Medicamentos
contra diabetes e obesidade podem ajudar no combate ao alcoolismo
O
alcoolismo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma
doença crônica e progressiva que afeta o corpo e a mente. Segundo a OMS, 3
milhões de pessoas morrem, anualmente, em decorrência do uso nocivo do álcool.
No Brasil, apesar do abuso parecer regredir, a mortalidade tem crescido. Novos
estudos mostram que a pandemia da covid-19 agravou o problema, sugerem opções
de tratamento e revelam mecanismos genéticos associados à questão.
Um
trabalho realizado pela Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados
Unidos, e publicado na revista Annals of Internal Medicine, mostra que o
consumo de álcool aumentou consideravelmente durante a pandemia e persistiu por
um longo tempo. A pesquisa, que analisou dados de mais de 24 mil adultos
norte-americanos, indicou uma elevação de 20% no uso da substância durante o
pico da emergência sanitária.
Esse
aumento foi sustentado até 2022, com um crescimento contínuo no consumo de
álcool. A elevação foi observada em diversas faixas etárias e etnias. O grupo
mais afetado foi o de adultos entre 40 e 49 anos, que passaram a ingerir mais
bebidas alcoólicas.
Brian
Lee, hepatologista da Keck Medicine e principal pesquisador do estudo, frisou
que os números revelam um problema alarmante de saúde pública. O aumento no
consumo de álcool durante e após a pandemia pode ser atribuído a uma série de
fatores, como o estresse relacionado à crise sanitária, a interrupção das
rotinas cotidianas e o isolamento social. Ele enfatizou que as consequências do
abuso são mais graves para quem tem menos de 50 anos, indivíduos que estão mais
propensos a desenvolver complicações de saúde a longo prazo, como doenças do
fígado e problemas psiquiátricos.
• Situação nacional
Elaine
Keiko Fujisao, diretora médica da Neurogram, neurologista, neurofisiologista e
membro titular das academias brasileiras de Neurologia e Neurofisiologia
Clínica, destacou que o abuso de álcool prejudica a estrutura do cérebro e suas
funções. "Há uma diminuição da substância cinzenta, que é responsável
pelas funções cerebrais, podendo causar prejuízos às funções executivas,
memória e atenção. Além disso, prejuízos na coordenação motora são bem
conhecidos em alcoolistas pesados, sendo a atrofia cerebelar uma condição
frequentemente associada".
Conforme
Lucas Francisco Botequio Mella, diretor científico da Associação Brasileira de
Alzheimer, regional São Paulo, o uso contínuo e abusivo da substância também
está relacionado a danos permanentes nos neurônios, o que causa demências
alcoólicas. "Isso ocorre tanto pela ação direta do álcool sobre os
neurônios quanto por consequências indiretas do comportamento de abuso de
álcool. Essas consequências indiretas incluem doenças vasculares no sistema
nervoso, como microangiopatia e acidentes vasculares cerebrais."
Na
outra mão, estudos mostram avanços no tratamento do transtorno. Recentemente,
uma pesquisa da Universidade da Finlândia Oriental e do Instituto Karolinska,
na Suécia, revelou novas esperanças. O ensaio investigou os efeitos de
medicamentos usados contra diabetes e obesidade, como semaglutida e
liraglutida, sobre o transtorno do uso de álcool.
Os
resultados revelaram que essas drogas, conhecidas como agonistas do GLP-1,
foram associadas a uma redução significativa nas hospitalizações de pessoas
alcoólatras. A semaglutida diminuiu o risco em 36%, enquanto a liraglutida
mostrou uma eficácia de 28%.
De
acordo com Markku Lähteenvuo, as drogas além de reduzirem as hospitalizações
relacionadas ao abuso da substância, minimizaram as internações por outros
problemas relacionados ao uso de substâncias e até mesmo por doenças físicas
gerais. Essas descobertas sugerem que os agonistas do GLP-1 podem ter um papel
importante no tratamento do transtorno de uso de álcool, embora mais pesquisas
sejam necessárias para validar esses resultados em ensaios clínicos
randomizados.
Olivia
Pozzolo, psiquiatra e médica pesquisadora do Centro de Informações sobre Saúde
e Álcool (Cisa), afirmou que esses remédios parecem reduzir o consumo de álcool
ao modular os circuitos dopaminérgicos envolvidos na compulsão e no desejo.
