Maria
Lucia Fattorelli: Governo tem recorde de arrecadação e aprofunda cortes de
gastos sociais
Você
já parou para analisar por que razão, no mesmo dia em que foi divulgado um
recorde histórico de arrecadação de tributos, o governo federal anunciou que
fará mais um corte de gastos de cerca de R$ 6 bilhões em 2024 e novos cortes em
2025 e 2026?
Qual
é a lógica de cortar gastos primários – que abrangem somente gastos em áreas
sociais e na estrutura do Estado – se o governo federal tem registrado recordes
de arrecadação tributária em todos os meses do ano, sendo que em outubro/2024
foi verificado o maior recorde desde 1995?
A
resposta está no funcionamento do Sistema da Dívida que opera no Brasil, onde
de fato está o rombo das contas públicas; rombo que tem aumentado ainda mais
ultimamente devido à elevação brutal da taxa básica de juros pelo Banco Central
– Selic –, que aumenta diretamente o custo com os juros da chamada dívida
pública. Não há dinheiro que chegue para cobrir tamanho rombo! O Sistema da
Dívida tem absorvido mais de 40% do orçamento federal, todos os anos, para
alimentar seus mecanismos e juros mais elevados do planeta.
O
sacrifício social para cobrir o rombo do Sistema da Dívida está presente nas
contrarreformas (principalmente da Previdência), que adiam, suprimem ou cortam
direitos sociais; nas privatizações do nosso patrimônio público e nos cortes de
investimentos sociais feitos para cumprir teto de gastos e arcabouço fiscal sob
alegação de “equilibrar as contas públicas”. Assim, estamos pagando essa
chamada dívida pública de várias formas.
Os
cortes de gastos sociais e na estrutura do Estado não surtem efeito para
“equilibrar as contas públicas”, porque o problema do gasto excessivo não está
na área social, e muito menos na estrutura do Estado.
A
prestação de serviços públicos se encontra extremamente deficiente e a
estrutura do Estado já está sendo sucateada em todas as áreas que observamos há
anos: Saúde (vejam a carência pela qual o SUS passa, com filas para cirurgias e
outros procedimentos vitais); Educação (com universidades tendo até energia
elétrica cortada por falta de pagamento, além de diversas carências
inacreditáveis); Meio Ambiente (que lida com falta de pessoal, e equipamentos
em geral, inclusive para o combate a incêndios florestais e demais atividades
imprescindíveis para a vida); Defesa Nacional (que sofre cortes que comprometem
até atividades de monitoramento em fronteiras, favorecendo o tráfico de armas,
drogas etc.), e vai por aí afora, o sucateamento está presente em todos os
ministérios e diversos órgãos, a exemplo do que ocorre no INSS e no IBGE, por
exemplo, abrindo espaço para nocivos projetos de privatizações.
Portanto,
não existe a tão falada “gastança com programas sociais ou com a estrutura da
máquina pública”, repetida à exaustão pela grande mídia, que cobra que o
governo federal corte cada vez mais os recursos destinados às áreas sociais,
porém, não menciona que a causa da gastança está no pernicioso funcionamento do
Sistema da Dívida no Brasil. Ao contrário, apelam para o senso comum das
pessoas de forma maliciosa e desonesta, pois inúmeras matérias da grande mídia
comparam o Sistema da Dívida com a obrigação contraída por uma família que
teria se descontrolado em compras e que, por isso, depois, teria fazer
sacrifícios, cortar idas ao cinema e outros gastos para sobrar dinheiro para
cobrir seus gastos excessivos. São coisas completamente distintas e tal comparação
chega a ser perversa.
No
caso das contas públicas, a gastança está no Sistema da Dívida, cujo
crescimento decorreu de seus próprios mecanismos e juros elevados e não de
investimentos públicos na estrutura do Estado ou em áreas sociais, como
declarou o representante do Tribunal de Contas da União (TCU) em audiência
pública realizada no Senado Federal em 2019: “Nenhum investimento foi feito com
recursos da emissão de títulos públicos… essa informação é do Tesouro”.
Adicionalmente,
é preciso recordar que durante 20 anos, o Brasil produziu R$ 1 trilhão de
superávit primário. Isto significa que durante 20 anos gastamos, com toda a
manutenção do Estado (todos os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e
Ministério Público) e com todos os serviços públicos prestados à população
(saúde, previdência, assistência, educação etc.), R$ 1 trilhão a menos do que
arrecadamos em tributos.
