A crise da
dívida do Suriname mostra como funciona o capitalismo global
O Suriname
é uma antiga colônia holandesa na América do Sul, mais conhecida pelas
florestas amazônicas intocadas que cobrem 93% do país e o tornam um dos três
únicos países que absorvem mais emissões de carbono do que produzem.
Recentemente, tornou-se um tema interessante para o resto do mundo por dois
motivos principais: o fato de estar passando por uma das piores crises de
dívida do mundo e a descoberta de petróleo e gás offshore em grandes quantidades.
O
povo do Suriname se encontra vivendo em uma dupla realidade. Atualmente, há
um programa de austeridade brutal imposto
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), causando o caos habitual na vida das
pessoas. Ao mesmo tempo, os políticos asseguram que o país tem um futuro
brilhante pela frente, no qual as receitas abundantes do petróleo resolverão
todos os problemas e beneficiarão a população em geral.
O
Suriname é um estudo de caso importante sobre a maneira como o neocolonialismo
financeirizado atua no século XXI. Uma perspectiva feminista sobre a dívida
pode nos fornecer ferramentas inestimáveis para
pensar sobre o impacto destrutivo da dívida e encontrar maneiras de combatê-la.
·
Dívida e neocolonialismo
As
terras férteis e os rios navegáveis do
Suriname têm sido lucrativos para
estrangeiros poderosos por séculos. Os colonos holandeses tomaram as plantações de café, açúcar e
algodão dos britânicos em 1667 e estabeleceram o que foi,
sem dúvida, a economia
escravista mais brutal da região. No entanto, os colonizadores holandeses não adetraram muito rumo ao interior das
florestas, onde os povos indígenas e dos marrons, o equivalente às
comunidades quilombolas, defenderam sua autonomia.
No
entanto, mesmo antes de o país ganhar sua independência da Holanda, os
interesses comerciais dos EUA estavam transformando a paisagem. Vastas
extensões de floresta foram inundadas, forçando a
comunidade Maroon Saamaka a deixar suas terras para construir a Represa
Afobaka, que geraria energia hidrelétrica para a fábrica de bauxita da Aluminum
Company of America (Alcoa).
“O
Suriname é um estudo de caso importante sobre a forma como o neocolonialismo
financeirizado atua no século XXI.”
Quando
o Suriname não era mais suficientemente lucrativo para a Alcoa, a empresa fez
as malas e foi embora, tendo conseguido vender a represa de volta para o
Suriname. Graças a acordos injustos que dobraram os preços da eletricidade e
deixaram o país exposto a oscilações nos mercados de commodities, o Suriname
chegou a dever à Alcoa mais de
US$ 100 milhões por eletricidade produzida usando seus próprios recursos
naturais.
Essa
dívida atingiu proporções de crise na década de 2010 com a onda de gastos da
administração Dési Bouterse. Credores privados e instituições financeiras
internacionais fizeram fila para conceder empréstimos, muitas vezes com juros
altos, em meio à queda profunda dos preços globais das commodities. Embora
Bouterse esteja atualmente foragido de uma sentença de vinte anos por
assassinar oponentes políticos, o povo surinamês ainda permanece responsável
pelas dívidas e à mercê de qualquer um disposto a emprestar dinheiro.
Tendo
dito não às condições estabelecidas pelo FMI em 2018, o governo foi forçado a
tomar empréstimos de uma variedade de instrumentos do mercado de capitais e
credores multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o
Estado chinês, novamente com altas taxas de juros. Após a pandemia da COVID-19,
o Suriname entrou em default em novembro de 2020.
Os
Estados não podem declarar falência da mesma forma que indivíduos ou empresas.
O Suriname é considerado rico demais para acessar o Common Framework, o
processo limitado e inadequado para alívio de dívidas e reestruturação
estabelecido pelo G20 após a pandemia. O resultado, para o Suriname e países do
Sul Global, é que recursos preciosamente necessários para saúde e educação são
drenados para pagar os juros dos empréstimos.
Quando
os países entram em default, eles têm que negociar com seus credores para
reduzir suas dívidas. Credores privados recebem 46% dos pagamentos da dívida
externa do Sul Global e possuem 38% das dívidas do Suriname. Esses atores não
estão acostumados a assumir perdas quando seus empréstimos arriscados dão
errado. Credores privados resistiram em negociações de reestruturação de dívida com o Suriname por um acordo incrivelmente doce que
equivalia a cancelar apenas 2% da dívida devida. Quando os juros são levados em
conta, a Debt Justice estima que
os detentores de títulos terão lucros de 80%.
