O vírus
descoberto nas profundezas da costa do RJ que ganhou nome da mitologia indígena
Para
os tupinambás que habitavam a região conhecida hoje como Rio de Janeiro, Iara
era a deusa da água. Já Anhangá era a divindade que respondia, entre outras
coisas, pelas profundezas e pelo submundo.
Após
séculos de histórias e lendas, esses nomes da mitologia nacional ganharam um
novo significado a partir do trabalho do pesquisador Alessandro Garritano, que
faz doutorado na Universidade New South Wales, em Sydney, na Austrália.
O
trabalho dele, que busca entender como acontece a fixação de carbono no mar
profundo, desembocou em uma série de descobertas sobre uma intrincada relação
entre esponjas-do-mar, bactérias, arqueas (um micro-organismo unicelular) e
vírus que, juntos, interagem e sobrevivem a mais de 700 metros de profundidade,
em um lugar onde os nutrientes são raros e a luz não chega.
A
partir do estudo, Garritano teve a oportunidade de dar o nome a alguns dos
personagens envolvidos nessa história — e foi aí que ele teve a ideia de
recorrer às tradições indígenas brasileiras.
"Temos
muitos nomes científicos que fazem alusão à mitologia grega, romana e nórdica,
e pouca coisa sobre a nossa própria cultura", observa Garritano.
Mas,
para entender como ele chegou até essa etapa, é preciso descobrir como a
pesquisa começou — e todos os achados que os cientistas encontraram pelo
caminho.
• Sobrevivência
em um mundo extremo
Garritano
se considera um apaixonado pelo mecanismo de fixação de carbono em ambientes
desprovidos de luz.
Nas
aulas de Biologia, aprendemos que as plantas fazem a fotossíntese, em que
convertem o dióxido de carbono (CO₂) da atmosfera. Esse processo depende da luz
solar.
Após
uma série de processos químicos complexos, esse CO₂ se transforma em energia,
que garante a sobrevivência das espécies vegetais — e está na base de toda a
cadeia alimentar de nosso planeta.
"As
plantas obtêm energia por meio da luz solar para fixar o carbono na matéria
orgânica", resume o cientista.
Mas
como essa fixação de carbono acontece em ambientes onde a luz não chega, como
as partes mais profundas do oceano?
Afinal,
mesmo nesses ambientes onde os nutrientes são escassos, há a formação de corais
e algumas esponjas prosperam.
"Os
organismos que habitam esses ambientes obtêm energia a partir de substâncias
químicas, como a amônia. E essa energia é usada para fixar o carbono em águas
profundas", antecipa Garritano.
"O
meu interesse está em entender como esses organismos são capazes de produzir
sua própria comida e como eles conseguem garantir a vida nesses locais."
O
grupo da Universidade New South Wales do qual Garritano faz parte realiza
pesquisas com esponjas-do-mar, um animal simples e primitivo que vive na Terra
há cerca de 600 milhões de anos.
No
seu doutorado, o brasileiro teve a oportunidade de coletar amostras de uma
espécie específica de esponja (a Aphrocallistes beatrix), que habita uma zona
de 700 metros de profundidade na Bacia de Campos, a cerca de 300 quilômetros da
costa fluminense.
O
trabalho de campo aconteceu durante os meses da pandemia de covid-19, durante o
segundo semestre de 2020.
Após
uma série de protocolos para evitar a infecção pelo coronavírus, Garritano e
outras 30 pessoas embarcaram em um navio e fizeram uma expedição em alto-mar.
Eles
usaram um veículo operado remotamente — uma espécie de submarino não tripulado,
que é operado por meio de um controle similar ao usado em videogames — para
descer às profundezas do oceano e coletar amostras.
"Esses
veículos têm braços mecânicos que se parecem com garras. Eles conseguem pegar
as esponjas e colocá-las dentro de uma caixa especial, para evitar a
contaminação", detalha o pesquisador.
"Na
sequência, a depender do objetivo de cada amostra, nós as colocamos em tubos
com produtos químicos para preservá-las e poder observar no microscópio, ou as
congelamos em nitrogênio líquido para entender melhor o mecanismo das células
delas."