E o
que aconteceu com o estoque da dívida pública federal nesse mesmo período?
•
Em 1995, o estoque da dívida interna federal era de apenas R$ 86 bilhões.
• Em 2015, o estoque dessa dívida alcançou R$ 4 trilhões!
Ora,
se produzimos R$ 1 trilhão de superávit primário naquele período, é evidente
que o crescimento do estoque da dívida não decorreu de gastança alguma nos
investimentos sociais e estrutura do Estado, mas sim no próprio Sistema da
Dívida, principalmente com seus mecanismos e juros abusivos.
A
partir de 2015 passou a ser divulgado um falacioso déficit primário, obtido
porque deixa fora do cálculo diversas receitas públicas, distintas da emissão
de títulos e que são desviadas diretamente para o pagamento dos gastos com o
Sistema da Dívida e seus mecanismos e juros abusivos. Se a conta for feita
corretamente, não existe o falacioso déficit.
Cada
dia fica mais evidente a necessidade de enfrentamento do Sistema da Dívida por
meio da ferramenta da auditoria, que deverá ser feita de forma integral e com
ampla participação social. Se não for feito esse enfrentamento, entra governo e
sai governo, seguimos submetidos ao mesmo Sistema da Dívida, que exige
contínuos cortes de investimentos sociais, privatizações e contrarreformas,
aprofundando a escassez no Brasil da abundância...
Somos
um país riquíssimo e temos tudo para sermos uma grande Nação, porém, o Sistema
da Dívida tem travado o nosso desenvolvimento socioeconômico de forma
estrutural. Auditoria já!
¨
Pelo fim do Arcabouço
Fiscal. Por Paulo Kliass
Alguns
dos problemas mais graves que vêm afetando a sociedade brasileira ao longo das
últimas décadas podem ser condensados em um binômio de natureza bastante
perversa: a desindustrialização combinada à financeirização. Ao contrário do
que afirmam aqueles que defendem o ocorrido, não se trata de um processo
natural e inevitável, decorrente apenas de uma tendência geral observada em
quase todos os países do mundo. A forma como o fenômeno tomou corpo no Brasil
demonstra que foi algo estimulado e induzido a partir de decisões tomadas no
âmbito do aparelho de Estado e que foram implementadas sob a forma intencional
de políticas públicas devastadoras.
O
movimento de redução do espaço do setor que mais produzia valor agregado
tornou-se viável a partir da liberalização generalizada das importações, que
teve início em 1990 com o governo Collor. A abertura comercial ampla de forma
unilateral e sem um programa que estabelecesse a exigência de contrapartida dos
países parceiros comprometeu de forma aguda a capacidade de concorrência da
indústria brasileira. Além disso, a prática de uma política cambial sem
intervenção governamental – a conhecida ilusão neoliberal nas tais das forças
de mercado – levou a processos de valorização da moeda brasileira de forma
artificial e irrealista, agravando ainda mais a sobrevivência do setor
secundário nacional.
O
processo de aprofundamento da financeirização tem lugar ao longo de período
semelhante ao caso anterior. A hegemonia consolidada do sistema financeiro se
beneficia também de decisões implementadas no âmbito da institucionalidade da
política econômica na administração pública federal. Esse foi o caso da recusa
sistemática do Banco Central (BC) em cumprir com suas funções precípuas de
órgão responsável pela regulação e fiscalização do sistema bancário e
financeiro.
Assim,
ao longo de décadas a sociedade assistiu de forma passiva à permanência de
mecanismos de espoliação da grande maioria da população aos agentes econômicos
do financismo, por meio de “spreads” elevadíssimos, de tarifas escorchantes e
de práticas de cartel por parte dos grandes bancos. Por outro, a manutenção da
taxa oficial de juros em patamares estratosféricos praticamente inviabilizava
qualquer empreendimento no campo produtivo. O custo financeiro tornava
proibitivo esse tipo de inciativa no setor real da economia.
