do ano passado foram 1.127, recorde da série histórica. Os dados consolidados de 2024 serão apresentados em abril do ano que vem.

"Houve uma pequena redução no número de conflitos pela terra em comparação ao mesmo período de 2023 […], mas os números revelam o relato de uma realidade ainda grave, de altos índices de violência", afirma a CPT. No primeiro semestre deste ano foram 824 ocorrências de violências contra a ocupação e a posse e 48 ações de resistência; no mesmo período de 2023, haviam sido 849 violências e 89 ações.

Grilagem, invasão e pistolagem também apresentaram redução, mas houve aumento das ocorrências de ameaça de expulsão, que passaram de 44, em 2023, para 77, em 2024.

"No caso das ocorrências de pistolagem, mesmo com a redução significativa de 150 para 88, este é o segundo maior registro da última década, atrás apenas de 2023, quando ocorreu o número recorde dessa violência", ressalta a CPT.

•                        Indígenas e posseiros são maiores vítimas

Houve uma mudança no quadro das maiores vítimas dos conflitos pela terra. Em 2023, os povos indígenas lideravam o ranking. Agora, o posto é ocupado pelos posseiros, ou seja, as famílias moradoras de comunidades tradicionais que ainda não têm a titulação da terra. Foram 235 vítimas registradas em 2024. Entre indígenas, foram 220. Na sequência aparecem quilombolas, com 116, e sem-terra, com 92.

Pelo segundo ano consecutivo, os fazendeiros lideram o ranking dos maiores causadores dessas violências, com 339 casos. Na sequência estão os empresários, com 137 ocorrências, governo federal (88) e estaduais (44) e grileiros (33).

O relatório indica uma redução no número de vítimas de assassinato por conflitos no campo. No primeiro semestre deste ano foram registrados 6 casos, contra 16 no mesmo período do ano passado. Considerando o que a organização levantou até novembro, o ano teve 11 casos. "Destes, quase metade dos assassinatos foram cometidos por fazendeiros", destaca a CPT.

Entre os assassinados estavam dez homens e uma mulher, a indígena Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó. Ela foi vítima de uma ação supostamente coordenada por um grupo de ruralistas no dia 21 de janeiro de 2024 na Bahia. Na ocasião, fazendeiros cercaram uma área ocupada por indígenas que reivindicavam ser ali território tradicional. Eles tentaram recuperar a propriedade, mesmo sem decisão judicial.

•                        Escravidão contemporânea

O relatório também indica uma redução do número de casos de trabalho em situação análoga à escravidão e de trabalhadores resgatados. Foram 59 casos e 441 trabalhadores rurais resgatados. Em 2023, foram 98 ocorrências e 1.395 pessoas resgatadas.

"Pelo segundo ano consecutivo, Minas Gerais foi o estado com o maior número de casos de trabalho escravo no primeiro semestre do ano [20 registros]. Entretanto, o Amazonas liderou em relação ao número de trabalhadores libertados, com um total de 100 pessoas encontradas em condições análogas à escravidão em áreas de desmatamento e garimpo", aponta a CPT.

"As atividades de maior concentração de trabalhadores resgatados continuaram sendo de lavouras permanentes, com 209 pessoas, seguida do desmatamento, com 75, mineração, com 70, produção de carvão vegetal, com 44, e a pecuária, com 39, demonstrando a grande contribuição do agronegócio e da mineração para a perpetuação do trabalho análogo à escravidão", diz a comissão.

Órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), instituição da Igreja Católica, a CPT foi criada em 1975, como instrumento de denúncia a situação de trabalhadores rurais, sobretudo na Amazônia, no contexto da ditadura militar.

 

•                        O que explica as disputas de projetos de carbono na Amazônia

Em meio à aprovação no Congresso do projeto para regulamentar o mercado de carbono no Brasil, o tema vem sendo alvo de intensas disputas em estados amazônicos.

Nos últimos meses, o Ministério Público Federal (MPF) cobrou maior transparência em iniciativas e até pediu a suspensão de um projeto no Amazonas. Em todas as situações, o temor é o de que os direitos de povos indígenas possam ser violados durante as vendas dos créditos.

O movimento ocorre em um contexto de ceticismo com as iniciativas ao redor do mundo, com sua efetividade questionada e acusações de "greenwashing" – estratégia utilizada para que uma empresa ou serviço venda sua imagem como sendo melhor para o meio ambiente do que realmente é.

Durante a 29ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP29), a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, celebrou a aprovação no Senado do mercado regulado de crédito de carbono, e disse que "o contexto não poderia ser melhor". 

No entanto, na mesma época, o MPF ajuizou uma ação civil pública para que a Justiça Federal suspendesse o projeto de crédito de carbono/REDD+ – Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal –, lançado pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Amazonas (Sema) para as unidades de conservação estaduais, onde habitam povos indígenas e tradicionais.

À DW, o MPF do Amazonas afirmou que há várias irregularidades e riscos identificados. "No projeto da Sema, comunitários e lideranças tradicionais relataram em reuniões que não foram sequer ouvidos. Também informaram que nada conhecem do tema crédito carbono", indicou.

