Antes da
II Guerra Mundial, o sionismo era uma ideologia irrelevante
Na
primavera de 1936, uma onda de violência antijudaica tomou conta da cidade
polonesa de Przytyk. Os judeus representavam 90% da população da cidade e
tendiam a dominar ocupações de manufatura e serviços, enquanto a maior parte
dos poloneses vivia e cultivava terras nas áreas rurais vizinhas.
Embora
a vasta maioria de judeus e poloneses fosse igualmente empobrecida, instigados
por nacionalistas de direita, alguns poloneses culparam os judeus pelas
barreiras estruturais à mobilidade econômica. Em 9 de março, o dia de mercado
semanal da cidade, esse racismo chegou ao ápice, resultando em um dos mais
notórios tumultos antissemitas da Polônia entre guerras.
Em
resposta à violência, o amado compositor iídiche Mordechai Gebirtig escreveu a
música “Es Brent” (“Está queimando”), que critica a comunidade judaica
por assistir, de braços cruzados, enquanto as chamas engolfavam sua cidade. A
música foi um chamado desesperado para a ação — e não passou batida. Após o
pogrom, a população judaica de Przytyk formou milícias armadas de autodefesa,
enquanto os partidos socialistas judeu e polonês uniram forças para convocar
uma greve geral nacional de um dia.
A
narrativa padrão e melancólica da história judaica frequentemente omite
resistências como essa em favor de retratar o povo judeu como vítimas passivas
de calamidades intermináveis e incontestáveis. É uma narrativa que
reforça o sionismo ao
minimizar a possibilidade de solidariedade entre judeus e não judeus e ao sugerir que o antissemitismo
só pode ser combatido
por um etno-Estado judeu.
The
Radical Jewish Tradition, o novo livro de Janey Stone e
Donny Gluckstein, desafia essa narrativa sombria. Stone e Gluckstein apresentam
histórias há muito ignoradas do envolvimento judaico em movimentos de massa
lutando pela libertação contra czares, chefões e fascistas. E talvez o mais
importante, The Radical Jewish Tradition demonstra que sempre
houve alternativas judaicas ao sionismo. De fato, embora seja difícil imaginar
hoje, antes da Segunda Guerra Mundial, o sionismo era uma pequena corrente
minoritária entre o povo judeu.
O Bund trabalhista
judaico
OJewish
Labor Bund é um dos exemplos mais importantes de organização política
judaica anti-sionista de antes da Segunda Guerra Mundial. Fundado em Vilnius no
outono de 1897, o Bund era o partido socialista mais popular entre os judeus no
Império Russo antes da Revolução de 1917, e liderava os maiores sindicatos
judaicos.
Durante
o final do século XIX e início do século XX, o Império Russo era extenso,
economicamente atrasado e diverso, com a vasta maioria de sua população
multiétnica e multilíngue vivendo fora dos centros urbanos. Graças às
restrições históricas sobre onde os judeus podiam viver e trabalhar, a
comunidade judaica da Rússia era uma das mais urbanizadas do império. Além
disso, os trabalhadores judeus estavam concentrados em ofícios que estavam
apenas começando a se industrializar, como curtimento, produção têxtil e
fabricação de calçados.
Na
virada do século, a Rússia também enfrentou uma série de crises políticas cada
vez mais severas, enquanto a monarquia Romanov ossificada lutava para
acompanhar o ritmo de uma economia em modernização, um movimento trabalhista
militante e movimentos emergentes de libertação nacional. Essas tensões fizeram
da Rússia um barril de pólvora para o antissemitismo, enquanto os czares
Alexandre III e Nicolau II tentavam deslocar a frustração popular para os
judeus. A propaganda czarista se baseou no preconceito antijudaico cristão para
retratar os judeus como capitalistas ricos responsáveis pela miséria econômica do mundo ou, alternativamente, como
socialistas que ameaçavam destruir a própria civilização.
“Criado
após a Segunda Guerra Mundial, o doikayt destacou a
necessidade de lutar ‘aqui’ — onde quer que os judeus vivam — contra a
exploração econômica e o racismo.”
Combinado
com pobreza e discriminação legal, a experiência de antissemitismo cotidiano
muitas vezes brutal empurrou a população judaica da Rússia em direção a três
amplas alternativas. Uma minoria fundou organizações prometendo uma vida melhor
em uma pátria exclusivamente judaica. A maioria, no entanto, emigrou para
países capitalistas desenvolvidos.
E
para aqueles que rejeitaram as duas primeiras respostas, o Bund ofereceu
um projeto político de esquerda radical que buscava acabar com o antissemitismo
transformando completamente a sociedade.