Desindustrialização,
financeirização e os riscos do arcabouço fiscal. Os dois casos acima descritos
deveriam servir como alerta para que seja construída de forma urgente uma
barreira à continuidade de outro processo igualmente prejudicial – a
permanência ao longo de décadas de medidas de austeridade fiscal. Esta se
apresenta também sob a forma de uma narrativa enganosa, em que haveria uma
necessidade inelutável de redução dos níveis de despesa pública observados em
nosso país. Seja pelo lado de um combate a um “setor público gastador” por
natureza, seja pelo discurso catastrofista de uma quebra iminente do Estado por
conta de níveis elevados do déficit e do endividamento, o fato é que a solução
sempre se apresenta por meio da faceta reducionista.
A
saga empreendida pelos representantes do financismo em prol da austeridade
fiscal remonta à crise da dívida externa da década de 1980. Ali tem início a
implementação de medidas concretas daquilo que depois passou a ser conhecido
como Consenso de Washington. A tríade composta por orientação para a
liberalização generalizada das economias, propostas de privatização das
empresas estatais e medidas de austeridade fiscal atravessa os continentes e
fixa raízes profundas também em nossa terra.
Ainda
que com certo atraso, no ano de 2000 o governo Fernando Henrique Cardoso
promove a introdução de uma peça estratégica em nossa estrutura institucional e
legal das finanças públicas: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), por meio
da Lei Complementar nº 101. Os princípios da austeridade passam a fazer parte
das regras jurídicas. Mais à frente, em 2016, na sequência do golpeachment
perpetrado contra a Presidenta Dilma Rousseff, o governo Temer introduz em
nossa Constituição o dispositivo do Teto de Gastos, por meio da EC nº 95. Com
essa inovação, os propósitos nem sempre transparentes de redução do Estado
brasileiro à sua dimensão mínima têm a seu favor o próprio texto
constitucional. A intenção explícita da regra austericida era de impedir
qualquer crescimento das despesas orçamentárias por longos 20 anos. Mas sua
natureza severamente draconiana e impeditiva do crescimento do PIB nos níveis
necessários fez que com esse regime fiscal tivesse uma vida mais curta do que o
previsto.
Revogação
do teto de gastos e a armadilha do arcabouço. No período mais recente, em 2023
o ministro Haddad convence o presidente Lula a adotar uma estratégia igualmente
equivocada no trato da questão fiscal. Tratava-se de substituir o Teto de
Gastos por um novo dispositivo de austeridade. Assim, o Brasil passou a contar
com a Lei Complementar nº 200, que trata do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Apesar
de não estarem mais inseridos na Constituição, os princípios austericidas
seguem orientando as ações da política econômica, promovendo um achatamento
relativo dos níveis de despesa orçamentária e impedindo a retomada do
protagonismo do Estado e da recuperação de padrões minimamente aceitáveis dos
programas de políticas públicas.
A
concepção do NAF foi articulada pelo Ministro da Fazenda em negociação bastante
restrita, envolvendo apenas o presidente bolsonarista do BC e presidentes de
bancos privados. Ao recusar as contribuições e os alertas dos economistas do
campo progressista, Haddad convenceu Lula a respeito da necessidade de um
dispositivo que atendesse plenamente aos interesses do financismo. Os
resultados passaram a ser sentidos no dia seguinte à promulgação da nova lei.
Autoridades da área econômica iniciaram um processo de divulgação de propostas
visando a flexibilizar as despesas ditas engessadas. A imprensa começou a
divulgar diariamente sugestões de retirar os pisos constitucionais para saúde e
educação, além de apresentar a ideia de desvincular os benefícios previdenciários
do valor do salário-mínimo. Assim, tem sido quase 2 anos com ataques
permanentes às conquistas do movimento social cristalizadas na Constituição
Federal.
Correndo
por fora, o Ministério da Fazenda implementa uma política fiscal arrochada, com
contingenciamentos, bloqueios e cortes de despesas. Tudo em função da
obstinação injustificável de Haddad com uma meta de zerar o déficit primário em
um curto prazo de tempo. Para atender a estes dois parâmetros de natureza
austericida, o governo termina por não contar com recursos orçamentários para
implementar o programa que levou Lula à vitória eleitoral em outubro de 2022.
As últimas semanas foram objeto de muita pressão das entidades e forças
políticas do campo progressista, de forma que aparentemente as ideias
mirabolantes e maximalistas de Haddad não contarão com o aval do Presidência da
República.
