terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Roberto Amaral: A trama golpista e o dever de agir

Do ponto de vista não só jurídico, quanto da realpolitik, era impossível punir os generais Eurico Gapar Dutra e Góes Monteiro, bem como seus muitos coadjuvantes que, em 1937, com Getúlio Vargas, derrubaram o regime constitucional de 1934 e implantaram a ditadura do Estado Novo, que nos cobraria 15 anos de arbítrio sem peias até cair de inanição em 1945. Impossível a punição simplesmente porque, com o ditador, a caserna encarnava o poder e o exercia sobre toda a vida civil e institucional. O direito era o que ela proclamasse. Os militares eram inatingíveis, mas tão só enquanto senhores de baraço e cutelo do poder sustentado pelos fuzis. Restaurada a vida democrática, todavia, a nova ordem jurídica não se fez valer, e antigos e novos dirigentes, sátrapas e régulos, os delinquentes do Estado Novo e os líderes da reação democrática, militares e civis, se reuniram na confraternização da impunidade. Aplicou-se a regra do silêncio sobre o passado e proclamou-se a impunidade no presente e no futuro. O ministro da guerra da ditadura seria o primeiro presidente eleito na democracia.

Similar seria a crônica da ascensão e queda da ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964. Como antes, e até aqui: a negociação, a conciliação em nome da pacificação dos espíritos, a concordata entre atores dos dois lados.

Em 1945, na democracia acovardada, como em 1955, no 11 de novembro, como depois de Aragarças e Jacareacanga, como em 1961, na frustrada tentativa de impedir a posse de João Goulart, os golpistas derrotados seriam consagrados pela conciliação, codinome da impunidade, mãe de todos os crimes. 

Em 1979, o Congresso, então muito menos reacionário e menos corrupto que o atual, promulga a proposta de anistia enviada pela ditadura, cujo objetivo, logrado, era livrar seus agentes da punição necessária pelos monstruosos crimes cometidos. Livravam-se da lei os fardados, quando a resistência já havia sido punida com cassações, banimentos, prisões, torturas e assassinatos sem conta. E até hoje se procuram tantos e tantos cadáveres, como os de Mário Alves, Stuart Angel e Rubens Paiva, três de um número ainda não conhecido das vítimas da insanidade covarde, como desconhecido (mas que se sabe extenso) é o número de torturadas e torturados nos desvãos do quartéis e delegacias de polícia, nos porões dos DOI-CODI de todos o país e nos muitos “aparelhos” mais ou menos clandestinos.

Essa política de recuo permanente, e recuo como fim em si mesmo, levaria à concordata política de 1985, mediante a qual os militares, embora rendidos pela opinião pública, ditaram os termos do abandono da cena aberta negociados com a chamada “classe política” de então. Pelo menos duas das muitas cláusulas impostas e aceitas deveriam ter sido recusadas como ignominiosas: a exigência de uma constituinte parlamentar, e não exclusiva, como exigia o quadro nacional e o bom direito constitucional; e o veto a qualquer possibilidade de punição dos militares meliantes.

A renúncia ao dever de ser e fazer cobra seu preço: o regime da república democratizada foi subsumido pelo regime decaído, e os militares mantiveram a curatela mais que secular sobre a vida civil e as instituições. Sua preeminência se estende à Constituinte e sobrevive nos governos da Nova República. Mediante várias formas de intervenção, como vetos e propostas de redação, os grupos de pressão militares terminaram por participar da elaboração do texto que um Ulysses Guimarães entusiasmado saudaria como “A Constituição cidadã”. O general Leônidas Pires Gonçalves, Comandante Militar do Oeste (CMO) na ditadura, ministro do exército no governo Sarney desde 1985, transforma-se em constituinte ad-hoc, poderoso como representante da caserna. Deve-se a intervenção sua a excrescência em que se constitui o art. 142 da Constituição vigente.

Em nossa história os  fardados, mesmo  vencidos, reescrevem o passado, ditam o presente e condicionam o futuro.

Assim, de concessão em concessão, de omissão em omissão, de conciliação em conciliação, chegamos aos planos macabros dos militares agrupados em torno do capitão Bolsonaro. Cavando a cova na qual a democracia seria encerrada, renunciamos, em todas as oportunidades oferecidas, ao dever republicano de punir os sediciosos derrotados. Vencer esse destino é o desafio presente.

Militares e civis impunes constituiriam o núcleo da urdidura do golpe de 1964. Seus herdeiros formam a súcia que comandou e sustentou o projeto bolsonarista. Seu líder é o General Villas Bôas, comandante do exército que em 2018 intimou um STF genuflexo a não conceder habeas corpus ao candidato Lula, assim afastando-o da disputa eleitoral quando liderava as pesquisas de intenção de votos. Funcionou como abre-alas às rotas que levariam à presidência um obscuro deputado do baixo clero da Câmara dos Deputados, ex-capitão irrelevante, acusado de terrorismo na própria unidade em que servia.