Algumas
das esponjas foram mantidas vivas no Aquário Marinho do Rio de Janeiro
(AquaRio), onde os cientistas montaram tanques que mimetizam as condições de
sobrevivência desses animais, como água fria (entre 4ºC e 8ºC) e nenhuma
luminosidade.
• Mergulho
no laboratório
Concluído
o trabalho de campo, Garritano pôde se concentrar em fazer análises no
laboratório, para entender toda a dinâmica que garante a sobrevivência dessas
esponjas-do-mar.
Após
uma série de testes genéticos e outros tipos de exames, o pesquisador descobriu
um verdadeiro sistema, que envolve quatro personagens — cada um com uma função
específica para garantir a sobrevivência dos demais.
A
primeira delas é a própria esponja Aphrocallistes beatrix, cujo metabolismo
gera a produção de amônia.
"Essa
esponja pode nos ajudar a entender como a relação entre animais e
micro-organismos, como os humanos com a flora intestinal ou as algas que dão
cor aos corais, se estabelece e evolui", diz o pesquisador.
"Assim
como os seres humanos produzem ureia, que é liberada na urina, a esponja produz
amônia. Essa substância é como se fosse o 'xixi' da esponja."
Essa
amônia, por sua vez, é utilizada como fonte de energia pela arquea
Nitrosoabyssus spongiisocia, que é responsável por fazer a tal fixação de
carbono.
"Organismos
como essa arquea são a base da cadeia alimentar no mar profundo e permitem que
corais e outros seres que habitam essas zonas do planeta prosperem",
destaca Garritano.
A
arquea Nitrosoabyssus spongiisocia ainda tem outra habilidade especial que
chamou a atenção dos especialistas: é capaz de produzir a vitamina B12.
"Animais
não são capazes de sintetizar por conta própria a vitamina B12. E produzi-la é
algo que custa muita energia", diz o pesquisador.
"Então,
não é comum que um organismo fabrique essa vitamina e simplesmente o libere no
ambiente, até porque se trata de uma molécula relativamente grande."
É
aí que entra em cena o terceiro personagem dessa história: o vírus
Nitrosopumivirus cobalaminus.
Ele
infecta especificamente as arqueas e, com isso, provoca a liberação da vitamina
B12 — que beneficia a esponja-do-mar e uma bactéria chamada Zeuxoniibacter
abyssi (a quarta e última personagem dessa trama).
"Ainda
não está claro se a esponja consegue 'comer' a arquea ou se toda a vitamina B12
que a esponja obtém vem por conta do vírus romper a membrana da célula da
arquea", detalha o especialista.
"Mas
o que temos aqui é um sistema relativamente simples, em que todos os envolvidos
interagem de alguma forma uns com os outros."
• Novo
vírus, novo nome
Quando
os cientistas descobrem algo diferente, que ainda não havia sido observado, na
maioria das vezes, eles têm a chance de nomear aquilo.
E
foi isso o que aconteceu com Garritano: ele deu nome à bactéria, à arquea e ao
vírus encontrados nas profundezas da Bacia de Campos.
Com
o vírus em particular, a oportunidade foi ainda mais rara. "Como
tratava-se de algo muito divergente, pude também descrever a ordem e a família
dele, além do gênero e da espécie", informa o especialista.
Retornemos
mais uma vez às aulas de biologia da escola: todos os seres são classificados
num sistema de reino, filo/divisão, classe, ordem, família, gênero e espécie.
Os
seres humanos, por exemplo, são do reino Animalia, do filo Chordata, da classe
Mammalia, da ordem Primata, da família Hominidae, do gênero Homo e da espécie
Homo sapiens.
As
análises genéticas feitas nos laboratórios da Universidade New South Wales,
cuja pesquisa foi feita em parceria com a Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), mostraram que o vírus observado era muito diferente do que
havia sido encontrado até então.