Mas
permanece o foco no corte de gastos a qualquer custo e os dias passam para que
a equipe apresente o desenho final das propostas contracionistas para o
exercício fiscal de 2025. Pelos números até agora divulgados, tudo indica que a
montanha realmente pariu um rato, como diz a sabedoria popular. Para quem
afirmava com todas as pompas perante a banca privada que haveria medidas
estruturais de redução de despesas, o titular vai ter de se contentar com um
corte de “apenas” 70 bilhões de reais.
No
entanto, há quem considere mais adequada para o caso a analogia com a parábola
do “bode na sala”, uma vez que os cortes em sua versão definitiva serão
bastante prejudiciais em termos políticos, sociais e mesmo econômicos. Para o
momento atual, ao invés de ficar amealhando bilhões aqui e acolá com medidas
pontuais e casuísticas de cortes nas despesas, bastaria editar uma Medida
Provisória eliminando o absurdo da isenção tributária para lucros e dividendos.
Na verdade, é importante lembrar que os governos do PT tiveram desde o dia 1º
de janeiro de 2003 para editar tal norma. E nada foi feito até o momento. Da
noite para o dia o governo terá sua receita tributária anual elevada em valor
superior aos R$ 70 bilhões que tanto esforço está sendo realizado para
alcançar.
Lula
deve ter plena consciência dos efeitos nefastos que tal estratégia de insistir
na tese da austeridade fiscal pode provocar para o país e para a avaliação
popular da segunda metade de seu terceiro mandato. Tanto é assim que, ao longo
da campanha eleitoral de 2022, ele nunca deixou de mencionar sua recusa ao
princípio do teto de gastos e sua intenção de abandonar tal restrição.
Abaixo
seguem algumas das declarações do então candidato a esse respeito durante
aquele ano:(…) “O teto de gastos foi criado para que se evitasse dar aumento na
saúde, na educação, no transporte coletivo, na renda das pessoas que trabalham
neste país. É importante saber que não é nenhuma bravata. Vocês sabem que eu
não sou de fazer bravata, não sou de rasgar nota de dez, não sou de dizer
coisas que eu não acredito, mas não terá teto de gastos em lei no nosso país”
(…) “Vou acabar por que o teto de gastos representa os interesses do setor
financeiro” (…) “Não vai ter teto de gastos no meu governo. Vamos investir em
educação, porque é o que dá mais retorno ao país. O que vai resolver a relação
dívida/PIB é o crescimento do PIB” (…) As pessoas que compartilham de uma maior
simpatia ou dose de tolerância por Haddad poderão argumentar: “Ah, Paulo não
seja injusto, pois o teto de gastos não existe mais, ele foi substituído pelo
NAF”. Na aparência, isso até pode ser verdade. Mas na essência o mecanismo da
austeridade não é lá muito diferente. Tanto que a expressão é utilizada pelo
próprio ministro da Fazenda. Veja o que ele afirmou em entrevista recente: (…)
O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa
não pode crescer acima de 70% da receita. (…) [GN]
A
situação atual até pode ser contornada com a conhecida habilidade de Lula em
evitar conflitos e buscar soluções de consenso em que os interesses das classes
dominantes e da maioria da população não sejam assim tão prejudicados. Mas o
ponto a reter aqui no raciocínio é que a permanência do NAF apenas adia o
problema para alguns meses à frente. Isso pelo fato de que a aritmética não
permite que o bolo total dos gastos orçamentários cresça tão somente a um ritmo
de 70% da elevação das receitas, enquanto rubricas relevantes continuem
vinculadas ao total das receitas (saúde e educação) e os benefícios
previdenciários cresçam acima da inflação, acompanhando o valor do
salário-mínimo.
Essa
é espada de Dâmocles que permanecerá sobre a cabeça do governo enquanto o NAF
não for alterado de forma substancial ou simplesmente abandonado. A cada nova
conjuntura voltarão as baterias do financismo e das elites endinheiradas para
que as chamadas “medidas estruturais” da austeridade sejam adotadas. E o
governo deverá enfrentar uma nova crise política e muito desgaste. Mais uma
vez, a palavra final está com Lula, o Presidente da República.
Fonte:
Jornal GGN/Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário