Os relatos
de quem ficou obcecado por pornografia: 'Não conseguia parar de assistir'
Shaun
Flores tinha 11 anos quando começou a assistir pornografia, após ser
apresentado a esse tipo de conteúdo por um amigo.
"Fiquei
fisgado quase imediatamente", diz ele, hoje com 30 anos. "Foi tipo
'uau, o que é isso que as pessoas estão fazendo e parecem estar se divertindo
muito'."
A
curiosidade de Shaun rapidamente se transformou em algo que ele achou difícil
de conter.
Ele
descreve como é assistir pornografia de manhã, à tarde e à noite, e diz que se
tornou “tão comum quanto escovar os dentes”.
"Percebi
que havia um problema quando não tinha energia para fazer nada", diz ele,
que compartilhou sua história em uma nova série da BBC, chamada Sex After,
disponível em inglês.
"Eu
não queria jogar futebol, só queria estar dentro de casa", diz. "Mas
havia a culpa e a vergonha que vieram com isso, e não importa o que eu tentasse
fazer, não conseguia parar de assistir. Foi quando eu soube que havia algo
acontecendo."
Embora
nem todo mundo que assiste pornografia desenvolva um relacionamento prejudicial
com ela, Shaun não está sozinho em seus hábitos.
No
Reino Unido, onde ele vive, 29% dos adultos acessaram pornografia online em
maio de 2024, segundo o relatório Online Nation 2024 do Ofcom, o órgão
regulador dos serviços de comunicação.
Além
disso, uma nova pesquisa do centro de tratamento de dependência UKAT sugere que
milhões de britânicos veem pornografia regularmente - com 1,8 milhão assistindo
diariamente, alguns várias vezes ao dia.
De
acordo com instituições que oferecem tratamento, mais pessoas estão procurando
ajuda para o uso problemático de pornografia.
Paula
Hall, psicoterapeuta sexual e de relacionamento que atua em Londres, é
especializada em ajudar pessoas afetadas pelo vício em sexo e pornografia.
"O
número de clientes que procuram ajuda com problemas de pornografia no The
Laurel Center duplicou nos últimos anos, assim como os nossos pedidos de
formação adicional por parte dos profissionais de saúde", disse ela à BBC.
Hall
explica que eles também têm visto um número crescente de pessoas mais jovens
procurando ajuda.
"Há
dez anos, a maioria dos nossos clientes eram homens casados, na faixa dos 40 e
50 anos, que procuravam ajuda porque a pessoa parceira descobriu que eles
recorrem a profissionais do sexo", diz ela.
"Mas
cada vez mais, nossos clientes estão na faixa dos 20 e 30 anos, muitos dos
quais são solteiros, e reconhecem o impacto crescente do uso de pornografia em
suas vidas e em sua capacidade de obter ou manter um relacionamento".
No
Brasil, um estudo conduzido pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo apontou que, em média, os brasileiros
começam a consumir pornografia aos 12 anos, segundo reportagem do portal UOL.
A
pesquisa, que teve a participação de 3.650 brasileiros com idade média de 45
anos, apontou ainda que os entrevistados viram pornografia, em média, de 2 a 3
vezes por semana nos últimos 12 meses.
• 'Depois que você começa,
é muito difícil parar'
Lee
Fernandes, terapeuta-chefe do Grupo UKAT, também diz que o número de pessoas
que tratam por uso problemático de pornografia aumentou
"significativamente" nos últimos anos.
Eles
agora recebem vários pedidos de ajuda de pessoas que lutam contra o uso de
pornografia todos os dias. Antes de 2020, eram uma ou duas consultas por
semana.
Fernandes
explica que os avanços na tecnologia e a consequente facilidade de acesso à
pornografia estão facilitando o acesso de pessoas de todas as idades a conteúdo
sexual online. Ele acredita que isso está contribuindo para o aumento de
pessoas que procuram ajuda.
"Não
é muito difícil para alguém pegar o telefone, entrar em um site e ver
pornografia, seja com 12 ou 60 anos", diz ele. "É bastante
preocupante."
Segundo
Fernandes, outros motivos para as pessoas assistirem pornografia online incluem
curiosidade, tédio, alívio do estresse e falta de satisfação sexual.
Embora
o uso de pornografia possa começar por esses motivos, Fernandes o descreve como
"muito viciante".
"Ele
aciona o sistema de recompensa da dopamina”, explica ele. "Depois que você
começa, é muito difícil parar."
• 'A pornografia não está
mais confinada a sites adultos dedicados ao tema'
No
entanto, embora o uso problemático de pornografia tenha características de um
vício, ele não é reconhecido como tal em termos de diagnóstico. Em vez disso, é
categorizado como uso prejudicial de pornografia online ou comportamento
compulsivo.
Para
as pessoas que desenvolvem essa relação com a pornografia, os efeitos podem ser
negativos.
E
para os mais jovens, que crescem com conteúdo gratuito e forte ao seu alcance,
o impacto da grande exposição precoce pode ser de grande alcance.