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contra o sionismo
Apolítica
do Bund pode ser resumida pelo termo doikayt (algo como “aqui
e agora”), derivado da palavra iídiche do (aqui). Cunhado após
a Segunda Guerra Mundial, doikayt destacou a necessidade de
lutar “aqui” — onde quer que os judeus estivessem — contra a exploração
econômica e o racismo. E para os bundistas, doikayt se opunha
a estratégias para acabar com o antissemitismo e a exploração que prometiam
libertação “lá”, ou seja, na Palestina, como a maioria dos sionistas propunha.
Os
sionistas, por outro lado, alegavam que o antissemitismo nunca seria derrotado
e argumentavam que, para viver livremente e em segurança, os judeus precisavam
de uma pátria exclusiva. Os bundistas rejeitaram isso como um pessimismo
separatista e argumentaram que era necessário combater o racismo e o
capitalismo ao mesmo tempo, unindo a classe trabalhadora e os povos oprimidos
em linhas nacionais, religiosas e étnicas. Ao contrário dos sionistas, os
bundistas entendiam que o destino do povo judeu na Rússia e na Polônia estava
ligado ao de toda a classe trabalhadora regional e de todas as minorias étnicas
nela existentes.
Refletindo
realidades legais, econômicas e linguísticas, o Bund era uma organização
judaica. No entanto, graças ao seu comprometimento com a solidariedade e a
unidade da classe trabalhadora, ele desempenhou um papel descomunal no
movimento trabalhista russo de maneira mais ampla. De fato, antes da Revolução
de 1905, o Bund era de longe a maior organização socialista do Império Russo,
reivindicando mais membros do que todos os pequenos círculos que então
compunham o movimento socialista combinados.
É
por isso que, em março de 1898 — apenas alguns meses após sua fundação — o Bund
sediou a primeira conferência do Partido Trabalhista Social-Democrata Russo
(POSDR), que mais tarde se dividiu nas facções conhecidas como bolchevique e
menchevique.
Os
membros do Bund desempenharam um papel descomunal na liderança original do
POSDR e também foram responsáveis por avanços teóricos significativos. Ob Agitatsii (Sobre a Agitação),
publicado em 1893, é um bom exemplo. Escrito por Arkady Kremer, um membro do
Bund, e Julius Martov, que mais tarde viria a liderar a ala menchevique do
POSDR, Ob Agitatsii teorizou a interação entre propaganda e
agitação. Como Kremer e Martov argumentaram, a propaganda dissemina
perspectivas amplamente socialistas para um público menor, enquanto a agitação
tenta ganhar um público de massa ao se concentrar em problemas concretos e
imediatos.
Importante
para a época, Ob Agitatsii argumentou que era necessário que
os socialistas no Império Russo deixassem de construir pequenos círculos de
intelectuais clandestinos e se aproximassem de um movimento de massa dos
trabalhadores — e isso significava uma mudança em direção à agitação.
·
Libertação nacional e solidariedade de
classe
Os
debates entre os bundistas também influenciaram as concepções marxistas de
solidariedade antirracista e libertação nacional.
Desde
o início, o Bund enfrentou uma contradição interna entre sua liderança e seu
público. Na época, 97% dos judeus no Império Russo eram falantes nativos de
iídiche, enquanto apenas 25% sabiam russo. O russo era, no entanto, a língua
franca intelectual e política para esquerdistas em toda a Rússia, e a liderança
do Bund era principalmente formada por intelectuais judeus assimilados falantes
de russo.
Em
vez de insistir em falar com seu público em uma língua que eles não conheciam,
os primeiros Bundistas estabeleceram uma imprensa revolucionária em língua
iídiche. E, de fato, essa iniciativa foi emblemática da abordagem geral do Bund
em relação à organização intercultural.
Por
exemplo, na indústria de curtumes, os
patrões deliberadamente dividiram judeus e não judeus em diferentes partes do
processo de produção para minar a solidariedade e encorajar diferentes grupos
culturais a se atacarem. Em resposta, o Bund publicou manifestos multilíngues que
ajudaram a unir trabalhadores de diferentes origens étnicas e linguísticas, ao
mesmo tempo em que honravam suas diferenças culturais.
Da
mesma forma, como parte do esforço para fazer agitação simultaneamente entre os
trabalhadores judeus e construir solidariedade entre judeus e não judeus, o
Bund desenvolveu sua própria forma de identidade judaica não sionista, que eles
chamaram de “autonomia cultural nacional”. Os bundistas viam esse programa
cultural — que incluía artes, esportes, educação e recreação em língua iídiche
— como um contrapeso proletário tanto ao tradicionalismo religioso quanto aos
emergentes movimentos culturais sionistas seculares.
“Os
bundistas viam esse programa cultural como um contrapeso proletário tanto ao
tradicionalismo religioso quanto aos emergentes movimentos culturais sionistas
seculares.”
