segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Eliza Capai: “Se você aborta é porque não tem condições de seguir”

A documentarista Eliza Capai, assim como tantas mulheres, nunca pensou que faria um aborto. Mas em 2020, em meio à pandemia e à alegria dos primeiros meses de uma gravidez, ela obteve o diagnóstico de que o feto tinha uma má-formação que impossibilitava sua vida fora do útero. Vivendo naquele momento em Portugal, Eliza pôde interromper a gestação, e teve o devido acompanhamento médico no processo. No país europeu, o aborto voluntário é legalizado até a décima semana de gestação, e não tem limite de tempo em casos de interrupção médica por incompatibilidade com a vida.

Se estivesse no Brasil, a história de Eliza teria sido diferente. Aqui o aborto é permitido em casos de anencefalia, mas para outras más-formações, a interrupção da gestação depende de uma autorização jurídica, que avalia cada caso individualmente. Muitas vezes o  pedido é recusado, obrigando mulheres a levarem a gestação até o final, carregando por meses um feto cuja morte é iminente.

AzMina já fez uma reportagem sobre como em casos de malformações fetais gravíssimas, a interrupção da gravidez é um direito que preserva vidas.

O luto de Eliza, somado à sua indignação diante da crueldade à qual mulheres brasileiras estão expostas, deu origem a Incompatível com a vida, um documentário onde ela retrata a própria experiência, e relatos de outras mulheres que viveram histórias semelhantes. Um ano depois da estreia do filme, premiado no Brasil e exibido internacionalmente, Eliza lança o site incompatível.com.br, que reúne informações, canais de acolhimento, e um passo a passo para quem busca judicializar um pedido de aborto.

Eliza conversou com a AzMina sobre essa iniciativa, a repercussão do filme, e a necessidade de contarmos histórias sobre o aborto para combater os estigmas que rodeiam esse acontecimento tão comum, mas tão solitário, na vida das mulheres.

LEIA A ENTREVISTA:

•                        Em Incompatível com a vida vemos muitos registros da sua gestação e do aborto, mas também conhecemos a história de outras mulheres. O que te levou a unir a sua história com a delas?

Eliza Capai: Eu estava entediada na pandemia, com as filmagens canceladas, e me preparando para um projeto em que eu filmaria só mulheres grávidas, era um projeto sobre o amor. Me parecia a maior declaração de amor ao mundo, perpetuar a vida num mundo pandêmico, e especialmente no Brasil, que além da pandemia ainda tinha uma situação de ódio à vida pelo nosso governo. Começo a me filmar como exercício de pensar como eu filmaria as outras mulheres. E, ao mesmo tempo, eu estava grávida, eu estava feliz, e ninguém estava me vendo grávida. Era um jeito de eu me ver naquele momento.

Quando eu recebo o diagnóstico da incompatibilidade com a vida, eu entendo que aquela tristeza era uma tristeza que muitas outras pessoas sentem ao receber o diagnóstico. A gente é ensinada a só contar da gravidez no quarto mês, porque se perde muita gravidez até o terceiro. Tem um ensinamento que, se dar ruim na sua gravidez, esse é um assunto seu, fique com isso em silêncio. Mas aquela solidão, ela deixava a tristeza mais triste.

Por outro lado, eu comecei a sentir muita raiva de pensar a situação no Brasil. Eu tive sorte, porque eu tinha acabado de me mudar para Portugal, onde uma junta médica me aconselhou a interrupção da gestação. Eu ficava pensando como seria estar no Brasil naquele momento. E foram esses sentimentos de tristeza e de raiva que me impulsionaram a fazer o filme. Não pensei em linguagem, deixo a câmera no tripé, e de vez em quando aperto o rec.

Depois, quando apresentei esse material para um laboratório de filmes em desenvolvimento foi aconselhado não fazer esse filme, que ali não tinha história, que aquilo não era tema. E aí, naquele momento, eu tenho certeza que eu precisava conversar com outras mulheres para não ser um filme narcisista de uma diretora que quer exibir a sua dor, e sim sobre um problema social, que é uma questão que é comum a muitas e que o Estado faz com que a experiência fique ainda muito mais traumática e coletiva.

•                        Aqui n’AzMina temos uma seção em que leitoras mandam suas histórias de aborto, e que são publicadas sob anonimato. O aborto, ainda que seja uma experiência muito comum, é vivido em segredo. Como foi mostrar o seu próprio aborto?

Eliza:  Eu tinha um privilégio muito grande de poder falar sobre o meu aborto. Eu não cometi um crime. Boa parte das mulheres no Brasil não fala de seus abortos porque seria uma confissão de um crime. Essa é uma das crueldades da lei, porque ela não permite que a gente possa ser dona da nossa própria história. Nós elaboramos nossas questões através da fala, então, ser vetada de falar significa ser vetada de elaborar e curar. E, em geral, são abortos clandestinos, experiências traumáticas, de medo de perder a vida, de perder útero, de ser presa, e você não pode tratar esse trauma.

Por um lado, eu me senti na obrigação de falar, porque dizia respeito apenas a mim, e sim a um conjunto muito grande de pessoas. E eu podia falar porque eu estava fazendo uma interrupção legal da gravidez. Aí eu decido, que eu deveria ser a que mais me exporia, como uma forma de proteção às demais, já que eu tinha o controle da edição do filme.

•                        Foi difícil encontrar outras mulheres para falarem publicamente de aborto?

