A corrida
para fazer 'cópia' digital de país que pode sumir com mudanças climáticas
Tuvalu
é uma pequena nação da Oceania, formada principalmente por nove ilhas de coral.
Atualmente,
o país enfrenta a possibilidade de não ser mais habitável no futuro. O aumento
do nível dos mares, causado pelas mudanças climáticas, está engolindo a sua
costa.
O
que fazer para combater esta ameaça existencial? Construir muralhas junto ao
mar? Tentar recuperar terreno do oceano? Mudar toda a população de lugar?
Todas
estas soluções têm sido analisadas por outras pequenas nações insulares que
enfrentam problemas parecidos – e pelos próprios tuvaluanos. Mas Tuvalu está um
passo à frente dos demais na sua tentativa de preservar sua terra e suas
tradições nacionais.
Frente
à possibilidade de que sua realidade física seja tragada pelo oceano, o governo
local está construindo uma cópia digital do país – um backup de tudo, desde as
residências até as suas praias e árvores.
A
esperança é que esta réplica virtual preserve para as gerações futuras a beleza
e a cultura de Tuvalu – além dos direitos legais dos seus 11 mil cidadãos.
A
iniciativa foi anunciada em 2022, pelo ministro das Relações Exteriores de
Tuvalu, Simon Kofe. Ele discursou por vídeo para a COP27, realizada em Sharm
El-Sheikh, no Egito.
A
iniciativa faz parte do projeto governamental chamado Future Now ("Futuro
Agora", ou "Te Ataeao Nei", em tuvaluano). O programa é dedicado
à diplomacia internacional e à adaptação pragmática do país às mudanças
climáticas.
O
vídeo parece mais uma continuação da série Matrix do que um discurso oficial do
governo. Nele, Kofe aparece de pé em uma praia, com areia branca e palmeiras
agitadas pelo vento.
Mas,
à medida que a câmera se afasta para revelar a paisagem, as imagens começam a
falhar. Pedras e areia se movem de forma não natural e as aves marinhas voam
sobre o fundo escuro do abismo.
Aquela
praia não faz parte da nação verdadeira. Ela é o início do irmão gêmeo de
Tuvalu no mundo digital – a reconstrução virtual de uma pequena ilha chamada Te
Afualiku. Com sua baixa altitude, ela pode ser a primeira vítima fatal das
mudanças climáticas em Tuvalu.
"Nossa
terra, nosso oceano e nossa cultura são os bens mais preciosos do nosso
povo", declarou Kofe no vídeo. "E, para mantê-los em segurança,
independente do que acontecer no mundo físico, nós iremos movê-los para a
nuvem."
Além
de criar uma cópia virtual das ilhas, o projeto Nação Digital buscará armazenar
o patrimônio cultural do país.
Cidadãos
foram convidados a enviar seus pertences e recordações mais preciosos para
digitalização – objetos com valor sentimental, histórias dos seus avós e
festivais de dança, por exemplo. Com isso, será possível criar um arquivo
"destinado a preservar a própria alma de Tuvalu", segundo uma
atualização do projeto apresentada por Kofe, em 2023.
Mas
o ministro também deixou claro que existe um forte elemento prático no projeto.
Ameaçadas pela perda do seu território físico, as pequenas nações insulares
estão enfrentando, de forma muito concreta, a questão de como preservar a sua
soberania.
A
atual legislação internacional é inadequada para países que enfrentam perda de
território ou de condições de habitabilidade, devido às mudanças climáticas.
Ela exige que uma nação soberana tenha um território claramente definido e uma
população permanente.
Mas
estas duas características deixaram de ser uma certeza para o futuro de Tuvalu.
Por
isso, além de garantir as fronteiras da nação no metaverso, o governo tuvaluano
tenta criar passaportes digitais, armazenados em blockchain, para permitir que
o governo continue a funcionar. Estes passaportes incluem de tudo, desde a
realização de eleições e plebiscitos até o registro de nascimentos, mortes e
casamentos.
Em
última análise, Tuvalu espera que o projeto possa oferecer um novo modelo de
Estado, mais adaptado às necessidades e capacidades de um mundo moderno, em
aquecimento e com presença online cada vez maior.
Tuvalu
já consagrou uma nova definição de Estado na sua Constituição. Esta definição é
cada vez mais reconhecida por outros países, principalmente pelos que se
encontram em situação similar.
Resta
saber quantos países que enfrentam ameaças existenciais menores irão demonstrar
a mesma solidariedade.
• Corrida contra o tempo
Mas
nem todos estão convencidos pela proposta tuvaluana. Alguns defendem que ela
representa o mesmo uso intenso de recursos que vem causando as mudanças
climáticas.
Até
mesmo dentro do próprio governo de Tuvalu, houve certo ceticismo sobre o
projeto Nação Digital.
Mas,
fundamentalmente, a proposta reconhece que a mudança está chegando às ilhas e
que muitos dos seus moradores irão inevitavelmente se mudar do país, à medida
que as dificuldades começarem a aumentar e as oportunidades se reduzirem.
Uma
avaliação recente de cientistas da Nasa indica que grande parte do território
de Tuvalu, incluindo sua infraestrutura básica, ficará abaixo do nível da maré
alta até 2050.
Em
todos os cenários climáticos, o país irá sofrer mais de 100 dias de cheias
todos os anos até o final do século. E existem outros impactos a serem
enfrentados, como a intrusão de água salgada, as ondas de calor e a
intensificação dos ciclones.
Os
cientistas demonstraram que o aumento global das temperaturas em mais de 1,5°C
é uma ameaça importante para as pequenas nações insulares. E, entre fevereiro
de 2023 e janeiro de 2024, pela primeira vez, o aumento da temperatura global
ultrapassou o nível de 1,5 °C por um ano inteiro.
Como
os países desenvolvidos ainda não começaram a reduzir suas emissões com
velocidade suficiente para ajustar a trajetória de aumento das temperaturas, o
irmão gêmeo digital das ilhas será uma forma para que os futuros emigrantes de
Tuvalu preservem sua conexão entre si e com suas terras e o patrimônio perdido.
Sem
dúvida, esta medida representa o abandono do mantra "não estamos
afundando, estamos lutando", que foi a base da retórica das nações da
Oceania até aqui.
A
possibilidade de relocação em massa de Tuvalu para a Austrália (a cerca de 5
mil km de distância) passou recentemente a ser realidade, após o tratado
assinado entre as duas nações em 2023.
O
acordo permite a migração anual de 280 cidadãos tuvaluanos para a Austrália.
Eles receberão novos vistos que irão permitir que eles morem, trabalhem e
estudem no país. Haverá também formas de requerer a cidadania australiana.
Mas
nem todos concordam que já tenha chegado a hora de desistir das ilhas.
"O
conceito da criação de uma nação digital tuvaluana no metaverso indica que
Tuvalu irá desaparecer com o aumento do nível do mar e que devemos fazer uma
cópia digital do país", declarou o ex-primeiro-ministro de Tuvalu e agora
líder da oposição Enele Sopoaga, em pronunciamento à imprensa em relação às
propostas.
Para
ele, "não existem fundamentos para esta proposição nas leis internacionais
e não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que Tuvalu irá desaparecer,
mesmo com o aumento do nível do oceano".
Em
setembro, discursando no plenário da Assembleia Geral da ONU sobre as ameaças
existenciais causadas pelo aumento do nível do mar, a ativista climática
tuvaluana Grace Malie declarou aos delegados que seu país e outros Estados
insulares "não serão engolidos pelo mar em silêncio". Eles
"continuarão a lutar" pela sua terra, cultura e futuro.
"Não
são apenas as nossas casas que estão em risco", disse ela, sobre os
tuvaluanos. "É a nossa dignidade, nossa cultura, nosso patrimônio."
"Não
é algo que possamos colocar nas malas e levar embora. Fizemos o mínimo para
causar a crise, mas estamos pagando o preço mais alto."
• Digitalizar sem desistir
do físico
Mesmo
com alguns tuvaluanos considerando a possibilidade de emigrar para a Austrália,
Tuvalu dobrou a aposta, pressionando os australianos a reduzir a extração e
exportação de combustíveis fósseis do país.
Já
outros indicam que a construção do irmão gêmeo digital de Tuvalu não significa
desistir dos esforços de salvar as suas ilhas. Eles defendem que o trabalho de
proteção física do arquipélago pode caminhar lado a lado com a preservação da
sua memória no metaverso.
"O
programa Nação Digital não significa que aceitamos a perda do país como
entidade física", afirma o pesquisador tuvaluano Taukiei Kitara, da
Universidade Griffith, na Austrália. Ele é um dos autores de um estudo recente
sobre a iniciativa Nação Digital.
Kitara
destaca que este é apenas mais um projeto entre muitos, na luta de Tuvalu
contra as mudanças climáticas. E tem a vantagem de ser conduzido pelos próprios
tuvaluanos.
O
governo local também está gastando milhões de dólares, por exemplo, na
recuperação de terras, com um projeto de adaptação do litoral do país.
Nos
últimos dois anos, faixas de terra livres de enchentes foram acrescentadas às
ilhas de Funafuti e Fogafale. Elas oferecem espaço para moradias,
infraestrutura e outros serviços essenciais.
Já
nas ilhas externas de Nanumaga e Nanumea, novas barreiras de proteção evitam
que a maré atinja as casas, escolas, hospitais, áreas agrícolas e o patrimônio
cultural da região.
"O
planejamento para diversos cenários – o melhor caso, o pior e os intermediários
– é algo sensível, quando o assunto é a gestão de riscos", explica Kitara,
"e esta é a tática adotada pelo atual governo de Tuvalu, bem como pelos
diversos governos anteriores."
Deixando
de lado se o governo deve ou não se preparar para um futuro sem as ilhas,
algumas pessoas sugerem que o plano Nação Digital é simplesmente impraticável,
em um país que permanece comparativamente desconectado do mundo digital.
Eles
defendem que o projeto é pouco mais que um exercício de relações públicas,
projetado para chamar a atenção internacional e convencer as nações mais ricas
a reduzir suas emissões – o que é fundamental para a própria sobrevivência das
ilhas físicas.
Mas
os esforços desenvolvidos pelo governo tuvaluano para mapear as ilhas e ampliar
a conectividade do país indicam que este projeto é mais do que uma simples
forma de pressão diplomática.
No
primeiro ano após o anúncio na COP27, Tuvalu completou a varredura 3D de todas
as suas 124 ilhas. O país usou a tecnologia de detecção e telemetria por luz
(Lidar, na sigla em inglês), uma técnica de varredura aérea a laser.
O
país, agora, está aumentando sua conectividade digital, com a instalação de um
cabo submarino de telecomunicações. Ele irá ajudar a fornecer a largura de
banda necessária para colocar o projeto em ação.
A
organização não governamental global Place apoia o mapeamento de livre acesso e
outros dados geográficos. E, entre março e abril de 2024, ela começou a mapear
as características físicas da capital de Tuvalu, Funafuti.
A
ONG usa drones e câmeras de 360 graus para registrar imagens aéreas e das ruas
locais. Estes dados brutos podem ser empregados para criar imagens no estilo do
Google Earth ou do Street View, mas com superalta resolução.
Esta
precisão é necessária para poder capturar os detalhes das ilhas mais estreitas,
que têm apenas dezenas de metros de largura em alguns pontos. A precisão das
imagens de satélites não é suficiente para atingir este nível de detalhamento.
"Nós
cobrimos toda a ilha de carro, depois substituímos os veículos por bicicletas
para as ciclovias e, depois, por câmeras minúsculas para todos os caminhos a
pé", explica Frank Pichel, supervisor de operações de campo da Place.
"Acho que cobrimos cerca de 80 ou 90 km, realmente o máximo que
conseguimos."
Longe
de ser um exercício de relações públicas, Pichel destaca que a criação de um
"irmão gêmeo digital" apresenta diversas aplicações no mundo real.
Ela pode ajudar a nação a se adaptar e combater de forma prática as mudanças
climáticas.
Registrando
o tamanho e o ângulo dos telhados, por exemplo, o projeto pode modelar a
capacidade de instalação de painéis solares no futuro. E a varredura dos
tanques de armazenamento de água pode ajudar a estimar a disponibilidade de
água potável na ilha.
Pichel
ressalta que esta técnica não é exclusiva de Tuvalu, mas a dimensão cultural e
o senso de urgência criado pelas mudanças climáticas aumentam o significado da
tarefa.
"Se
você observar a economia dos países desenvolvidos, eles estão procurando seguir
este formato, mesmo sem chamá-lo de gêmeo digital", explica ele. E Pichel
oferece um exemplo dessas iniciativas.
"Londres
quer um 'gêmeo digital' do seu cabeamento subterrâneo, para ter certeza de que
eles não irão atingir fios ou antigas linhas de esgoto. Ou seja, é algo que já
existe na gestão de dados espaciais há muito tempo e, talvez, cresça um pouco
mais com um novo rótulo."
A
próxima etapa do trabalho em Tuvalu seria mapear o restante das ilhas, para
depois preencher as lacunas restantes, segundo Pichel.
As
ilhas são locais remotos – ela ficam em uma cadeia com cerca de 676 km de
extensão. Por isso, o mapeamento será um trabalho difícil e demorado.
Mas
a equipe da Place espera voltar para obter mais dados a cada dois anos, já que
as ilhas estão em fluxo constante, devido aos impactos das mudanças climáticas.
À
medida que aumenta o nível do mar, a construção da sua réplica digital pode
ajudar Tuvalu a preservar mais do que o imaginado.
O
futuro físico das ilhas pode ser incerto, mas sua jornada digital está apenas
começando.
Fonte:
BBC Future
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