Essa
abordagem ampla levantou muito debate — tanto entre judeus quanto entre
bundistas e seus camaradas não judeus — sobre a linha divisória entre o
nacionalismo sionista, que eles rejeitavam, e a concepção do Bund de uma
autonomia cultural nacional judaica progressista. Algumas dessas questões
chegaram ao auge no famoso congresso de 1903 do POSDR.
Inspirando-se
em uma perspectiva conhecida como “Austro-Marxismo”, desenvolvida pelo
social-democrata austríaco Otto Bauer, o Bund imaginou um movimento socialista
com estrutura federal, concedendo autonomia aos partidos socialistas entre as
várias minorias linguísticas e nacionais da Rússia. Como parte dessa visão, os
delegados do Bund argumentaram que sua organização deveria ser a única
representante dos trabalhadores judeus russos.
Outras
seções do RSDLP defenderam um partido único e unido abrangendo múltiplas
nacionalidades e línguas. Muitos apoiaram a educação em língua iídiche,
agitação, organização e atividades culturais. Mas, ao mesmo tempo, eles
insistiram em um partido organizado em todas as linhas nacionais. O Bund perdeu
a votação, após o que saiu do RSDLP. Três anos depois, no entanto, voltou.
A
maioria dos relatos simpáticos ao Bund criticam a votação como antissemita ou a
leem como um prenúncio da repressão de Joseph Stalin aos judeus. Isso é
equivocado. Em vez disso, o debate foi sobre a melhor maneira de organizar um
partido socialista em um grande império multinacional. O resultado não implicou
na rejeição do apelo do Bund pela autodeterminação judaica.
Os
oponentes da proposta do Bund argumentaram que ela limitaria os judeus — e
outras nacionalidades, incluindo os russos — a partidos únicos e definidos
nacionalmente. Longe de unir os trabalhadores, isso, eles sugeriram,
encorajaria o separatismo e minaria a solidariedade intercultural. Em vez de
separar os socialistas judeus e não judeus, os oponentes do Bund em 1903
argumentaram que precisava haver uma presença judaica em todas as partes do
POSDR, como parte de uma luta contínua contra o antissemitismo.
Essa
posição também refletia a realidade. Embora o Bund representasse a vasta
maioria dos socialistas judeus, o RSDLP também tinha membros judeus na maioria
de suas divisões regionais. Sob a proposta do Bund, esses membros do RSDLP
seriam confrontados com uma escolha: ou deixar suas organizações dentro do
RSDLP e se juntar ao Bund, ou efetivamente renunciar ao seu judaísmo para
permanecer em seus grupos políticos ou regionais escolhidos.
Os
membros do RSDLP que votaram contra a proposta do Bund estavam longe de
desconsiderar as preocupações de seus membros, e menos ainda eram motivados
pelo racismo. Os eleitores do “não” se opunham firmemente ao antissemitismo,
tanto legal quanto popular, e o viam como uma estratégia czarista para dividir
e envenenar o movimento mais amplo. No final das contas, eles acreditavam que
um partido unido tinha mais chance de combater o antissemitismo do que um
partido federado.
·
Sionismo trabalhista
Além
do Bundismo, The Radical Jewish Tradition analisa outra
corrente política judaica, o sionismo trabalhista. O sionismo trabalhista, como
o nome sugere, era amplamente congruente com o sionismo socialista, ou sionismo
de esquerda, e tentava combinar a política socialista e da classe trabalhadora
com o projeto de estabelecer um Estado judeu na Palestina.
A
organização sionista trabalhista original, Hashomer Hatzair, foi
formada em 1913 na Áustria-Hungria. Na véspera da Segunda Guerra Mundial, ela
reivindicava 26.000 membros em 300 filiais, enquanto suas seções internacionais
desfrutavam de algum apoio. No entanto, com uma associação predominantemente de
classe média e poucas incursões na classe trabalhadora judaica, o sionismo
trabalhista empalideceu em comparação com o Bund.
À
primeira vista, o sionismo trabalhista era uma corrente de esquerda. Muitos
sionistas trabalhistas escaparam do racismo e da pobreza na Europa, a fim de
estabelecer kibutzim — coletivos agrícolas — na Palestina. Os
sionistas trabalhistas também criaram a Histadrut, o sindicato
judeu no Mandato Britânico da Palestina, que era, na época, uma das federações
trabalhistas mais fortes do mundo. Entre os sionistas trabalhistas que
permaneceram na Europa, muitos se juntaram a movimentos de gueto e unidades
partidárias para lutar contra os nazistas, muitas vezes assumindo papéis de
liderança.
