Reforma na
Segurança, um debate inadiável
A
maior parte da opinião pública politizada que se identifica com o campo
progressista e democrático talvez ainda não tenha compreendido a natureza
institucional dos problemas graves de insegurança que vivemos no país. O fato é
que convivemos há tanto tempo com um dragão adormecido na sala de visitas, que
nos acostumamos a falar baixo e contorná-lo para evitar que desperte e faça
sabe-se lá o quê. Não é confortável, mas muitas coisas na vida tampouco o são,
mesmo assim aprendemos a normalizá-las.
O
dragão entre nós são os enclaves institucionais representados pelas Forças
Armadas e pelas polícias. Enclaves porque, embora essas corporações e os
limites de sua atuação estejam estabelecidos na Constituição, elas têm se
mostrado refratárias à autoridade civil e política, e portanto às determinações
constitucionais.
Os
militares buscam legitimar seus anseios de autonomia e seu projeto de tutelar o
poder civil, manipulando as ambiguidades propositalmente inoculadas no artigo
142 da Carta Magna. Foi um dos preços que pagamos pelo caráter negociado da
transição. A expectativa era que o mal fosse passageiro: adiante, reformas
ajustariam a orientação constitucional. Além disso, o regime republicano de
“checks-and-balances” se incumbiria de impor limites a eventuais impulsos
golpistas. No caso das polícias militares, a subordinação aos executivos
estaduais era relativizada (e contraditada) por legislação
infra-constitucional, que as submetia ao Exército, como “forças reserva”.
Entretanto, nessa área os temores eram mitigados pelo papel atribuído ao
Ministério Público, entre cujos deveres constitucionais se incluira o controle
externo da atividade policial.
Os
trinta e seis anos de vigência da Carta Magna demonstraram que, tanto na Defesa
quanto na Segurança, não houve reforma, nem limites, muito menos controle
externo. Os presidentes civis não assumiram o comando supremo das Forças
Armadas e os governadores preferiram não brigar com a “realidade”, e
assimilaram o que, na prática, podemos definir como autonomia ilegal das
polícias. A experiência provou que contrariar as polícias precipitaria reações
capazes de desestabilizar governos. Presidentes sequer ousaram submeter sua
autoridade ao teste da prática – Dilma Roussef talvez tenha sido a tímida
exceção, instalando a Comissão da Verdade, e nós sabemos qual foi o desfecho:
não teria havido golpe parlamentar sem o endosso das Forças Armadas.
O
dramático período em que fomos governados por um presidente de inspiração
neo-fascista, tempos sombrios que se seguiram ao golpe contra Dilma, serviu
para nos mostrar quão frágil é a democracia que vem sendo construída desde
1988. As conquistas foram importantes mas não se consolidaram e o processo
evolutivo que parecia irreversível foi interrompido e, em alguma medida,
revertido. Entre as lições que podemos extrair, destaco a seguinte: sob tutela
militar e sem dispor do poder (representado, em última instância, pelo aparelho
coercitivo), a autoridade política, mesmo derivando pelo voto da soberania
popular, estará sob permanente chantagem, sob risco constante de
desestabilização e sem condições de fazer avançar agendas efetivamente
populares e democráticas. Autoridade sem poder desfaz-se no ar, é obrigada a
recuar e render-se para preservar seu status, reduzida a símbolo sem
substância.
Muitas
ilusões se desfizeram, ao longo do tempo. Quanto às Forças Armadas, por um
lado, a crença de que seriam regidas por valores patrióticos e,
consequentemente, nacionalistas. O golpe de 1964, articulado por militares,
elites empresariais e o imperialismo estadunidense, jogou por terra essas
fantasias. Por outro lado, a expectativa de que a redemocratização as tivesse
convertido à legalidade. O revival golpista e seu envolvimento na guerra
híbrida contra as esquerdas, culminando na exclusão de Lula da disputa
eleitoral em 2018, em sua prisão, e no governo Bolsonaro, foram a pá de cal no
auto-engano com que os civis democratas embalamos o sono dogmático. Quanto às
polícias, dados empíricos são suficientes para constatar a autonomia ilegal de
que têm se beneficiado, em prejuízo da população. As evidências são eloquentes
e desmascaram as tentativas de apresentar o sistemático desrespeito à
legalidade constitucional como desvios de conduta individuais. Em 2023, 6.393
pessoas foram mortas por ações policiais, no Brasil. No estado do Rio, 871. Na
série histórica fluminense, entre 2003 e 2023, houve 21.662 vítimas letais de
ações policiais – menos de 10% dos casos chegaram a julgamento. O vieses de
raça e classe são notórios, em todo o país. Por isso, insisto em falar em
genocídio de jovens negros e pobres.
Engana-se
quem deduzir da magnitude da brutalidade policial alguma efetividade na
promoção de segurança. Os indicadores nacionais têm se mantido em patamares
escandalosamente elevados: em 2023, 46.328 pessoas foram vítimas de crimes
letais intencionais. Do mesmo modo, o encarceramento em massa sobretudo de
negros e pobres, a maioria atuando no comércio varejista de substâncias
ilícitas, tem paradoxalmente fortalecido as facções criminosas.
