quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Como a polícia provoca – e às vezes liquida – o funk

Como a imprensa reagiu aos bailes funk entre 2001 e 2021? E o que isso tem a nos mostrar sobre a repressão policial ao movimento nesse mesmo período? Essas são as perguntas básicas que norteiam o relatório “Pancadão: Uma História de Repressão aos Bailes Funk de Rua na Capital Paulista”.

O documento apresentado esta semana analisa 693 matérias, reportagens e artigos de opinião ao longo desses 20 anos para entender como bailes funk são retratados pela mídia e como essa dinâmica influencia as ações públicas para incentivar ou conter os movimentos.

O lançamento da pesquisa acontece em data simbólica, marcando os cinco anos do massacre em Paraisópolis. O caso, que segue sem julgamento, foi o ponto alto não apenas da cobertura jornalística sobre o fenômeno dos bailes funk, mas também de uma escalada da atuação policial repressiva sobre esse tipo de evento. Uma escalada que, a pesquisa aponta, começa no início de 2010 e vai se intensificando, por ação ou omissão pública, até culminar na tragédia de 2019.

A base do relatório foi a cobertura da Folha de S.Paulo, e para isso foram utilizadas palavras-chave que categorizaram os textos analisados. Também integram os dados da pesquisa reportagens publicadas pela Ponte e por outros veículos, como o jornal A Tribuna, de Santos, que possuía informações não relatadas pela Folha sobre chacinas de funkeiros na Baixada Santista.

O período foi escolhido pelos pesquisadores para que fosse possível acompanhar “a construção dos debates públicos que criaram o ambiente político e social para o surgimento da Operação Pancadão”, com a análise se iniciando antes da problematização dos bailes populares de rua e estendendo-se após o Massacre de Paraisópolis para analisar o impacto daquela ação policial no debate público.

O primeiro achado da pesquisa é que os bailes funk não são notícia. A análise aponta que apenas 30% das matérias jornalísticas que citavam bailes funk falavam, de fato, deles como um fenômeno cultural. A maior parte do material usava a expressão no que os pesquisadores definiram como “recurso discursivo”: para expressar juízo de valor, como metáfora ou como alegoria.

Há, também, uma parcela considerável de menções em que o “baile funk” surge como o contexto de algo que aconteceu ou um exemplo de possibilidade de atuação do poder público. Foi assim que a cobertura jornalística se manteve durante parte do período analisado.

                        A experiência dos ‘permitidões’

O funk nem sempre foi tratado como um problema, conta o relatório, e o poder público já buscou soluções conciliadoras entre os organizadores de bailes e a população. Um exemplo aconteceu na Cidade Tiradentes, extremo da zona leste de São Paulo, entre 2008 e 2010. Por intermédio da subprefeitura, foram criados os “permitidões”, bailes organizados pelo poder público que, em vez de reprimir uma atividade que já era praticada, a classificou como medida de cultura e lazer na região.

Ainda que com uma postura de domesticação de regulação moral do movimento, a subprefeitura buscou respeitar os realizadores como artistas e os eventos como programações culturais e de lazer”, explica o relatório. Há, no entanto, um adendo importante ao se analisar a solução encontrada para os bailes funk da Cidade Tiradentes — que se mostraria temporária.

Se havia reclamações, é de se supor que a polícia estava sendo acionada e que, portanto, pelo menos desde 2008 essa já era uma demanda para as forças de segurança”, indicam os pesquisadores. Ao mesmo tempo em que, ao assumir uma política, a subprefeitura indicou que não competia à Polícia Militar lidar com os bailes funk, ficou claro também o reconhecimento social da corporação como um órgão a ser acionado para resolver a questão.

Associados a bagunça, à desordem e ao crime, os bailes funk enfrentavam resistência social e moral, e foi ancorada nela que outro flanco de atuação estatal se abriu: o da repressão. É em 2012 que a polícia militar passa a “se dedicar com estratégia e diretrizes próprias”, os pesquisadores analisam, na contenção dos “pancadões” — termo que passaria a ser utilizado pejorativamente pelo poder público e pela imprensa. Esse mesmo termo batizaria a operação que deixou nove jovens mortos em Paraisópolis.

Com base na lei 15.777/2013, popularmente conhecida como “Lei dos Pancadões”, criou-se espaço para que órgãos municipais e a Polícia Militar interviessem em “perturbações do sossego” causadas por poluição sonora, uma “política proibicionista que se aproximava discursivamente da neutralidade técnica, se distanciando de acusações de criminalização racista”, anotam os pesquisadores. A cobertura jornalística, registram os autores da pesquisa, nunca se debruçou de fato sobre o impacto dos bailes funk na perturbação do sossego. E a lei passaria a ser utilizada para permitir deslizes operacionais que colocaram os eventos de funk sob a mira da polícia.

                        Do proibicionismo à criminalização

A política proibicionista em relação aos bailes acontece na esteira da atuação voluntária de batalhões da Polícia Militar e é impulsionada pela chegada de policiais aos cargos formais da política. Um dos co-autores da lei dos pancadões foi o coronel reformado da PM e então vereador pelo PSD, Alvaro Camilo, conhecido como Coronel Camilo, hoje subprefeito da Sé. Foi ele que, em 2015, já como deputado estadual, levou à Assembleia um projeto de lei dos pancadões para vigorar sobre todo o estado.

Em teoria, as leis proíbem que veículos estacionados em locais públicos ou em locais privados com acesso público, como estacionamentos ou postos de gasolina, emitam som que cause distúrbio, independentemente do que quer que esteja tocando. Na prática, virou uma perseguição ao “paredão”, equipamento essencial ao baile funk em São Paulo.