Essa choldra de generais e oficiais de todos os escalões de todas as armas sustentou o mandato e os desmandos do cupincha delinquente. Seu produto é a infâmia, a conjuração, a traição. A saída encontrada à derrota eleitoral foi, por ganância e temor, a permanência no poder por meio de duas tentativas de golpe de Estado, a primeira das quais mediante a inominável tentativa de assassinato do presidente, do vice-presidente da república e de um ministro do Supremo, façanha típica de gangsters, ainda inédita entre nós. São as urdiduras de novembro-dezembro de 2022, recém reveladas pela Polícia Federal. A maquinação frustrada é conhecida em seus pormenores, os conspiradores nomeados, mas os delinquentes de alta patente ainda estão longe da punição.

O desafio, queimante como brasa viva, é político, e tão só político, e não se resolverá com a tentativa de transferir para o poder judiciário, como até aqui, a responsabilidade das decisões cruciais. O STF já se anunciou, em episódios anteriores, como “sensível ao rumor das ruas”, metáfora para nos dizer que sua coragem é do tamanho da pressão que sofrer . Cumpre aos partidos e movimentos sociais promover a mobilização das massas, das forças populares e progressistas, agora e já, quando o poder executivo declina de seu dever de falar à sociedade.

Estranha estratégia que abandona a política e renuncia à ação. A todas essas preocupantes ausências se soma, como agravante, a presença de um Congresso ultra-reacionário, em crise moral e ética, forcejando por levar avante um projeto de anistia que ofende a dignidade nacional e premia o golpismo.

Não é hora de “pacificar o país”, mediante mais uma conciliação com o crime. A pacificação de que o país carece é aquela que pede guerra aberta à concentração de renda, à ditadura do capital estéril sobre o trabalho (expressa num “teto de gastos” austericida) e a produção que nos retém, subdesenvolvidos, na periferia do capitalismo atrasado, quando temos ou tínhamos todas as condições de fazer deste território um país rico, habitado por uma população feliz, aquela que desfruta de reais condições de trabalho e vida dignas, negadas à maioria absoluta da população brasileira, cuja economia é controlada por 1% de sua população, possuidora de algo como 28% da renda nacional. Mas nos distanciamos disso quando absorvemos como nossa a ideologia da classe dominante e aceitamos como política de um governo de centro-esquerda e raízes populares as regras do grande capital cantadas em proso e versa pelos especuladores da Faria Lima e seus procuradores na grande imprensa...

Por que um governo eleito para promover o desenvolvimento se curva diante do império do ajuste fiscal a qualquer preço, mesmo ao preço de renunciar à proteção dos pobres que o elegeram?

A visão de realidade, que expurga o otimismo irresponsável, porque irreal, não esconde, porém, o registro de alguns avanços, no esforço coletivo de salvar a democracia liberal-burguesa para na sequência construir a democracia social de nossos sonhos. A conditio sine qua non de qualquer progresso político é o estabelecimento da soberania do poder civil, oportunidade que se oferece hoje ao país em termos jamais conhecidos na história republicana: a oportunidade de a sociedade dizer que tipo de forças armadas deseja.

Raramente o cavalo passa encilhado mais de uma vez.

Avanço político é o encontro de uma PF surpreendentemente republicana com um STF até aqui disposto a levar às últimas consequências o compromisso com a guarda da Constituição, desempenhando, nestes termos, papel extremamente diverso daquele de quando serviu de aríete ao projeto golpista que ensejou a ascensão de um facínora à presidência da república. Trata-se de avanço, sabendo-se, porém, que nada obstante seu caráter essencial, ele ainda está longe de dar conta de todo o caminho a ser palmilhado. Aguarda-se o pronunciamento do MPF, prometido para daqui a longos e perigosos mais três meses, e com ele a denúncia dos indiciados, e aguarda-se o julgamento dos réus, o que cobrará ainda muito tempo.

. Difícil, porém, será qualquer mobilização se o governo permanecer silente e aparentemente imóvel, se os partidos não tiverem condições (ou não quiserem) articular a sociedade civil, se os sindicatos não forem atraídos às ruas. E, para o bom desfecho, muito dependemos do presidente Lula. Dele a nação aguarda uma diretiva, uma palavra de ordem que não pode ser delegada, nem adiada. Do contrário, tudo continuará como dantes no castelo de Abrantes. E amanhã voltaremos a ter os calcanhares picados pelas mesmas serpentes, retomando o círculo vicioso de nossa história.

 

•                        A democracia não revida, aplica a lei. Por Gustavo Krause

No livro Sobre a democracia, (Editora Universidade de Brasília, 2001), o autor Robert Dahl (1915-2014) afirma que “governar bem um estado exige mais do que o conhecimento. Exige também a honestidade sem corrupção, a resistência firme a todas as enormes tentações do poder, além de uma dedicação constante e inflexível ao bem público, mais do que aos benefícios de uma pessoa ou ao seu grupo” e prossegue, mencionando a famosa máxima do Lord Acton (1834-1902), dita em 1847: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente” (p. 87).

