quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Reforma na Segurança, um debate inadiável

A maior parte da opinião pública politizada que se identifica com o campo progressista e democrático talvez ainda não tenha compreendido a natureza institucional dos problemas graves de insegurança que vivemos no país. O fato é que convivemos há tanto tempo com um dragão adormecido na sala de visitas, que nos acostumamos a falar baixo e contorná-lo para evitar que desperte e faça sabe-se lá o quê. Não é confortável, mas muitas coisas na vida tampouco o são, mesmo assim aprendemos a normalizá-las.

O dragão entre nós são os enclaves institucionais representados pelas Forças Armadas e pelas polícias. Enclaves porque, embora essas corporações e os limites de sua atuação estejam estabelecidos na Constituição, elas têm se mostrado refratárias à autoridade civil e política, e portanto às determinações constitucionais.

Os militares buscam legitimar seus anseios de autonomia e seu projeto de tutelar o poder civil, manipulando as ambiguidades propositalmente inoculadas no artigo 142 da Carta Magna. Foi um dos preços que pagamos pelo caráter negociado da transição. A expectativa era que o mal fosse passageiro: adiante, reformas ajustariam a orientação constitucional. Além disso, o regime republicano de “checks-and-balances” se incumbiria de impor limites a eventuais impulsos golpistas. No caso das polícias militares, a subordinação aos executivos estaduais era relativizada (e contraditada) por legislação infra-constitucional, que as submetia ao Exército, como “forças reserva”. Entretanto, nessa área os temores eram mitigados pelo papel atribuído ao Ministério Público, entre cujos deveres constitucionais se incluira o controle externo da atividade policial.

Os trinta e seis anos de vigência da Carta Magna demonstraram que, tanto na Defesa quanto na Segurança, não houve reforma, nem limites, muito menos controle externo. Os presidentes civis não assumiram o comando supremo das Forças Armadas e os governadores preferiram não brigar com a “realidade”, e assimilaram o que, na prática, podemos definir como autonomia ilegal das polícias. A experiência provou que contrariar as polícias precipitaria reações capazes de desestabilizar governos. Presidentes sequer ousaram submeter sua autoridade ao teste da prática – Dilma Roussef talvez tenha sido a tímida exceção, instalando a Comissão da Verdade, e nós sabemos qual foi o desfecho: não teria havido golpe parlamentar sem o endosso das Forças Armadas.

O dramático período em que fomos governados por um presidente de inspiração neo-fascista, tempos sombrios que se seguiram ao golpe contra Dilma, serviu para nos mostrar quão frágil é a democracia que vem sendo construída desde 1988. As conquistas foram importantes mas não se consolidaram e o processo evolutivo que parecia irreversível foi interrompido e, em alguma medida, revertido. Entre as lições que podemos extrair, destaco a seguinte: sob tutela militar e sem dispor do poder (representado, em última instância, pelo aparelho coercitivo), a autoridade política, mesmo derivando pelo voto da soberania popular, estará sob permanente chantagem, sob risco constante de desestabilização e sem condições de fazer avançar agendas efetivamente populares e democráticas. Autoridade sem poder desfaz-se no ar, é obrigada a recuar e render-se para preservar seu status, reduzida a símbolo sem substância.

Muitas ilusões se desfizeram, ao longo do tempo. Quanto às Forças Armadas, por um lado, a crença de que seriam regidas por valores patrióticos e, consequentemente, nacionalistas. O golpe de 1964, articulado por militares, elites empresariais e o imperialismo estadunidense, jogou por terra essas fantasias. Por outro lado, a expectativa de que a redemocratização as tivesse convertido à legalidade. O revival golpista e seu envolvimento na guerra híbrida contra as esquerdas, culminando na exclusão de Lula da disputa eleitoral em 2018, em sua prisão, e no governo Bolsonaro, foram a pá de cal no auto-engano com que os civis democratas embalamos o sono dogmático. Quanto às polícias, dados empíricos são suficientes para constatar a autonomia ilegal de que têm se beneficiado, em prejuízo da população. As evidências são eloquentes e desmascaram as tentativas de apresentar o sistemático desrespeito à legalidade constitucional como desvios de conduta individuais. Em 2023, 6.393 pessoas foram mortas por ações policiais, no Brasil. No estado do Rio, 871. Na série histórica fluminense, entre 2003 e 2023, houve 21.662 vítimas letais de ações policiais – menos de 10% dos casos chegaram a julgamento. O vieses de raça e classe são notórios, em todo o país. Por isso, insisto em falar em genocídio de jovens negros e pobres.

Engana-se quem deduzir da magnitude da brutalidade policial alguma efetividade na promoção de segurança. Os indicadores nacionais têm se mantido em patamares escandalosamente elevados: em 2023, 46.328 pessoas foram vítimas de crimes letais intencionais. Do mesmo modo, o encarceramento em massa sobretudo de negros e pobres, a maioria atuando no comércio varejista de substâncias ilícitas, tem paradoxalmente fortalecido as facções criminosas.