Pior
ainda, os detentores de títulos reivindicaram as futuras receitas de petróleo do Suriname por meio de um instrumento de recuperação de valor. Se
tudo correr conforme o planejado, isso encherá seus bolsos com uma surpreendente quantia inesperada de 30% das futuras receitas de petróleo, até um total de £
689 milhões. Enquanto isso, o Suriname continuará a gastar 27% de suas receitas
governamentais em pagamentos de dívida externa nos próximos cinco anos.
Para
salvaguardar essa sorte inesperada, o acordo com os detentores de títulos
depende de o Suriname mudar a legislação de seu fundo soberano até dezembro de
2024. Cinquenta anos após a independência oficial do Suriname da Holanda,
agentes estrangeiros estão mais uma vez ditando como o Suriname usa seus
recursos e qual legislação deve aprovar. Esta é a nova forma de colonialismo,
usando dívida para obter acesso a recursos.
·
Austeridade alimentada pela dívida
Oresultado,
para o povo do Suriname, é austeridade. O FMI exigiu cortes selvagens, com base
em uma metodologia falha que prioriza fluxos de capital em detrimento dos direitos humanos e da sustentabilidade
da vida.
Esses
cortes tiveram um impacto profundo na vida das pessoas, mergulhando o país no caos
político, econômico e social, com greves e revoltas. A assistência médica
entrou em colapso, os medicamentos são escassos e as salas de cirurgia estão
vazias por falta de materiais e pessoal qualificado. Trabalhadores essenciais,
como professores e profissionais de saúde, deixaram em massa o país, caçados
por instituições na Holanda, o antigo colonizador.
“O
FMI exigiu cortes drásticos, com base em uma metodologia falha que prioriza os
fluxos de capital em detrimento dos direitos humanos e da sustentabilidade da
vida.”
Essas
políticas de austeridade tiveram um impacto particularmente severo sobre as
mulheres surinamesas e pessoas LGBTQIAPN+, que devem assumir o fardo do cuidado
enquanto o Estado se retira. Esse trabalho de cuidado feminizado, rejeitado e
não remunerado, sempre foi uma pré-condição essencial para os lucros
capitalistas, embora seja ignorado em modelos econômicos ou considerado
“improdutivo” em contraste com o trabalho remunerado “produtivo”. As crises da
dívida trazem isso à tona, pois as cuidadoras precisam encontrar dinheiro para
pagar por serviços de saúde privatizados, os preços exorbitantes de itens
essenciais ou táxis para as crianças frequentarem a escola depois que os ônibus
escolares e redes mais amplas de transporte público foram cortados.
Susan
Doorson, da Women’s Way
Foundation, destaca a situação das mulheres LGBTQIAPN+ que enfrentam a
perspectiva de se endividar para pagar por serviços de saúde mental e sexual:
“Quantas pessoas no Suriname morrem porque não têm acesso aos serviços? Elas
têm que pensar: vou alimentar a família hoje ou vou fazer um check-up médico?”
A
negligência histórica com as áreas indígenas rurais significa que os serviços
de saúde estão concentrados na capital, Paramaribo, que fica a quinze horas de
barco de algumas comunidades. De acordo com Audrey Christiaan, embaixadora do
grupo cultural indígena Juku Jume Maro,
comunidades indígenas que “não têm o luxo do transporte público” por causa dos
cortes de gastos perdem o acesso a serviços vitais. No caso de uma emergência
médica, eles enfrentam a despesa dramática de contratar um avião para levar as
pessoas para tratamento, o que em alguns casos pode ser tarde demais.
A
austeridade força as cuidadoras a trabalhar mais horas, em condições mais
precárias, por salários mais baixos. As mulheres são desproporcionalmente
empregadas nos serviços públicos que enfrentam redundâncias devido às
exigências do FMI para equilibrar as contas. Os empregos do setor informal em
que mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ frequentemente trabalham também diminuem à
medida em que avançam os cortes com gastos discricionários. A inflação no
Suriname ocasionou uma redução de 11% no poder de compra ao longo de um ano.
Como
resultado, as cuidadoras estão menos aptas do que nunca a arcar com os custos
repentinos que recaem sobre elas e têm que se endividar, à medida que o ciclo
da dívida se move do Estado para o âmbito familiar. Ao mesmo tempo, elas têm
cada vez menos tempo e recursos para fornecer os cuidados não remunerados que
os cortes de serviço cada vez mais sobrecarregam, e dos quais a sociedade
depende.