No Pará, neste mesmo mês, o MPF e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) requisitaram que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) cumprisse medidas urgentes para que as leis não sejam violadas em uma eventual concretização da venda anunciada pelo governo do Pará de quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono.

Neste caso, além da falta de contato com as comunidades, existem dúvidas sobre a legalidade do projeto, já que parte dos créditos seria decorrente de imóveis rurais que não compõem o patrimônio fundiário do Estado do Pará, como terras indígenas. 

Os questionamentos não são uma exceção brasileira. Inigo Wyburd, especialista em políticas de mercados globais de carbono do Carbon Market Watch, afirma que a ausência de um diálogo efetivo com as comunidades locais e indígenas é um problema comum em projetos de REDD+. “As salvaguardas se destinam a proteger estas comunidades e o ambiente, mas a sua implementação muitas vezes é insuficiente”, aponta.

<><> "Cenário de violações"

Segundo o MPF-AM, é possível constatar que há um "cenário de violações" em diversos projetos e territórios. "Muitos dos contratos de créditos de carbono estão sendo trabalhados e construídos em sigilo, sem qualquer interferência ou participação dos órgãos de controle, nem mesmo Funai", afirma.  

Segundo o órgão, há a constatação de que não está havendo boa fé e nem informação adequada nas pretensas consultas em andamento, além de violações às consultas já demonstradas. São registrados ainda atritos em vários projetos, entre os comunitários, em face do assédio de empresas e instituições, aponta. 

Neste ano, a Agência Pública, apresentou o caso da Guiana, país pioneiro nos mercados voluntários de carbono, com um modelo similar ao adotado no Pará. Em certa região, a falta de planejamento para o destino dos recursos gerados pelos projetos levou ao caso da construção de um shopping praticamente inutilizado em uma aldeia. Em outras partes do país, as promessas das verbas beneficiando as comunidades locais também foram pouco cumpridas.

"As salvaguardas para proteger as comunidades são fracas e mal aplicadas, e os benefícios muitas vezes não se materializam ou são distribuídos de forma desigual", afirma Wyburd.

Além das violações dos direitos das comunidades locais, neste ano, três projetos de créditos de carbono foram suspensos na Amazônia depois que a Operação Greenwashing, da Polícia Federal, mostrou a ligação entre os líderes das iniciativas supostamente "verdes" e esquemas de grilagem de terras e extração ilegal de madeira.

A Verra, certificadora do projeto – uma das maiores do mundo no mercado voluntário de carbono – anunciou a decisão em 10 de junho. "A suspensão de uma conta é uma ação extraordinária que significa que nenhuma transação pode ser feita na conta, incluindo os créditos mantidos na conta, até que todos os problemas ou incertezas identificadas tenham sido resolvidos", declarou.

<><> Preocupação global com eficácia

Estudos realizados pela sociedade civil revelaram que muitos projetos de REDD+ superestimam significativamente o seu impacto, levantando sérias preocupações sobre a sua credibilidade, afirma Wyburd. Um relatório do Carbon Market Watch chegou à conclusão de que apenas uma a cada 13 iniciativas REDD+ representou uma queda real no desmatamento, o que fica em linha com outros estudos divulgados pelo mundo.

Uma publicação do Projeto de Comércio de Carbono da Universidade de Berkeley concluiu que o excesso de crédito é "significativo e generalizado" em projetos REDD+. A divulgação cita um estudo publicado na revista Science, que avalia os efeitos de 26 projetos deste tipo em seis países de três continentes, descobrindo que a maioria não reduziu significativamente o desmatamento. Nos que o que o fizeram, as reduções foram substancialmente inferiores às reivindicadas.

"A questão central reside no fracasso das metodologias existentes em garantir a precisão. As linhas de base são frequentemente inflacionadas, as fugas são subestimadas e os estoques de carbono são exagerados, resultando na emissão de créditos de carbono de baixa qualidade", explica o especialista. 

A publicação do Projeto de Comércio de Carbono afirma que as metodologias são comumente escritas pelos desenvolvedores dos projetos, enquanto os promotores se beneficiam da geração de mais créditos com menos investimento, e os compradores conseguem créditos de custo mais baixo.

Para Wyburd, nos projetos atuais, há ainda uma falta significativa de transparência financeira, particularmente no que diz respeito à divulgação pública de informações pelos principais intervenientes. Com base em um estudo do seu observatório, ele lembra que a maioria dos promotores de projetos está baseada no Norte Global, enquanto os próprios projetos estão em grande parte no Sul, levantando questões críticas sobre os fluxos financeiros. 

"Após anos de crescente escrutínio por parte dos meios de comunicação social e da sociedade civil, a procura de créditos REDD+ estagnou significativamente", aponta. O especialista cita a relutância das empresas em adquirir créditos sobrestimados, já que se corre o risco de acusações de greenwashing, o que já levou várias empresas a enfrentar desafios legais. 

Por sua vez, Wyburd cita alguns desenvolvimentos positivos. "Iniciativas como o Conselho de Integridade para os Mercados Voluntários de Carbono (ICVCM) estão trabalhando para estabelecer padrões de referência de maior qualidade para créditos de carbono, enfatizando a transparência, a precisão e a inclusão das partes interessadas", explica.

 

Fonte: DW Brasil

 

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