O senso comum compreende mais facilmente que haja desordem nas polícias civis do que nas militares. Quando, ainda nos anos 1990, escrevi sobre os baronatos feudais em que se haviam transformado as delegacias no Rio de Janeiro, relativamente indiferentes a estruturas organizacionais que as integrassem e subordinassem, a crítica soava verossímil. Ao longo das décadas, tornou-se amplamente conhecida a incidência dos empreendedores do jogo do Bicho e de outras entidades criminosas sobre as investigações – entidades cuja capacidade de cooptação varia no tempo e no espaço.

Já a estrutura militar tende a ser vista como menos permeável à corrupção e ao descontrole, uma vez que hierarquia e disciplina não convivem com a anarquia. O problema é que, quando a expansão da autonomia ilegal afasta a corporação de seus vínculos com a hierarquia republicana – o que se verifica na medida em que a corporação resiste a subordinar se à autoridade civil e política -, a hierarquia interna sofre também, assim como a disciplina: segmentos policiais agem por conta própria, autorizados pela impunidade interna, que encobre tanto as execuções extra-judiciais, quanto os atos criminosos que lhes são associados.

O histórico de autonomizações, que se estende dos esquadrões da morte e da Scuderie LeCocq aos personagens avulsos e híbridos – matadores a soldo formados nas polícias – como Ronnie Lessa e Adriano da Nóbrega, corresponde à trajetória que leva às milícias e à degradação institucional. Registre-se que a experiência do Rio de Janeiro é muito peculiar, mas não única.

Para deixar mais claro o ambiente normativo, propositalmente confuso e ambíguo, que funciona como um espelho, no campo da segurança, da já referida ambiguidade do artigo 142, relativo às Forças Armadas, descrevo alguns aspectos do emaranhado que parece amarrar as PMs, mas acaba, na prática, anulando as linhas de comando e controle:

Segundo a Constituição, as polícias militares são forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, parágrafo 6º) e sua identidade tem expressão institucional por intermédio do Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, do Decreto-Lei nº 667, de 02 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei nº 1.406, de 24 de junho de 1975, e do Decreto-Lei nº 2.010, de 12 de janeiro de 1983. Em resumo, isso significa o seguinte: o Exército é responsável pelo ‘controle e a coordenação’ das polícias militares, enquanto as secretarias de Segurança dos estados (ou os governadores) têm autoridade sobre sua ‘orientação e planejamento’.

Em outras palavras, os comandantes gerais das PMs devem reportar-se a dois senhores. Indicá-los é prerrogativa do Exército (art. 1 do Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983, que modifica o art. 6 do Decreto-Lei 667/69), ao qual se subordinam, pela mediação da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (que passou a integrar o Estado-Maior do Exército em 1969), as segundas seções (as PM2), dedicadas ao serviço de inteligência, assim como as decisões sobre estruturas organizacionais, efetivos, ensino e instrução, entre outras. As PMs obrigam-se a obedecer a regulamentos disciplinares inspirados no regimento vigente no Exército (art.18 do Decreto-Lei 667/69) e a seguir o regulamento de administração do Exército (art. 47 do Decreto 88.777/83), desde que este não colida com normas estaduais.

Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas organizacionais, convivendo no interior de cada polícia militar, em cada estado da Federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos oficiais, ao comandante-geral da PM, ao secretário de Segurança e ao governador; a outra vincula o comandante-geral da PM ao comandante do Exército, ao ministro da Defesa e ao presidente da República. Apesar da autoridade estadual sobre ‘orientação e planejamento’, a principal cadeia de comando é a que subordina as PMs ao Exército. Não é difícil compreender o primeiro efeito da duplicidade assimétrica: as PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos que subvertem o princípio federativo.” (Soares, L.E. Desmilitarizar; segurança pública e direitos humanos. SP: Boitempo, 2019).

Como se vê, segurança pública não pode continuar a ser tratada como matéria de policiais, juristas e especialistas, nem mesmo deve ser reduzida a mero epifenômeno de problemas econômicos e sociais, embora eles sejam de imensa importância. Mais do que nunca, segurança é uma questão eminentemente política, que coloca em cheque a vigência da Constituição e a sobrevivência do Estado democrático de direito. Se os comportamentos e valores hegemônicos nas polícias, não apenas nas militares, eram bolsonaristas antes de Bolsonaro, se as corporações se autonomizaram, ilegalmente, aproveitando-se da barafunda normativa, da omissão do MP e da hesitação política dos democratas, é urgente enfrentar o desafio que representam, inserindo na agenda pública a mudança da arquitetura institucional da segurança e do modelo policial, ou seja, o artigo 144 da Constituição. Assim como é urgentíssimo incluir na pauta a reforma do artigo 142 e da Defesa, na direção do que propõe Manuel Domingos Neto, em seu livro fundamental “O que fazer com o militar” (editora Gabinete de Leitura, 2023).

Não é razoável continuar discutindo segurança com foco exclusivamente na criminalidade e em organizações criminosas, enquanto a autoridade democrática vai se tornando refém e se condenando à impotência. Tampouco é aceitável deixar-se acuar pela arrogância militar. Autoridade política que não se afirma arrisca-se a dissolver-se no ar como se fosse apenas mais uma ilusão.

 

Fonte: Por Luiz Eduardo Soares, no Portal Grabois

 

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