·
Um fenômeno global
Este
cenário não se limita a países como o Suriname. Também vimos isso acontecer em
comunidades no Norte Global, especialmente desde a crise de 2008, a partir da
qual os governos de países ricos infligiram políticas de austeridade com
narrativas semelhantes para justificá-las. A crise do cuidado é agora um
fenômeno global. Como Nancy Fraser argumentou, ao
empurrar os cuidadores não remunerados dos quais depende para o limite da
sobrevivência enquanto destrói o ambiente natural que pilha para obter recursos
gratuitos, o capitalismo financeiro global está cada vez mais canibalizando as condições
de sua própria lucratividade.
A
austeridade motivada pela dívida está desestabilizando países em todo o mundo.
No Suriname, protestos sem precedentes encheram
a praça principal de Paramaribo. Mas eles tiveram impacto limitado: o governo
surinamês tem pouco poder em um sistema global injusto e continuou a
implementar os ditames dos credores e do FMI, apesar de sua profunda
impopularidade doméstica.
“O
capitalismo financeiro global está cada vez mais canibalizando as condições de
seu próprio lucro.”
Como Lucí
Cavallero e Verónica Gago explicaram, com base nas experiências
do movimento feminista Ni Una Menos na Argentina, a exploração movida pela dívida impõe
obediência ao mesmo tempo em que gera lucros. Em contraste com os gastos de
manter um exército colonial, a dívida gera lucros ao mesmo tempo em que
controla e coage.
A
mesma ferramenta que drena recursos das comunidades trabalha simultaneamente
para tornar esse processo de extração invisível, individual e constrangido, em
forte contraste com a exploração coletiva de trabalhadores no chão de fábrica.
Enquanto os trabalhadores sindicalizados têm força em números para sua luta
coletiva contra empregadores exploradores identificáveis, o indivíduo fica
sozinho com suas dívidas diante das fileiras invisíveis de bancos e credores,
enquanto a sociedade lhes diz que a culpa é deles.
Os
Estados também se posicionam sozinhos contra seus credores e o FMI, temendo os
julgamentos das agências de classificação de crédito e estigmatizados por uma
narrativa moralizante de que as dívidas são o resultado de empréstimos
irresponsáveis, desperdício e corrupção. Quando o ex-presidente de Burkina
Faso, Thomas Sankara, tentou
organizar os Estados africanos para se solidarizarem contra a dívida
neocolonial, ele foi rapidamente deposto em um golpe e assassinado, supostamente com o apoio do Estado francês.
·
Uma questão feminista
Precisamos
de uma perspectiva feminista para entender e resistir à nova onda de
expropriação baseada na dívida. O feminismo sempre trabalhou para tornar a
esfera privada politicamente visível e para construir formas de solidariedade
coletiva contra o estigma e a exploração individualizados. O capitalismo
financeirizado está envolto em mistificação: seu funcionamento parece opaco até
mesmo para especialistas, e incompreensível para as pessoas no fio da navalha.
Movimentos como Ni Una Menos se concentraram em desmistificar esse processo,
tirando a dívida “do armário” e “desafiando seu poder de constranger”,
nas poderosas palavras de
Cavallero e Gago.
Precisamos
de um feminismo internacionalista dos 99% que possa fazer conexões entre o impacto das crises de dívida e assistência em
comunidades, e para as mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ no Sul e Norte Global igualmente.
As crises sobrepostas que enfrentamos — dívida, clima e assistência — só podem
ser abordadas por meio de uma coordenação internacional por governos
responsabilizados por e para com seus povos.
Protestos
contra austeridade e empréstimos irresponsáveis no Sul
Global devem ser combinados com demandas por solidariedade e justiça no Norte Global. Exemplos incluem novas leis no Reino Unido e em Nova York que impediriam credores privados de usar os tribunais para exigir pagamento integral de países em default.2025
será um ano de jubileu, parte de
uma longa tradição de anistias periódicas de dívidas que levaram ao cancelamento de dívidas em larga escala após a campanha global do Jubileu em 2000. Vinte e cinco anos depois, precisamos de solidariedade
feminista internacionalista para impulsionar a onda de mobilizações da
sociedade civil que estão exigindo o cancelamento da dívida e um sistema de
dívida internacional justo.
Fonte:
Por Jerome Phelps e Sharda Ganga, com tradução de Pedro Silva, para
Jacobin Brasil
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