Eliza: A gente fez alguns caminhos de busca de personagens, via Defensoria Pública, via maternidade pública, e no final eu fiz um post no Instagram, que foi o primeiro momento em que falei pelo que eu tinha passado. Metade das personagens acabaram vindo a partir deste post. Eu senti naquele momento que existia uma necessidade muito grande de falar, de elaborar e dar algum sentido a um evento da vida que parecia não ter sentido. Quando a gente perde uma gravidez desejada, um filho desejado, isso não faz sentido. Para mim o filme foi uma criação do sentido, que a minha experiência de tristeza e solidão servisse para que outras mulheres se sentissem menos sozinhas e menos tristes.

E todas queriam falar. Pra elas, fez parte do processo de cura. E muitas delas tampouco tinham falado, assim como eu não tinha, com outras pessoas que tinham passado pela mesma situação. Então era uma troca ali entre nós, que foi catarse, e que a gente sabia que poderia ser catarse de outras mulheres.

•                        De onde que veio a ideia de fazer o site incompativel.com.br?

Eliza: Quando eu recebi o diagnóstico de que meu feto era incompatível com a vida, eu não sabia que no Brasil era possível judicializar o aborto nesses casos. A mulher que recebe esse diagnóstico pode falar que, assim como um feto anencéfalo, o próprio feto não vai sobreviver, e entrar com uma ação judicial [pedindo autorização para o aborto] que pode ser aceita ou negada. Outra coisa que eu descobri nesse processo foi que boa parte dos hospitais têm como protocolo entubar o bebê, que nasce mesmo sem nenhuma chance de sobreviver. Me parece um protocolo de muito sofrimento para o bebê e para a família, que não tem a chance de se despedir. Os breves momentos de vida daquele bebê são momentos de dor, de ser entubado, de ficar sozinho.

Tive vontade de criar um site que fosse um lugar de acolhimento para quem está passando por uma gestação de feto incompatível com a vida, para que se tenha informações do que se pode fazer, levar a gravidez adiante ou interromper, e se levar adiante, buscar por serviços paliativos. E se quiser judicializar, tem o passo a passo para essa judicialização. O filme tem esse legado emocional, mas é um tanto subjetivo. E o site tem uma objetividade, um pragmatismo que me reconforta, de saber que agora essa informação está lá. E espero que quem precise chegue nela.

•                        No seu caso, que estava em Portugal, você não teve que passar por essa judicialização. Consegue imaginar o que significa esse processo em meio ao luto de descobrir uma má-formação fetal?

Eliza: Eu fiquei duas semanas esperando a Junta Médica aprovar a interrupção, e essas duas semanas foram as mais próximas que eu já cheguei de enlouquecer. É muito estranho você ver a sua barriga crescendo e falar “eu estou gestando uma morte”. O que me deu força para fazer o filme tem a ver com isso, porque eu não consegui imaginar o que era naquele momento de dor tão aguda, essa sensação que te tira o chão, de ter que ir atrás de um processo judicial e burocrático. E com todas as incertezas dele, né?

A demora que se tem de se dar um laudo de incompatibilidade com a vida traz muito mais sofrimento para o casal, porque quanto mais avançado, mais complicado é o aborto. E mesmo depois de conseguir a aprovação do juiz, você talvez não consiga a maternidade para abortar. Em São Paulo, o hospital de referência em casos de gravidez avançada está proibido de fazer abortos, e com processos absolutamente injustos correndo contra as equipes médicas. Isso a gente está falando em São Paulo, então imagine nos interiores do Brasil.

•                        E sabemos que muitos juízes têm uma atuação antiaborto, que negam esses pedidos, independente da certeza de que o feto não vai sobreviver e do sofrimento que isso pode causar…

Eliza: Eu só consigo ver como misoginia. Eu já tentei dar outras explicações, mas isso é um lugar de ódio ao corpo feminino. A discussão sobre o aborto não é sobre a vida como os pró-vida colocam. Ela é sobre o ódio às mulheres, porque se fosse sobre a vida dos fetos, num caso de incompatibilidade com a vida, você quer fechar o laudo o mais rápido possível e fazer a interrupção para esse feto não sofrer.

Meu filho não sofreu. Não teve um segundo de dor, porque ele não tinha nenhum sistema nervoso formado para sentir dor. Para mim isso é pensar na vida do feto, na vida da pessoa. Esse debate evidencia que não é sobre o amor ao ser humano que está por vir, é sobre o ódio às mulheres que estão aqui.

•                        Antes de ter feito um aborto, você já estava envolvida na luta por justiça reprodutiva?

Eliza: Eu cresci com o depoimento da minha mãe de um aborto clandestino que ela fez depois de ter tido eu e minhas duas irmãs. Era muito terrível imaginar minha mãe naquela situação. Ela fala do medo que ela tinha de a polícia chegar e dela ser largada, sedada e sangrando ali naquela maca. Ela já tinha três filhas, tinha medo de não voltar para casa. Só fui ver estatísticas sobre o aborto décadas depois, mas a minha mãe é exatamente o perfil de quem aborta: mulheres que já têm filho, sem condições de criar outros filhos, boa parte delas religiosa.

Eu sempre tive certeza que nunca ia abortar. Como eu cresci escutando o depoimento da minha mãe, eu sempre tive uma preocupação muito grande com métodos anticoncepcionais. Só tirei o DIU quando eu tinha certeza que era o momento de engravidar.

Aí vem uma grande transformação, que é entender, em primeira pessoa, que nem sempre a gente tem controle da situação do aborto. Eu diria que nunca a gente tem controle, que nenhum aborto é desejado. Ninguém quer abortar. Se você aborta é porque você está numa situação que você não tem condições de seguir com aquilo. E eu aprendi sobre essa complexidade ainda maior que é, muitas mulheres que desejam os filhos têm que abortar também. E como essa falta de política pública é cruel em vários níveis. É uma crueldade do Estado.

 

Fonte: AzMina

 

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