Mulheres
quilombolas baianas enfrentam escalada de feminicídios
Tainara
Santos, 27 anos, está desaparecida desde 9 de outubro deste ano. Ela pertence à
comunidade quilombola de Acutinga Montego, no município baiano de Cachoeira. Se
as suspeitas se confirmarem, ela será mais uma vítima da escalada de
feminicídios nos quilombos. As últimas pesquisas da Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) mostram que a
média de mortes de mulheres nessas localidades mais que dobrou.
Todas
as 9 mulheres quilombolas assassinadas entre 2018 e 2022 foram vítimas de
feminicídio. Uma delas foi morta com o filho de 18 anos, que tentou defendê-la,
em Conceição das Crioulas (PE). Em cinco anos, o total de casos (nove) já
superou os 8 feminicídios registrados pela Conaq na década anterior (entre 2008
e 2017). Isso num universo de cerca de 650 mil mulheres quilombolas no Brasil.
E
não há sinais de reversão desse quadro.
Na Bahia, estado com maior população quilombola do país, até a
publicação desta matéria, houve um feminicídio confirmado e o desaparecimento
de Tainara Santos.
Tainara
estava com o ex-companheiro, George Anderson Santos, 43 anos, quando foi vista
pela última vez. Ele está preso preventivamente desde 15 de outubro, como
suspeito de feminicídio, mas nega ter matado a jovem quilombola ou saber o que
teria acontecido com ela.
RELACIONAMENTO
MARCADO POR VIOLÊNCIAS
A
relação de Tainara com George foi marcada por violências, segundo sua irmã
Itamara dos Santos. Após várias tentativas de romper com ele, ela finalmente
tinha conseguido. Alguns meses depois, quando a ex-companheira iniciava um novo
relacionamento, George levou a filha do casal para morar com ele, contra a
vontade da mãe. Itamara acredita que Tainara tenha ido encontrá-lo para tentar
ver a menina.
Algumas
semanas após o desaparecimento de Tainara, a criança foi morar com a avó
materna. Itamara conta que frequentemente vai à delegacia saber das
investigações e a resposta é sempre que corre em segredo de justiça. AzMina
buscou a Polícia Civil da Bahia, por meio da assessoria de imprensa, mas não
teve retorno até a publicação desta reportagem.
A
trancista Gleiciene dos Santos, 19 anos, da comunidade quilombola Coqueiros, em
Mirangaba (BA), foi encontrada morta por estrangulamento após sair para
encontrar o namorado em março deste ano. O suspeito, que era procurado pela
polícia, cometeu suicídio, dias depois.
O
último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que a violência contra a
mulher persiste em todo o país, com um crescimento de 0,8% em feminicídios e 7%
nas tentativas de assassinatos de mulheres, entre 2022 e 2023. O avanço
acelerado desse crime nas comunidades quilombolas, confirmado pelas médias
nacionais, mostra a urgência de um enfrentamento que considere as
características específicas das áreas remanescentes de quilombo.
IMPOSSIBILITADAS
DE DENUNCIAR
“Até
hoje existem comunidades sem energia elétrica. Como uma mulher de um território
dessa realidade vai entrar em contato com um órgão que fica na capital?”,
observa Micele Silva, integrante do Coletivo de Mulheres da Conaq e da
comunidade Igarapé Preto, que se espalha por três municípios do Pará. A
pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2018-2022) destaca que
muitas comunidades não têm sinal de celular, nem internet.
Mesmo
nas comunidades quilombolas urbanas, a realidade das mulheres é parecida. Um
exemplo é Rio dos Macacos, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador
(BA). É possível chegar de carro ao local, mas não há iluminação pública, nem
vias internas pavimentadas em toda a extensão demarcada (940 mil m2), onde
vivem cerca de 200 famílias quilombolas.
“É
tudo mato, os caminhos cheios de lama, se tentar entrar o carro atola, como uma
viatura vai chegar?”, questiona Rose Santos Silva, 46 anos. Para ela, há
soluções possíveis, mas falta vontade política.
“Eu
particularmente não penso em dar queixa (de violência), porque não funciona
como deveria e a vida da mulher fica mais em risco ainda”, revela, alegando que
os denunciados costumam reagir de forma raivosa. Quem ajuda as vítimas também
entra na mira dos agressores, como já aconteceu com ela, que foi ameaçada duas
vezes nessas situações.
ELAS
SE AFASTAM DOS SEUS
Sem
garantia de proteção, as mulheres acabam saindo de suas comunidades, obrigadas
a se afastar da família, das amigas e às vezes até dos filhos, porque não têm
como levá-los junto. Enquanto os agressores permanecem em casa, vivendo
normalmente sem serem incomodados.
“O
delegado disse ‘você vai escolher viver ou perder sua vida dentro da
comunidade, aconselho você a sair’”, conta Rose sobre o atendimento a uma das
vítimas que ela acompanhou. As comunidades quilombolas têm contexto social
específico, com uma vida efetivamente comunitária, onde há a ideia de família
estendida, e isso dificulta manter um distanciamento.
Selma
Dealdina Mbaye, integrante do Coletivo de Mulheres da Conaq, acrescenta que é
preciso lutar contra a cultura machista nas comunidades. “É comum as pessoas
acharem normal as mulheres serem agredidas pelos companheiros, como se fosse
uma questão cultural. Se a mulher não tem o apoio da família, como ela vai
denunciar um terceiro?”.
‘LIGUE
180’ NÃO ALCANÇA COMUNIDADES
Apenas
4% das ligações para o Ligue 180 são feitas de áreas rurais, conta Selma
Dealdina, que também é organizadora do livro “Mulheres Quilombolas –
Territórios de Existências Negras Femininas”. “É um número preocupante! Porque
o 180 é a maior ferramenta de denúncia da violência doméstica, e as mulheres do
campo, das águas e da floresta não conseguem acessar”.
A
maioria das 7.666 comunidades quilombolas fica em zonas rurais e, mesmo quando
estão em capitais e regiões metropolitanas, o acesso costuma ser difícil. Se
ter uma delegacia especializada no atendimento à mulher por perto é raro nas
grandes cidades, no interior é quase impossível. O Brasil tem 5.568 municípios
e apenas 500 delegacias especializadas no atendimento feminino.
Cerca
de 24% dos municípios brasileiros sequer tinham delegacia de polícia em suas
sedes, até 2023 (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE), aumentando o deslocamento necessário para registrar ocorrências, pois é
preciso ir a outra cidade.
Mesmo
nas comunidades com sinal de telefone, o histórico desestimula o acionamento da
Polícia Militar (PM) pelo 190. “As mulheres dizem que não vão ligar porque
sabem que a polícia só vai em caso de morte. Isso ocorre sempre, não só quando
a denúncia é de violência doméstica”, conta Joyce Souza. Ela é coordenadora dos
Projetos de Enfrentamento às Violências contra Mulheres Negras do Instituto
Odara, que atua na Bahia.
A
PM da Bahia informou, em nota, que “se faz presente em qualquer local onde seja
acionada, se tratando de algum risco, através do contato 190”. E orienta que
caso a demanda não seja atendida, a denúncia deve ser feita na Ouvidoria, com
anonimato garantido.
INSTRUMENTOS
DE PROTEÇÃO INSUFICIENTES
Ultrapassar
as barreiras para denunciar agressões e ameaças e mobilizar a rede de proteção
nem sempre basta para deter o agressor. Foi o que ocorreu com Elitânia de
Souza, liderança quilombola morta aos 25 anos, em novembro de 2019. Integrante da comunidade Tabuleiro da
Vitória, em Cachoeira (BA), ela foi assassinada pelo ex-namorado, Alexandre
Góes, após sair da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde cursava
Serviço Social.
Alexandre
foi a júri popular em julho deste ano, após cinco adiamentos, e recebeu a
sentença de 18 anos de prisão. A pena soma a condenação pelo feminicídio, com
qualificadoras de ter sido cometido em emboscada e sem chance de defesa da
vítima, agravado pelo descumprimento de medida protetiva.
Selma
Dealdina, da Conaq, lembra que a medida protetiva é exceção entre as mulheres
quilombolas, não só pela dificuldade de acesso, mas também pela dúvida da
efetividade da proteção. “Não estou dizendo que não funcione, porque, em alguns
casos, ela (a medida protetiva) tem salvado vidas, mas muitas vezes os homens
não respeitam”.
