Roberto
Amaral: A trama golpista e o dever de agir
Do
ponto de vista não só jurídico, quanto da realpolitik, era impossível punir os
generais Eurico Gapar Dutra e Góes Monteiro, bem como seus muitos coadjuvantes
que, em 1937, com Getúlio Vargas, derrubaram o regime constitucional de 1934 e
implantaram a ditadura do Estado Novo, que nos cobraria 15 anos de arbítrio sem
peias até cair de inanição em 1945. Impossível a punição simplesmente porque,
com o ditador, a caserna encarnava o poder e o exercia sobre toda a vida civil
e institucional. O direito era o que ela proclamasse. Os militares eram
inatingíveis, mas tão só enquanto senhores de baraço e cutelo do poder
sustentado pelos fuzis. Restaurada a vida democrática, todavia, a nova ordem
jurídica não se fez valer, e antigos e novos dirigentes, sátrapas e régulos, os
delinquentes do Estado Novo e os líderes da reação democrática, militares e
civis, se reuniram na confraternização da impunidade. Aplicou-se a regra do
silêncio sobre o passado e proclamou-se a impunidade no presente e no futuro. O
ministro da guerra da ditadura seria o primeiro presidente eleito na
democracia.
Similar
seria a crônica da ascensão e queda da ditadura militar instaurada em 1º de
abril de 1964. Como antes, e até aqui: a negociação, a conciliação em nome da
pacificação dos espíritos, a concordata entre atores dos dois lados.
Em
1945, na democracia acovardada, como em 1955, no 11 de novembro, como depois de
Aragarças e Jacareacanga, como em 1961, na frustrada tentativa de impedir a
posse de João Goulart, os golpistas derrotados seriam consagrados pela
conciliação, codinome da impunidade, mãe de todos os crimes.
Em
1979, o Congresso, então muito menos reacionário e menos corrupto que o atual,
promulga a proposta de anistia enviada pela ditadura, cujo objetivo, logrado,
era livrar seus agentes da punição necessária pelos monstruosos crimes
cometidos. Livravam-se da lei os fardados, quando a resistência já havia sido
punida com cassações, banimentos, prisões, torturas e assassinatos sem conta. E
até hoje se procuram tantos e tantos cadáveres, como os de Mário Alves, Stuart
Angel e Rubens Paiva, três de um número ainda não conhecido das vítimas da
insanidade covarde, como desconhecido (mas que se sabe extenso) é o número de
torturadas e torturados nos desvãos do quartéis e delegacias de polícia, nos
porões dos DOI-CODI de todos o país e nos muitos “aparelhos” mais ou menos
clandestinos.
Essa
política de recuo permanente, e recuo como fim em si mesmo, levaria à
concordata política de 1985, mediante a qual os militares, embora rendidos pela
opinião pública, ditaram os termos do abandono da cena aberta negociados com a
chamada “classe política” de então. Pelo menos duas das muitas cláusulas
impostas e aceitas deveriam ter sido recusadas como ignominiosas: a exigência
de uma constituinte parlamentar, e não exclusiva, como exigia o quadro nacional
e o bom direito constitucional; e o veto a qualquer possibilidade de punição
dos militares meliantes.
A
renúncia ao dever de ser e fazer cobra seu preço: o regime da república
democratizada foi subsumido pelo regime decaído, e os militares mantiveram a
curatela mais que secular sobre a vida civil e as instituições. Sua
preeminência se estende à Constituinte e sobrevive nos governos da Nova
República. Mediante várias formas de intervenção, como vetos e propostas de
redação, os grupos de pressão militares terminaram por participar da elaboração
do texto que um Ulysses Guimarães entusiasmado saudaria como “A Constituição
cidadã”. O general Leônidas Pires Gonçalves, Comandante Militar do Oeste (CMO)
na ditadura, ministro do exército no governo Sarney desde 1985, transforma-se
em constituinte ad-hoc, poderoso como representante da caserna. Deve-se a
intervenção sua a excrescência em que se constitui o art. 142 da Constituição
vigente.
Em
nossa história os fardados, mesmo vencidos, reescrevem o passado, ditam o
presente e condicionam o futuro.
Assim,
de concessão em concessão, de omissão em omissão, de conciliação em
conciliação, chegamos aos planos macabros dos militares agrupados em torno do
capitão Bolsonaro. Cavando a cova na qual a democracia seria encerrada,
renunciamos, em todas as oportunidades oferecidas, ao dever republicano de
punir os sediciosos derrotados. Vencer esse destino é o desafio presente.
Militares
e civis impunes constituiriam o núcleo da urdidura do golpe de 1964. Seus
herdeiros formam a súcia que comandou e sustentou o projeto bolsonarista. Seu
líder é o General Villas Bôas, comandante do exército que em 2018 intimou um
STF genuflexo a não conceder habeas corpus ao candidato Lula, assim afastando-o
da disputa eleitoral quando liderava as pesquisas de intenção de votos.
Funcionou como abre-alas às rotas que levariam à presidência um obscuro
deputado do baixo clero da Câmara dos Deputados, ex-capitão irrelevante,
acusado de terrorismo na própria unidade em que servia.