Uma
pesquisa recente do Comissário das Crianças para a Inglaterra descobriu que, em
2023, 10% das crianças tinham visto pornografia aos nove anos de idade e 27%
tinham visto pornografia aos 11 anos.
"Os
jovens nos dizem a nós que a sua exposição à pornografia é generalizada e
normalizada – sendo a idade média em que as crianças veem pornografia pela
primeira vez aos 13 anos", disse Rachel de Souza, atual Comissária da
Criança, à BBC.
"A
pornografia já não está confinada a sites dedicados a adultos – as crianças
dizem-me que podem ver conteúdo violento, retratando atos sexuais coercivos,
degradantes ou indutores de dor nas redes sociais.
"As
implicações de ver este tipo de material são vastas – a minha pesquisa
descobriu que os usuários frequentes de pornografia têm maior probabilidade de
se envolverem em atos sexuais fisicamente agressivos".
Souza
acrescenta que é “vital” que o relacionamento de alta qualidade e a educação
sexual tenham paridade de importância com outras disciplinas para ajudar os
jovens a compreender que a pornografia não é realista.
Silva
Neves, psicoterapeuta especializado no tratamento de comportamentos sexuais
compulsivos, concorda que ver pornografia em idade jovem pode ter um impacto
negativo.
No
entanto, sublinha que a falta de educação sexual de qualidade para os jovens
leva-os a procurar informação noutros lugares.
"Eles
então verão vulvas sem pelos e pênis de 20cm", diz. "Eles verão
relações sexuais duras que duram 30 minutos e engasgos, e todas essas coisas, e
vão pensar, ‘ok, então isso é sexo’. Mas é muito mais fácil apontar o dedo para
a pornografia e dizer que a pornografia é o problema."
Courtney
Daniella Boateng, de 26 anos, começou a assistir pornografia quando estava na
escola primária.
Para
ela, isso foi motivado, em parte, pela falta de educação sexual adequada à
disposição dela.
Ela
explica que suas aulas na escola eram focadas na biologia da reprodução, e não
na experiência do sexo.
Diz,
ainda, que o tabu que parecia existir em torno do tema tornava ainda mais
fascinante tentar entender o assunto.
“Acabei
procurando vídeos de sexo”, explica ela. "Era uma porta muito larga que
acabava de se abrir para um mundo totalmente novo."
• Expectativas irreais
Courtney
começou assistindo esporadicamente, às vezes nos finais de semana ou
ocasionalmente antes da escola. Mas depois, ela diz, isso passou a acontecer
quase todos os dias.
"Foi
quando comecei a perceber que isso estava tendo um efeito negativo sobre mim,
por fazer com muita frequência."
Courtney
perdeu a virgindade quando tinha 18 anos – um momento que ela descreve como
"terrível".
"Nunca
pareceu que a vida real correspondesse ao hype de quando assistia pornografia
ou me masturbava", diz ela.
Courtney
finalmente percebeu que tinha uma dependência prejudicial em relação à
pornografia.
"Eu
sempre me pegava lutando para saber se realmente conseguiria parar e isso
literalmente me deixaria com uma sensação de impotência", disse ela.
Ela
parou de assistir pornografia aos 20 anos e decidiu se tornar celibatária.
Junto com o noivo, eles se comprometeram com a abstinência até o casamento.
Para
Shaun, seu hábito excessivo de consumo de pornografia o levou a ficar “exausto”
de se masturbar.
“Acho
que o papel que [a pornografia] teve que desempenhar foi distorcer meu senso de
identidade e me causar uma dismorfia em relação ao sexo, ou ao meu corpo, ou ao
meu pênis”, diz ele.
No
entanto, os especialistas afirmam que é importante reconhecer que, para muitas
pessoas, é possível ter uma relação saudável com a pornografia.
Para
alguns, pode até haver benefícios.
Por
exemplo, uma pesquisa conduzida pelo British Board of Film Classification
(BBFC) sugere que a pornografia proporciona uma forma de os jovens que não têm
certeza da sua sexualidade se compreenderem melhor.
"Devemos
lembrar que uma relação pouco saudável com a pornografia só ocorre quando o
indivíduo perde o poder de escolha, não consegue viver normalmente no dia a dia
sem assistir pornografia", conclui Fernandes.
"Pedimos
a qualquer pessoa que pense que se enquadra nesta categoria que procure ajuda
profissional."
Courtney
diz que a situação vivida por ela deixou muitos desafios.
"Tive
que aprender o que era sexo realista. Tive que aprender a amar meu corpo e não
compará-lo com o corpo de outras mulheres. Tive que aprender a amar e a não
objetificar as pessoas, homens e mulheres. E não apenas vê-los como objetos
sexuais, mas realmente vê-los como pessoas. Se eu pudesse retroceder o relógio,
não teria iniciado."
Para
Shaun, deixar de consumir pornografia foi uma das "melhores decisões"
que já tomou.
"O
vício me fez perder conexões e agora estou tentando me conectar com pessoas que
amo e com quem realmente me importo", diz ele.
Fonte:
BBC News Brasil
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