No
entanto, no anteparo para a Segunda Guerra Mundial, os sionistas trabalhistas
voltaram suas atenções exclusivamente para a Palestina, dedicando recursos
organizacionais para viagens de acampamento e aprendizado de como cultivar, em
preparação para sua ocupação de terras palestinas. Essa estratégia estava
frequentemente em contraposição direta à resistência ativa. Por exemplo, quando
os nazistas se reuniram no Madison Square Garden de Nova York em 1939, o Hashomer
Hatzair se recusou a a fazer um contra ato, afirmando que “Nossa
política sionista é não tomar parte em questões políticas fora da Palestina”.
Hoje,
a tradição trabalhista sionista mantém um apelo contínuo para os judeus progressistas que se opõem à ocupação e ao sionismo de extrema direita
que domina a política israelense contemporânea. Como sionistas, eles acreditam
que um Estado-nação é o único modelo para a autodeterminação judaica. Como
progressistas, eles esperam por um Israel mais liberal-democrático ou mesmo
social-democrata.
Como
Stone e Gluckstein argumentam, o registro histórico prova que essas aspirações
são mutuamente incompatíveis. Para entender o porquê, precisamos entender como
Israel evoluiu ao longo do tempo. Quando pensamos em assentamentos israelenses
hoje, o que vem em mente são colonos fanáticos e fundamentalistas judeus na
Cisjordânia. Embora os sionistas trabalhistas nunca tenham sido maioria,
os kibutzim que eles fundaram foram os primeiros assentamentos
a serem estabelecidos em terras palestinas. Embora muito mais seculares e
socialmente progressistas do que os colonos judeus de hoje, os sionistas
trabalhistas abriram o caminho ao expropriar grandes extensões de terras
palestinas.
“Os
sionistas trabalhistas lançaram as bases para a ocupação militar da Palestina.”
Os
sionistas trabalhistas também lançaram as bases para a ocupação militar da
Palestina. Eles estabeleceram a Haganah — uma organização
paramilitar que eventualmente se tornou as Forças de Defesa de Israel (IDF) —
para proteger os kibutzim. Em 1948, a Haganah liderou
as expulsões de palestinos antes de dominar a política israelense em suas três
primeiras décadas. Desde então, o sionismo trabalhista
desempenhou um papel descomunal no establishment militar de
Israel. Dos últimos dez chefes de gabinete das IDF, oito têm experiência em
partidos sionistas trabalhistas ou nos kibutzim.
Similarmente,
quando os sionistas trabalhistas fundaram a Histadrut, sua intenção
era segregar judeus e palestinos excluindo o trabalho árabe. Os membros pagavam
dois tipos de taxas; a primeira financiava piquetes contra empresas que
empregavam trabalhadores árabes, e a outra financiava boicotes de produtos
árabes.
Para
seu crédito, alguns sionistas trabalhistas se opuseram a essas políticas
racistas e defenderam a unidade entre as linhas nacionais. No entanto, desde o
início, o movimento como um todo foi crucial para tomar terras e estabelecer
o apartheid. Há, infelizmente, muita continuidade entre
a extrema direita sionista de hoje e seus antepassados sionistas trabalhistas.
·
O consenso sionista está se rompendo
Embora
o sionismo seja hegemônico entre os judeus israelenses, entre os judeus de
outros lugares, a guerra genocida de Israel em Gaza levou à maior ruptura com o
consenso sionista em uma geração. Um estudo Pew de 2024 descobriu
que 53% dos judeus estadunidenses com menos de trinta e cinco anos têm uma
visão desfavorável do governo israelense.
E à
medida que o número de judeus que se opõem ao sionismo cresce, é crucial que a
esquerda revisite histórias como as apresentadas por Stone e Gluckstein
em The Radical Jewish Tradition, tanto para minar a confusão
sionista que equipara Israel e os judeus, quanto para delinear uma tradição
judaica de esquerda.
Afinal,
durante o período entre guerras, embora os judeus na Polônia constituíssem
apenas 10% da população, eles constituíam 25% de todos os membros do sindicato.
Eles eram esmagadoramente bundistas, e enquanto os sindicatos sionistas
reivindicavam 12.000 membros em toda a Polônia, o Bund reivindicava 20.000
somente em Varsóvia.
O
mais importante era o seu compromisso com a solidariedade. Como Stone e
Gluckstein relatam, com a solidariedade dos socialistas poloneses, apenas dez
dias após o pogrom de Przytyk,
três
milhões e meio de judeus entraram em greve. Ao meio-dia, todas as lojas
judaicas fecharam, o povo judeu saiu da escola. As ruas da Polônia estavam
cheias de pessoas impetuosas, orgulhosas e prontas para a batalha.
Fonte:
Por Clare Lemlich, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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