O
senso comum compreende mais facilmente que haja desordem nas polícias civis do
que nas militares. Quando, ainda nos anos 1990, escrevi sobre os baronatos
feudais em que se haviam transformado as delegacias no Rio de Janeiro,
relativamente indiferentes a estruturas organizacionais que as integrassem e
subordinassem, a crítica soava verossímil. Ao longo das décadas, tornou-se
amplamente conhecida a incidência dos empreendedores do jogo do Bicho e de
outras entidades criminosas sobre as investigações – entidades cuja capacidade
de cooptação varia no tempo e no espaço.
Já
a estrutura militar tende a ser vista como menos permeável à corrupção e ao
descontrole, uma vez que hierarquia e disciplina não convivem com a anarquia. O
problema é que, quando a expansão da autonomia ilegal afasta a corporação de
seus vínculos com a hierarquia republicana – o que se verifica na medida em que
a corporação resiste a subordinar se à autoridade civil e política -, a
hierarquia interna sofre também, assim como a disciplina: segmentos policiais
agem por conta própria, autorizados pela impunidade interna, que encobre tanto
as execuções extra-judiciais, quanto os atos criminosos que lhes são
associados.
O
histórico de autonomizações, que se estende dos esquadrões da morte e da
Scuderie LeCocq aos personagens avulsos e híbridos – matadores a soldo formados
nas polícias – como Ronnie Lessa e Adriano da Nóbrega, corresponde à trajetória
que leva às milícias e à degradação institucional. Registre-se que a
experiência do Rio de Janeiro é muito peculiar, mas não única.
Para
deixar mais claro o ambiente normativo, propositalmente confuso e ambíguo, que
funciona como um espelho, no campo da segurança, da já referida ambiguidade do
artigo 142, relativo às Forças Armadas, descrevo alguns aspectos do emaranhado
que parece amarrar as PMs, mas acaba, na prática, anulando as linhas de comando
e controle:
“Segundo a Constituição, as polícias militares são forças
auxiliares e reserva do Exército (art. 144, parágrafo 6º) e sua identidade tem
expressão institucional por intermédio do Decreto nº 88.777, de 30 de setembro
de 1983, do Decreto-Lei nº 667, de 02 de julho de 1969, modificado pelo
Decreto-Lei nº 1.406, de 24 de junho de 1975, e do Decreto-Lei nº 2.010, de 12
de janeiro de 1983. Em resumo, isso significa o seguinte: o Exército é
responsável pelo ‘controle e a coordenação’ das polícias militares, enquanto as
secretarias de Segurança dos estados (ou os governadores) têm autoridade sobre
sua ‘orientação e planejamento’.
“Em outras palavras, os comandantes gerais das PMs devem
reportar-se a dois senhores. Indicá-los é prerrogativa do Exército (art. 1 do
Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983, que modifica o art. 6 do
Decreto-Lei 667/69), ao qual se subordinam, pela mediação da Inspetoria-Geral
das Polícias Militares (que passou a integrar o Estado-Maior do Exército em
1969), as segundas seções (as PM2), dedicadas ao serviço de inteligência, assim
como as decisões sobre estruturas organizacionais, efetivos, ensino e instrução,
entre outras. As PMs obrigam-se a obedecer a regulamentos disciplinares
inspirados no regimento vigente no Exército (art.18 do Decreto-Lei 667/69) e a
seguir o regulamento de administração do Exército (art. 47 do Decreto
88.777/83), desde que este não colida com normas estaduais.
“Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas
organizacionais, convivendo no interior de cada polícia militar, em cada estado
da Federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos oficiais,
ao comandante-geral da PM, ao secretário de Segurança e ao governador; a outra
vincula o comandante-geral da PM ao comandante do Exército, ao ministro da
Defesa e ao presidente da República. Apesar da autoridade estadual sobre
‘orientação e planejamento’, a principal cadeia de comando é a que subordina as
PMs ao Exército. Não é difícil compreender o primeiro efeito da duplicidade
assimétrica: as PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos que
subvertem o princípio federativo.” (Soares, L.E. Desmilitarizar; segurança
pública e direitos humanos. SP: Boitempo, 2019).
Como
se vê, segurança pública não pode continuar a ser tratada como matéria de
policiais, juristas e especialistas, nem mesmo deve ser reduzida a mero
epifenômeno de problemas econômicos e sociais, embora eles sejam de imensa
importância. Mais do que nunca, segurança é uma questão eminentemente política,
que coloca em cheque a vigência da Constituição e a sobrevivência do Estado
democrático de direito. Se os comportamentos e valores hegemônicos nas
polícias, não apenas nas militares, eram bolsonaristas antes de Bolsonaro, se
as corporações se autonomizaram, ilegalmente, aproveitando-se da barafunda
normativa, da omissão do MP e da hesitação política dos democratas, é urgente
enfrentar o desafio que representam, inserindo na agenda pública a mudança da
arquitetura institucional da segurança e do modelo policial, ou seja, o artigo
144 da Constituição. Assim como é urgentíssimo incluir na pauta a reforma do
artigo 142 e da Defesa, na direção do que propõe Manuel Domingos Neto, em seu
livro fundamental “O que fazer com o militar” (editora Gabinete de Leitura,
2023).
Não
é razoável continuar discutindo segurança com foco exclusivamente na
criminalidade e em organizações criminosas, enquanto a autoridade democrática
vai se tornando refém e se condenando à impotência. Tampouco é aceitável
deixar-se acuar pela arrogância militar. Autoridade política que não se afirma
arrisca-se a dissolver-se no ar como se fosse apenas mais uma ilusão.
Fonte:
Por Luiz Eduardo Soares, no Portal Grabois
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