Essa
choldra de generais e oficiais de todos os escalões de todas as armas sustentou
o mandato e os desmandos do cupincha delinquente. Seu produto é a infâmia, a
conjuração, a traição. A saída encontrada à derrota eleitoral foi, por ganância
e temor, a permanência no poder por meio de duas tentativas de golpe de Estado,
a primeira das quais mediante a inominável tentativa de assassinato do
presidente, do vice-presidente da república e de um ministro do Supremo,
façanha típica de gangsters, ainda inédita entre nós. São as urdiduras de
novembro-dezembro de 2022, recém reveladas pela Polícia Federal. A maquinação
frustrada é conhecida em seus pormenores, os conspiradores nomeados, mas os
delinquentes de alta patente ainda estão longe da punição.
O
desafio, queimante como brasa viva, é político, e tão só político, e não se
resolverá com a tentativa de transferir para o poder judiciário, como até aqui,
a responsabilidade das decisões cruciais. O STF já se anunciou, em episódios
anteriores, como “sensível ao rumor das ruas”, metáfora para nos dizer que sua
coragem é do tamanho da pressão que sofrer . Cumpre aos partidos e movimentos
sociais promover a mobilização das massas, das forças populares e
progressistas, agora e já, quando o poder executivo declina de seu dever de
falar à sociedade.
Estranha
estratégia que abandona a política e renuncia à ação. A todas essas
preocupantes ausências se soma, como agravante, a presença de um Congresso
ultra-reacionário, em crise moral e ética, forcejando por levar avante um
projeto de anistia que ofende a dignidade nacional e premia o golpismo.
Não
é hora de “pacificar o país”, mediante mais uma conciliação com o crime. A
pacificação de que o país carece é aquela que pede guerra aberta à concentração
de renda, à ditadura do capital estéril sobre o trabalho (expressa num “teto de
gastos” austericida) e a produção que nos retém, subdesenvolvidos, na periferia
do capitalismo atrasado, quando temos ou tínhamos todas as condições de fazer
deste território um país rico, habitado por uma população feliz, aquela que
desfruta de reais condições de trabalho e vida dignas, negadas à maioria
absoluta da população brasileira, cuja economia é controlada por 1% de sua
população, possuidora de algo como 28% da renda nacional. Mas nos distanciamos
disso quando absorvemos como nossa a ideologia da classe dominante e aceitamos
como política de um governo de centro-esquerda e raízes populares as regras do
grande capital cantadas em proso e versa pelos especuladores da Faria Lima e
seus procuradores na grande imprensa...
Por
que um governo eleito para promover o desenvolvimento se curva diante do
império do ajuste fiscal a qualquer preço, mesmo ao preço de renunciar à
proteção dos pobres que o elegeram?
A
visão de realidade, que expurga o otimismo irresponsável, porque irreal, não
esconde, porém, o registro de alguns avanços, no esforço coletivo de salvar a
democracia liberal-burguesa para na sequência construir a democracia social de
nossos sonhos. A conditio sine qua non de qualquer progresso político é o
estabelecimento da soberania do poder civil, oportunidade que se oferece hoje
ao país em termos jamais conhecidos na história republicana: a oportunidade de
a sociedade dizer que tipo de forças armadas deseja.
Raramente
o cavalo passa encilhado mais de uma vez.
Avanço
político é o encontro de uma PF surpreendentemente republicana com um STF até
aqui disposto a levar às últimas consequências o compromisso com a guarda da
Constituição, desempenhando, nestes termos, papel extremamente diverso daquele
de quando serviu de aríete ao projeto golpista que ensejou a ascensão de um
facínora à presidência da república. Trata-se de avanço, sabendo-se, porém, que
nada obstante seu caráter essencial, ele ainda está longe de dar conta de todo
o caminho a ser palmilhado. Aguarda-se o pronunciamento do MPF, prometido para
daqui a longos e perigosos mais três meses, e com ele a denúncia dos
indiciados, e aguarda-se o julgamento dos réus, o que cobrará ainda muito
tempo.
.
Difícil, porém, será qualquer mobilização se o governo permanecer silente e
aparentemente imóvel, se os partidos não tiverem condições (ou não quiserem)
articular a sociedade civil, se os sindicatos não forem atraídos às ruas. E,
para o bom desfecho, muito dependemos do presidente Lula. Dele a nação aguarda
uma diretiva, uma palavra de ordem que não pode ser delegada, nem adiada. Do
contrário, tudo continuará como dantes no castelo de Abrantes. E amanhã
voltaremos a ter os calcanhares picados pelas mesmas serpentes, retomando o
círculo vicioso de nossa história.
• A democracia não revida,
aplica a lei. Por Gustavo Krause
No
livro Sobre a democracia, (Editora Universidade de Brasília, 2001), o autor
Robert Dahl (1915-2014) afirma que “governar bem um estado exige mais do que o
conhecimento. Exige também a honestidade sem corrupção, a resistência firme a
todas as enormes tentações do poder, além de uma dedicação constante e
inflexível ao bem público, mais do que aos benefícios de uma pessoa ou ao seu
grupo” e prossegue, mencionando a famosa máxima do Lord Acton (1834-1902), dita
em 1847: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente”
(p. 87).