Um século antes, o estadista britânico William Pitt (1759-1806) fizera semelhante observação num discurso ao Parlamento: “O poder ilimitado está apto a corromper as mentes de quem o possui”. Dahl ressalta, na sequência, que esse também era o pensamento vigente entre os membros da Convenção Constituinte norte-americana, expresso pelo representante mais idoso Benjamim Franklin (1706-1790): “Existem duas paixões que têm poderosa influência nos negócios dos homens: a ambição e a avareza, o amor pelo poder e o amor pelo dinheiro”.

Na mesma linha de pensamento, um dos “Pais Fundadores” da nação norte-americana, o experiente e influente George Mason (1725-1792) proclamou: “Da natureza humana podemos ter certeza de que os que detêm o poder em suas mãos…sempre que puderem, tratarão de aumentá-lo”.

Robert Dahl arremata as sábias reflexões com uma afirmação pertinente: “Por mais instruídos e confiáveis que sejam inicialmente os membros de uma elite governante dotada do poder de governar um estado, em poucos anos ou poucas gerações, é muito provável que abusem dele” (op. cit. p. 88).

A propósito, estas referências reforçam a necessidade de uma dose inata de desconfiança do poder que assuma formas capazes de frear o impulso opressor da violência inserida no próprio abuso do poder. Neste sentido, a história está repleta de exemplos de lutas imemoriais no plano das ideias e nos campos de batalha em favor da liberdade e da vida, valores que dão sentido à Política na luminosa definição de Hannah Arendt (1906-1975): “O que está em joga aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez de toda vida orgânica da Terra” (O que é Política? – Fragmentos das obras póstumas compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.39).

Play Video

De fato, o longo percurso histórico não chegou ao capítulo final sob o modelo da democracia liberal ocidental, como preconizou Francis Fukuyama, pensador e cientista politico, nipo-americano (1952), na sua polêmica obra O fim da história e o último homem, lançado em 1992. Tampouco sucumbiu aos regimes autoritários e ao horror dos totalitarismos. A democracia resiste e renasce. E mais: independente de prescrições ideológicas ou nuances doutrinárias, ondas e ciclos alternaram sistemas democráticos, todos imperfeitos (afinal, “se fôssemos anjos, nenhum governo seria necessário”), assentados sobre dois pilares que sustentam a ordem liberal contemporânea: o constitucionalismo e a democratização da cidadania.

Com efeito, este contexto estabelece regras de convivência inscritas no Estado Democrático de Direito que representam as formas avançadas de uma sociedade livre. Nelas, a cultura política legitima limites ao poder frente a um sistema de pesos e contrapesos (somente poder limita poder); assegura os direitos humanos, ampla liberdade de expressão, os direitos das minorias (gênero, etnia, crença religiosa), a participação do cidadão comum na vida pública, a defesa do meio ambiente; garante a transparência por meio de instituições de controle e responsabilização dos agentes públicos; promove, na prática, a educação política e o respeito aos princípios éticos nas relações sociais.

O que assusta é que todas essas conquistas civilizatórias têm sofrido ameaças e rupturas. Mudam as aparências dos métodos; a violência clássica das armas, mimetiza-se na erosão das instituições democráticas. A bem da verdade não se excluem. Podem caminhar juntas pela simples razão de que usam como matérias-primas a sensação difusa do medo, a concentração do sentimento do ódio e a instalação do caos.

O Brasil viveu e conviveu, comprovadamente pelas investigações em curso, com o desenrolar de um processo criminoso de ruptura que, por pouco, não resultou na quebra da institucionalidade da democracia mediante um golpe de estado, graças à ação eficiente dos órgãos de inteligência e a imediata reação da força legitima da coerção, elemento constitutivo do Estado Democrático de Direito.

A Democracia, confirma a experiência, é um arranjo político virtuoso. Tinha toda razão, o visionário Montesquieu quando identificou a virtude como princípio da República e o medo, princípio dos regimes despóticos. Os golpistas usaram os caminhos assegurados pelo regime democrático para atentar contra sua existência, com o agravante da manifesta e hedionda intenção de assassinar o Presidente Lula, o Vice-Presidente, Geraldo Alckmin, eleitos, e o Ministro do STF, Alexandre de Moraes. Desmascarados, os agentes do golpismo terão assegurada pela vítima, a democracia, a garantia do devido processo legal.

Por natureza e temperamento, a democracia é generosa. E sua força reside numa suposta fraqueza. Porque ela não se vinga. Sequer revida. Simplesmente, defende a si própria e a todos como o governo da liberdade dos espíritos e da justa aplicação da lei aos delinquentes políticos.

 

Fonte: Brasil 247/Metrópoles

 

Nenhum comentário: