Como a polícia
provoca – e às vezes liquida – o funk
Como
a imprensa reagiu aos bailes funk entre 2001 e 2021? E o que isso tem a nos
mostrar sobre a repressão policial ao movimento nesse mesmo período? Essas são
as perguntas básicas que norteiam o relatório “Pancadão: Uma História de
Repressão aos Bailes Funk de Rua na Capital Paulista”.
O
documento apresentado esta semana analisa 693 matérias, reportagens e artigos
de opinião ao longo desses 20 anos para entender como bailes funk são
retratados pela mídia e como essa dinâmica influencia as ações públicas para
incentivar ou conter os movimentos.
O
lançamento da pesquisa acontece em data simbólica, marcando os cinco anos do
massacre em Paraisópolis. O caso, que segue sem julgamento, foi o ponto alto
não apenas da cobertura jornalística sobre o fenômeno dos bailes funk, mas
também de uma escalada da atuação policial repressiva sobre esse tipo de
evento. Uma escalada que, a pesquisa aponta, começa no início de 2010 e vai se
intensificando, por ação ou omissão pública, até culminar na tragédia de 2019.
A
base do relatório foi a cobertura da Folha de S.Paulo, e para isso foram
utilizadas palavras-chave que categorizaram os textos analisados. Também
integram os dados da pesquisa reportagens publicadas pela Ponte e por outros
veículos, como o jornal A Tribuna, de Santos, que possuía informações não
relatadas pela Folha sobre chacinas de funkeiros na Baixada Santista.
O
período foi escolhido pelos pesquisadores para que fosse possível acompanhar “a
construção dos debates públicos que criaram o ambiente político e social para o
surgimento da Operação Pancadão”, com a análise se iniciando antes da
problematização dos bailes populares de rua e estendendo-se após o Massacre de
Paraisópolis para analisar o impacto daquela ação policial no debate público.
O
primeiro achado da pesquisa é que os bailes funk não são notícia. A análise
aponta que apenas 30% das matérias jornalísticas que citavam bailes funk
falavam, de fato, deles como um fenômeno cultural. A maior parte do material
usava a expressão no que os pesquisadores definiram como “recurso discursivo”:
para expressar juízo de valor, como metáfora ou como alegoria.
Há,
também, uma parcela considerável de menções em que o “baile funk” surge como o
contexto de algo que aconteceu ou um exemplo de possibilidade de atuação do
poder público. Foi assim que a cobertura jornalística se manteve durante parte
do período analisado.
• A
experiência dos ‘permitidões’
O
funk nem sempre foi tratado como um problema, conta o relatório, e o poder
público já buscou soluções conciliadoras entre os organizadores de bailes e a
população. Um exemplo aconteceu na Cidade Tiradentes, extremo da zona leste de
São Paulo, entre 2008 e 2010. Por intermédio da subprefeitura, foram criados os
“permitidões”, bailes organizados pelo poder público que, em vez de reprimir
uma atividade que já era praticada, a classificou como medida de cultura e
lazer na região.
“Ainda que com uma postura de domesticação de regulação moral do
movimento, a subprefeitura buscou respeitar os realizadores como artistas e os
eventos como programações culturais e de lazer”, explica o relatório. Há, no
entanto, um adendo importante ao se analisar a solução encontrada para os
bailes funk da Cidade Tiradentes — que se mostraria temporária.
“Se havia reclamações, é de se supor que a polícia estava sendo
acionada e que, portanto, pelo menos desde 2008 essa já era uma demanda para as
forças de segurança”, indicam os pesquisadores. Ao mesmo tempo em que, ao
assumir uma política, a subprefeitura indicou que não competia à Polícia
Militar lidar com os bailes funk, ficou claro também o reconhecimento social da
corporação como um órgão a ser acionado para resolver a questão.