Um
século antes, o estadista britânico William Pitt (1759-1806) fizera semelhante
observação num discurso ao Parlamento: “O poder ilimitado está apto a corromper
as mentes de quem o possui”. Dahl ressalta, na sequência, que esse também era o
pensamento vigente entre os membros da Convenção Constituinte norte-americana,
expresso pelo representante mais idoso Benjamim Franklin (1706-1790): “Existem
duas paixões que têm poderosa influência nos negócios dos homens: a ambição e a
avareza, o amor pelo poder e o amor pelo dinheiro”.
Na
mesma linha de pensamento, um dos “Pais Fundadores” da nação norte-americana, o
experiente e influente George Mason (1725-1792) proclamou: “Da natureza humana
podemos ter certeza de que os que detêm o poder em suas mãos…sempre que
puderem, tratarão de aumentá-lo”.
Robert
Dahl arremata as sábias reflexões com uma afirmação pertinente: “Por mais
instruídos e confiáveis que sejam inicialmente os membros de uma elite
governante dotada do poder de governar um estado, em poucos anos ou poucas
gerações, é muito provável que abusem dele” (op. cit. p. 88).
A
propósito, estas referências reforçam a necessidade de uma dose inata de
desconfiança do poder que assuma formas capazes de frear o impulso opressor da
violência inserida no próprio abuso do poder. Neste sentido, a história está
repleta de exemplos de lutas imemoriais no plano das ideias e nos campos de
batalha em favor da liberdade e da vida, valores que dão sentido à Política na
luminosa definição de Hannah Arendt (1906-1975): “O que está em joga aqui não é
apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade
e talvez de toda vida orgânica da Terra” (O que é Política? – Fragmentos das
obras póstumas compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002, p.39).
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De
fato, o longo percurso histórico não chegou ao capítulo final sob o modelo da
democracia liberal ocidental, como preconizou Francis Fukuyama, pensador e
cientista politico, nipo-americano (1952), na sua polêmica obra O fim da
história e o último homem, lançado em 1992. Tampouco sucumbiu aos regimes
autoritários e ao horror dos totalitarismos. A democracia resiste e renasce. E
mais: independente de prescrições ideológicas ou nuances doutrinárias, ondas e
ciclos alternaram sistemas democráticos, todos imperfeitos (afinal, “se
fôssemos anjos, nenhum governo seria necessário”), assentados sobre dois
pilares que sustentam a ordem liberal contemporânea: o constitucionalismo e a
democratização da cidadania.
Com
efeito, este contexto estabelece regras de convivência inscritas no Estado
Democrático de Direito que representam as formas avançadas de uma sociedade
livre. Nelas, a cultura política legitima limites ao poder frente a um sistema
de pesos e contrapesos (somente poder limita poder); assegura os direitos
humanos, ampla liberdade de expressão, os direitos das minorias (gênero, etnia,
crença religiosa), a participação do cidadão comum na vida pública, a defesa do
meio ambiente; garante a transparência por meio de instituições de controle e
responsabilização dos agentes públicos; promove, na prática, a educação
política e o respeito aos princípios éticos nas relações sociais.
O
que assusta é que todas essas conquistas civilizatórias têm sofrido ameaças e
rupturas. Mudam as aparências dos métodos; a violência clássica das armas,
mimetiza-se na erosão das instituições democráticas. A bem da verdade não se
excluem. Podem caminhar juntas pela simples razão de que usam como
matérias-primas a sensação difusa do medo, a concentração do sentimento do ódio
e a instalação do caos.
O
Brasil viveu e conviveu, comprovadamente pelas investigações em curso, com o
desenrolar de um processo criminoso de ruptura que, por pouco, não resultou na
quebra da institucionalidade da democracia mediante um golpe de estado, graças
à ação eficiente dos órgãos de inteligência e a imediata reação da força
legitima da coerção, elemento constitutivo do Estado Democrático de Direito.
A
Democracia, confirma a experiência, é um arranjo político virtuoso. Tinha toda
razão, o visionário Montesquieu quando identificou a virtude como princípio da
República e o medo, princípio dos regimes despóticos. Os golpistas usaram os
caminhos assegurados pelo regime democrático para atentar contra sua
existência, com o agravante da manifesta e hedionda intenção de assassinar o
Presidente Lula, o Vice-Presidente, Geraldo Alckmin, eleitos, e o Ministro do
STF, Alexandre de Moraes. Desmascarados, os agentes do golpismo terão
assegurada pela vítima, a democracia, a garantia do devido processo legal.
Por
natureza e temperamento, a democracia é generosa. E sua força reside numa
suposta fraqueza. Porque ela não se vinga. Sequer revida. Simplesmente, defende
a si própria e a todos como o governo da liberdade dos espíritos e da justa
aplicação da lei aos delinquentes políticos.
Fonte:
Brasil 247/Metrópoles
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