Com
isso, Garritano pode batizá-lo como Nitrosopumivirus cobalaminus, da ordem
Iaravirales, da família Anhangaviridae — esses dois últimos fazem uma
referência direta à Iara e Anhangá, respectivamente, figuras importantes da
mitologia indígena brasileira.
"Sou
do Rio de Janeiro, e as amostras com as quais eu trabalho foram coletadas na
Bacia de Campos. O povo originário mais predominante dessa região era os
tupinambás, que tinham uma mitologia própria", justifica o pesquisador.
"Acho
importante valorizarmos a cultura dos nossos povos originários. Na ciência,
muitos nomes têm origem grega, e até para DNA e RNA usamos siglas em
inglês", prossegue.
"A
ciência brasileira precisa de mais valorização, e essa foi uma maneira, ainda
que pequena, que encontrei de começar a contribuir para isso."
• Nem
todo vírus é vilão
Temos
a tendência de encarar os agentes microscópicos, em particular os vírus, como
algo que é sempre ruim ou prejudicial — ainda mais depois de uma pandemia, como
a de covid-19.
Mas
o microbiologista Torsten Thomas, orientador de Garritano na Universidade New
South Wales, lembra que os vírus são essenciais para o equilíbrio dos
ecossistemas.
"Eles
garantem que uma determinada população não se torne dominante", resume
ele.
"No
mundo microscópico, se uma bactéria prospera demais, um vírus pode começar a
afetá-la, para que a população desse micro-organismo volte aos níveis
normais", detalha o especialista.
"Nesse
sentido, os vírus são um estímulo constante à diversidade."
Thomas
destaca que os vírus fazem parte de um sistema dinâmico que, graças à ação
deles, ganha estabilidade.
"Sem
os vírus como predadores, os ecossistemas não apenas perderiam estabilidade,
como possivelmente entrariam em colapso."
Não
à toa, alguns desses agentes microscópicos são testados como possíveis soluções
para algumas das principais ameaças atuais, como é o caso da resistência
antimicrobiana (em que as bactérias estão se tornando mais fortes e os
antibióticos disponíveis não funcionam mais como anteriormente).
• Repercussões
e próximos passos
Com
a descoberta publicada, Garritano pretende agora continuar a entender como
esses processos de fixação de carbono ocorrem em lugares onde não há luz.
"Realmente
gosto de estudar essa interação entre Biologia e Geoquímica", admite
Garritano.
Já
Thomas entende que pesquisas como essa têm muito potencial e podem gerar
desdobramentos no futuro — inclusive na luta contra o aquecimento global.
Vale
lembrar aqui que o dióxido de carbono (CO₂) é um dos gases que, por causa da
queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento, se acumula em excesso na
atmosfera e gera o aumento da temperatura média do planeta.
"Se
encontrarmos novas maneiras de fixar o carbono em águas profundas, e fazer
medidas de quanto carbono é fixado nesses lugares, podemos influenciar os
modelos de mudança climática", projeta Thomas.
"O
fundo do mar certamente tem muito potencial em 'segurar' o carbono que não
deveríamos estar lançando na atmosfera", avalia o cientista.
"Existem,
claro, outras possíveis abordagens para lidar com o carbono, mas certamente
entender esses processos e sistemas de simbiose que ocorrem no mar profundo
pode mostrar caminhos para lidar com esse problema."
As
esponjas, aliás, são um exemplo de resiliência e adaptação.
"Nos
600 milhões de anos, elas experimentaram as piores condições que se pode
imaginar, como falta de oxigênio, muito calor, muito frio… E elas encontraram
meios de sobreviver", explica Thomas.
"É
claro que devemos protegê-las e não submetê-las a limites, mas, em termos de
adaptação, as esponjas são provavelmente o organismo marinho que conseguirá
lidar melhor com qualquer mudança futura no ambiente."
"Esse,
aliás, é um motivo de gostarmos tanto de estudá-las. As esponjas ainda estarão
aqui nos próximos 150 anos, algo que infelizmente não podemos ter tanta certeza
sobre outros organismos", conclui Thomas.
Fonte:
BBC News Brasil
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