Associados
a bagunça, à desordem e ao crime, os bailes funk enfrentavam resistência social
e moral, e foi ancorada nela que outro flanco de atuação estatal se abriu: o da
repressão. É em 2012 que a polícia militar passa a “se dedicar com estratégia e
diretrizes próprias”, os pesquisadores analisam, na contenção dos “pancadões” —
termo que passaria a ser utilizado pejorativamente pelo poder público e pela
imprensa. Esse mesmo termo batizaria a operação que deixou nove jovens mortos
em Paraisópolis.
Com
base na lei 15.777/2013, popularmente conhecida como “Lei dos Pancadões”,
criou-se espaço para que órgãos municipais e a Polícia Militar interviessem em
“perturbações do sossego” causadas por poluição sonora, uma “política
proibicionista que se aproximava discursivamente da neutralidade técnica, se
distanciando de acusações de criminalização racista”, anotam os pesquisadores.
A cobertura jornalística, registram os autores da pesquisa, nunca se debruçou
de fato sobre o impacto dos bailes funk na perturbação do sossego. E a lei
passaria a ser utilizada para permitir deslizes operacionais que colocaram os
eventos de funk sob a mira da polícia.
• Do
proibicionismo à criminalização
A
política proibicionista em relação aos bailes acontece na esteira da atuação
voluntária de batalhões da Polícia Militar e é impulsionada pela chegada de
policiais aos cargos formais da política. Um dos co-autores da lei dos
pancadões foi o coronel reformado da PM e então vereador pelo PSD, Alvaro
Camilo, conhecido como Coronel Camilo, hoje subprefeito da Sé. Foi ele que, em
2015, já como deputado estadual, levou à Assembleia um projeto de lei dos
pancadões para vigorar sobre todo o estado.
Em
teoria, as leis proíbem que veículos estacionados em locais públicos ou em
locais privados com acesso público, como estacionamentos ou postos de gasolina,
emitam som que cause distúrbio, independentemente do que quer que esteja
tocando. Na prática, virou uma perseguição ao “paredão”, equipamento essencial
ao baile funk em São Paulo.
Durante
a gestão João Dória (PSDB) no governo de São Paulo, a repressão aos bailes funk
ganha um caráter central, e a mesma Cidade Tiradentes que quase uma década
antes havia se proposto a negociar uma solução que atendesse a todos se
tornaria o berço da “Operação Sono Tranquilo” — que colocava policiais
militares para reprimir bailes funk na região com “uso de táticas de
intervenção direta para o controle de multidões”. Em quatro meses já se
acumulavam denúncias de abusos cometidos pelas forças policiais contra a
população, como o cerceamento do direito de ir e vir.
• A
ideologia de que ‘a desordem gera o crime’
Independente
do nome da operação, o que a lei dos pancadões proíbe — e, portanto, permite a
fiscalização — é o uso de aparelhos sonoros em veículos. Não há lei que
criminalize, não havendo veículos nessas condições, os bailes funk. Para os
pesquisadores, no entanto, chama a atenção “a ausência de parâmetros objetivos
e explícitos” sobre o que seriam essas operações contra a perturbação do
sossego. “A lei prevê apenas a fiscalização do volume sonoro emitido por carros
estacionados. Como apreensões de drogas e incursões em comunidades se enquadram
nessa prerrogativa? Como a Polícia Militar verifica o volume sonoro? A PM evita
a formação de bailes ou os dispersa?”, questiona o relatório.
O
trabalho possui toda uma base de contextualização que retraça, desde a vinda do
funk do Rio de Janeiro e com recortes anuais, a estigmatização gerada pelo
ritmo e as associações criadas entre os bailes funk e o crime organizado.
“Assim como os bailes são um amálgama indefinido e inesgotável de problemas que
vão sendo alinhavados por incômodos morais e por uma ideologia segundo a qual a
desordem gera o crime, as ações de enfrentamento estão moral e politicamente
legitimadas, ainda que elas façam uso de medidas legais e ilegais, previstas e
não previstas”, os pesquisadores analisam.
A
cobertura midiática só passa a criticar a violência policial nos bailes funk
depois do massacre de 2019, quando, com a justificativa de estarem perseguindo
suspeitos em uma moto que teriam ido para dentro do Baile da DZ7, um dos mais
famosos de São Paulo, policiais militares encurralaram de cinco a oito mil
pessoas que se divertiam em uma viela. Lá, morreram nove jovens, entre 14 e 23
anos.
A
ação policial, o relatório indica, marcou uma transformação na cobertura da
Folha, principal veículo analisado, que apontou em reportagens, opiniões e em
espaços separados para manifestação dos leitores que a violência policial era o
que tinha gerado as mortes — focando no que isso representava à carreira
política do então governador e chefe da Polícia Militar, João Dória.
Apesar
das reportagens não corroborarem a versão policial e exporem a forma como a
política de repressão aos bailes funk funcionava, não houve uma análise
sistemática do tema, restringindo-se àquela ação violenta em específico. “Cabe
notar que as reflexões mais gerais sobre o território com foco na letalidade
como política não foram a tônica da cobertura da Folha, que parece ter tentado
voltar suas críticas mais ao governador do que à Polícia Militar, sugerindo que
o interesse é maior pela ‘crise política’ do que pela letalidade em si”, afirma
o relatório, em outro trecho.
A
ponderação vem logo após o texto citar a Ponte como o veículo com a única
reportagem que reconstruiu o cotidiano de violência a que a população de
Paraisópolis estava sujeita desde o início de novembro de 2019, quando a
Operação Saturação, com os mesmos moldes das atuais Operação Escudo e Operação
Verão, foi instalada após a morte de um sargento da Polícia Militar. Violências
policiais em bailes funk, com a morte de um adolescente e a cegueira de uma
jovem, também foram registradas pela Ponte nos dias anteriores e posteriores ao
massacre.
• Repressão
como única política
O
relatório encerra sua análise na pandemia de Covid-19, quando os bailes funk
são colocados, segundo os pesquisadores, como “objeto de regulamentação do
ponto de vista sanitário”. O texto questiona a classificação: “Se pensarmos
quantas vezes os bailes foram criticados por representar riscos à saúde de
jovens, seja por uso excessivo de drogas e bebidas, seja por gravidez ou DSTs,
mas nenhuma destas questões haviam ensejado qualquer abordagem do ponto de
vista sanitário, como campanhas informativas, de redução de danos ou de
distribuição de preservativos nos bailes, por exemplo”.
No
período, os pesquisadores identificam que o pânico moral volta a circundar o
tema dos bailes funk, ocupando novamente o papel de possível disseminador de
coisas ruins — agora como um vetor de contaminação pelo vírus.
Após
a repercussão negativa do caso em Paraisópolis, a Operação Pancadão da PM foi
rebatizada como Operação Paz e Proteção. A Polícia Militar do Estado de São
Paulo (PMESP) se recusou a oferecer informações aos pesquisadores sobre o
número de operações no estado, mas dados obtidos nas notícias sobre a atuação
em Paraisópolis mostram um cenário em que a repressão continua sendo a única
política pública. Entre 2017 e 2022, afirma o relatório, teria havido um
aumento de 1771% no número de Operações Pancadão/Paz e Proteção em Paraisópolis
— o número saltou de 7, no primeiro ano, para 131 no último.
Entre
2020 e 2022, durante a pandemia, houve Operação Paz e Proteção nos entornos de
Paraisópolis em quase todo fim de semana. Entre 2012 e 2024, 16 pessoas foram
mortas em operações da PM contra bailes funk em São Paulo. Outras seis, todas
menores de idade, perderam a visão.
Esses
números já alarmantes, advertem os autores de ‘Pancadão: Uma História de
Repressão aos Bailes Funk de rua na Capital Paulista’, “estão distantes de
serem fiéis à realidade de violência decorrente das operações policiais, dado o
grau de invisibilização dos casos para a imprensa de modo geral”.
Fonte:
Por Paulo Victor Ribeiro, na Ponte Jornalismo
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