Durante a gestão João Dória (PSDB) no governo de São Paulo, a repressão aos bailes funk ganha um caráter central, e a mesma Cidade Tiradentes que quase uma década antes havia se proposto a negociar uma solução que atendesse a todos se tornaria o berço da “Operação Sono Tranquilo” — que colocava policiais militares para reprimir bailes funk na região com “uso de táticas de intervenção direta para o controle de multidões”. Em quatro meses já se acumulavam denúncias de abusos cometidos pelas forças policiais contra a população, como o cerceamento do direito de ir e vir.

                        A ideologia de que ‘a desordem gera o crime’

Independente do nome da operação, o que a lei dos pancadões proíbe — e, portanto, permite a fiscalização — é o uso de aparelhos sonoros em veículos. Não há lei que criminalize, não havendo veículos nessas condições, os bailes funk. Para os pesquisadores, no entanto, chama a atenção “a ausência de parâmetros objetivos e explícitos” sobre o que seriam essas operações contra a perturbação do sossego. “A lei prevê apenas a fiscalização do volume sonoro emitido por carros estacionados. Como apreensões de drogas e incursões em comunidades se enquadram nessa prerrogativa? Como a Polícia Militar verifica o volume sonoro? A PM evita a formação de bailes ou os dispersa?”, questiona o relatório.

O trabalho possui toda uma base de contextualização que retraça, desde a vinda do funk do Rio de Janeiro e com recortes anuais, a estigmatização gerada pelo ritmo e as associações criadas entre os bailes funk e o crime organizado. “Assim como os bailes são um amálgama indefinido e inesgotável de problemas que vão sendo alinhavados por incômodos morais e por uma ideologia segundo a qual a desordem gera o crime, as ações de enfrentamento estão moral e politicamente legitimadas, ainda que elas façam uso de medidas legais e ilegais, previstas e não previstas”, os pesquisadores analisam.

A cobertura midiática só passa a criticar a violência policial nos bailes funk depois do massacre de 2019, quando, com a justificativa de estarem perseguindo suspeitos em uma moto que teriam ido para dentro do Baile da DZ7, um dos mais famosos de São Paulo, policiais militares encurralaram de cinco a oito mil pessoas que se divertiam em uma viela. Lá, morreram nove jovens, entre 14 e 23 anos.

A ação policial, o relatório indica, marcou uma transformação na cobertura da Folha, principal veículo analisado, que apontou em reportagens, opiniões e em espaços separados para manifestação dos leitores que a violência policial era o que tinha gerado as mortes — focando no que isso representava à carreira política do então governador e chefe da Polícia Militar, João Dória.

Apesar das reportagens não corroborarem a versão policial e exporem a forma como a política de repressão aos bailes funk funcionava, não houve uma análise sistemática do tema, restringindo-se àquela ação violenta em específico. “Cabe notar que as reflexões mais gerais sobre o território com foco na letalidade como política não foram a tônica da cobertura da Folha, que parece ter tentado voltar suas críticas mais ao governador do que à Polícia Militar, sugerindo que o interesse é maior pela ‘crise política’ do que pela letalidade em si”, afirma o relatório, em outro trecho.

A ponderação vem logo após o texto citar a Ponte como o veículo com a única reportagem que reconstruiu o cotidiano de violência a que a população de Paraisópolis estava sujeita desde o início de novembro de 2019, quando a Operação Saturação, com os mesmos moldes das atuais Operação Escudo e Operação Verão, foi instalada após a morte de um sargento da Polícia Militar. Violências policiais em bailes funk, com a morte de um adolescente e a cegueira de uma jovem, também foram registradas pela Ponte nos dias anteriores e posteriores ao massacre.

                        Repressão como única política

O relatório encerra sua análise na pandemia de Covid-19, quando os bailes funk são colocados, segundo os pesquisadores, como “objeto de regulamentação do ponto de vista sanitário”. O texto questiona a classificação: “Se pensarmos quantas vezes os bailes foram criticados por representar riscos à saúde de jovens, seja por uso excessivo de drogas e bebidas, seja por gravidez ou DSTs, mas nenhuma destas questões haviam ensejado qualquer abordagem do ponto de vista sanitário, como campanhas informativas, de redução de danos ou de distribuição de preservativos nos bailes, por exemplo”.

No período, os pesquisadores identificam que o pânico moral volta a circundar o tema dos bailes funk, ocupando novamente o papel de possível disseminador de coisas ruins — agora como um vetor de contaminação pelo vírus.

Após a repercussão negativa do caso em Paraisópolis, a Operação Pancadão da PM foi rebatizada como Operação Paz e Proteção. A Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) se recusou a oferecer informações aos pesquisadores sobre o número de operações no estado, mas dados obtidos nas notícias sobre a atuação em Paraisópolis mostram um cenário em que a repressão continua sendo a única política pública. Entre 2017 e 2022, afirma o relatório, teria havido um aumento de 1771% no número de Operações Pancadão/Paz e Proteção em Paraisópolis — o número saltou de 7, no primeiro ano, para 131 no último.

Entre 2020 e 2022, durante a pandemia, houve Operação Paz e Proteção nos entornos de Paraisópolis em quase todo fim de semana. Entre 2012 e 2024, 16 pessoas foram mortas em operações da PM contra bailes funk em São Paulo. Outras seis, todas menores de idade, perderam a visão.

Esses números já alarmantes, advertem os autores de ‘Pancadão: Uma História de Repressão aos Bailes Funk de rua na Capital Paulista’, “estão distantes de serem fiéis à realidade de violência decorrente das operações policiais, dado o grau de invisibilização dos casos para a imprensa de modo geral”.

 

Fonte: Por Paulo Victor Ribeiro, na Ponte Jornalismo

 

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