"Além de já serem amplamente utilizados e aprovados no controle da
obesidade e diabetes, essa possível aplicação abre novas perspectivas para o
manejo integrado de condições metabólicas e psiquiátricas."
• Negros são as principais
vítimas
Recentemente,
o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) divulgou o 6º panorama
sobre álcool e saúde dos brasileiros. Conforme a publicação, a população negra
é a que mais perece em decorrência do uso de álcool no país, chegando a 10,4
mortes a cada 100 mil habitantes, uma taxa 30% maior em relação aos brancos.
Conforme
a edição, em 2023, houve 27 internações por 100 mil habitantes, metade do
observado em 2010. No entanto, apesar da diminuição nas hospitalizações, a
prevalência de óbitos aumentou de 3% para 6% no mesmo período. De acordo com os
resposáveis pela pesquisa, esse aumento pode estar relacionado ao número
crescente de internações de pessoas em quadros graves.
A
maioria dos pacientes hospitalizados em decorrência do uso de álcool no ano
passado era formada por homens com idades entre 35 e 54 anos, no entanto,
pessoas com 55 anos ou mais representaram 35% do total, um aumento de 13% em
relação a 2010. As principais causas de hospitalizações foram dependência e
doença hepática decorrente do alcoolismo, que, juntas, representaram mais da
metade dos casos registrados.
• Exagero e Alzheimer
Cientistas
do Scripps Research, um instituto de pesquisa norte-americano, descobriram que
o Alzheimer e o abuso de álcool estão ligados a padrões de expressão genética
modificados de forma semelhante no cérebro. Conforme a publicação, feita na
revista eNeuro, o achado apoia a teoria de que o uso de álcool pode agravar a
progressão da doença de Alzheimer. Segundo os cientistas, ao compreender essas
desregulações ao nível molecular, será possível entender melhor essas doenças e
identificar alvos terapêuticos no futuro.
• Atividades físicas como
tratamento
Atividade
física é um remédio melhor do que se pensava para pacientes com distúrbios de
abuso de álcool. É o que revela um estudo da Universidade Normal Liuhong Zang,
na China. A pesquisa, publicada na revista Plos One, mostrou que o exercício
não apenas reduz a dependência do álcool, mas ainda melhora a saúde mental e
física.
Após
uma revisão da literatura científica, os pesquisadores verificaram que os
resultados apontaram que as intervenções de exercícios têm um impacto positivo
significativo na redução do consumo de álcool e na melhoria da saúde mental dos
participantes dos estudos avaliados. Segundo os pesquisadores, a variação
cultural no contexto do vício também foi mencionada como um fator importante.
Conforme
João André Sampaio, psiquiatra pelo Hospital Albert Einstein, em São Paulo, a
prática de atividade física oferece diversos benefícios no tratamento e na
prevenção do alcoolismo, tanto do ponto de vista fisiológico quanto
psicossocial. "Pesquisas mostram que sessões curtas de exercícios
aeróbicos podem reduzir imediatamente o desejo de consumir álcool, além de
diminuir estados de humor negativo e ansiedade. Esses benefícios foram
observados tanto durante quanto após a prática do exercício, sugerindo que a
atividade física pode ajudar a regular emoções que frequentemente desencadeiam
recaídas em pessoas com distúrbios de alcoolismo".
Para
os cientistas, as descobertas sugerem que a incorporação de atividades físicas
pode ser uma estratégia eficaz no tratamento e na recuperação de pessoas com
dependência de álcool. No entanto, os autores recomendam mais estudos que
considerem diferentes contextos culturais e metodológicos para fortalecer ainda
mais as conclusões e ampliar a aplicabilidade desse tipo de intervenção.
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Palavra de especialista
"A
rede de cuidados tem um papel muito importante. Quero destacar a função dos
serviços de emergência, que frequentemente atendem pessoas com transtornos por
uso de bebidas alcoólicas em quadros agudos. Esses momentos são janelas de
oportunidade para encaminhá-las a um tratamento posterior. Coordeno um
ambulatório dentro do hospital de clínicas onde atendemos pessoas com
dependência de álcool. Há intervenções preventivas, que visam evitar que o uso
de álcool se instale durante a juventude. Um segundo grupo de medidas busca
impedir que o uso iniciado se torne problemático. Isso envolve uma série de
intervenções, incluindo a importância de informar à população sobre os danos
associados ao uso de álcool."-Renata Azevedo, coordenadora do Ambulatório
de Substâncias Psicoativas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Fonte:
Correio Braziliense
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