Como
o descumprimento de medida protetiva muitas vezes resulta na morte da vítima,
cada falha tem um impacto enorme no enfrentamento à violência, mas os números
confirmam a importância da ferramenta. Um levantamento do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal apontou que em 70% dos feminicídios registrados no primeiro
semestre de 2023 não havia denúncias prévias contra o autor.
SOBREVIVENTE
AJUDA OUTRAS MULHERES
Maria
Aparecida Félix Costa, 47 anos, conhece bem o ciclo da violência doméstica, o
controle disfarçado de cuidado, os abusos psicológicos e a escalada até a
agressão física. A força para sair do relacionamento veio da dor de perder a
filha. A bebê que ela gestava nasceu morta cerca de dois meses após o ex-marido
dar um murro em suas costas.
Maria
nasceu na comunidade quilombola Minério, mas reside na Ilha do Tanque, ambas no
município de Maraú (BA). Quando casou, aos 15 anos, ela não sabia reconhecer as
violências às quais foi submetida, mas hoje ajuda outras mulheres a
identificarem comportamentos abusivos. Após a ocorrência de um feminicídio na
sua comunidade, em 2018, ela e outras pescadoras criaram um coletivo para
auxiliar mulheres a romper ciclos de violência.
Hoje,
o trabalho iniciado por Maria tem o reforço do Instituto Odara, que mantém o
projeto “Quilomba – Pela vida das mulheres negras” desde 2022. “A gente busca o
fortalecimento comunitário e a discussão sobre a responsabilidade comunitária
no enfrentamento à violência doméstica e familiar”, conta Joyce Souza, do
Instituto. É nessa perspectiva que apresentam às mulheres a Lei Maria da Penha
e os demais instrumentos legais de proteção.
O
Odara atua em cerca de 70 comunidades quilombolas da Bahia e o foco nas redes
comunitárias não impede cobranças ao poder público. Uma sequência de audiências
públicas com gestores municipais começou em julho deste ano e já alcançou os
municípios de Seabra, Boninal, Bom Jesus da Lapa, Palma de Monte Alto e Riacho
de Santana.
INDEPENDÊNCIA
FINANCEIRA É FUNDAMENTAL
Fátima
Cleide Rodrigues, secretária Nacional de Articulação Institucional, Ações
Temáticas e Participação Política do Ministério das Mulheres, destaca o fórum
direcionado às mulheres quilombolas. Segundo conta, o fórum aborda acesso à
justiça e à saúde, autonomia econômica e “participação política como base de
acesso à cidadania das mulheres quilombolas”.
No
quesito geração de renda, ela destaca o projeto de construção de casas de
farinha móveis. Já o Ministério da Igualdade Racial (MIR) cita parcerias com as
pastas das Mulheres e dos Direitos Humanos para promover formação e educação
para a inclusão e empregabilidade.
O
fortalecimento da independência financeira das mulheres quilombolas é um dos
pontos fundamentais para o enfrentamento da violência doméstica, defende Micele
Silva, da Conaq. O outro é a titulação das terras, que oferece mais
estabilidade às iniciativas de geração de renda. Afinal as casas de farinha e
as atividades apoiadas pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar dependem da terra para serem efetivas. .
CONFLITO
POR TERRAS ALIMENTA TENSÃO
Conflitos
pela posse das terras são a causa principal de homicídios de quilombolas e sua
influência nos feminicídios é consenso entre as entrevistadas nesta reportagem.
Segundo Paula Balduino de Melo, diretora de Políticas para Quilombolas e
Ciganos do MIR, quase 60% das vítimas de feminicídio incluídas no relatório da
Conaq eram lideranças em suas comunidades.
A
liderança política de mulheres muitas vezes é mal recebida por seus
companheiros, que interpretam esse destaque como um desequilíbrio nos papéis de
gênero tradicionais. O desejo de reprimir a ascensão feminina nas comunidades
se reflete também nas formas de agressão. “Os casos de feminicídio envolvem
práticas muito violentas e cruéis com as mulheres quilombolas assassinadas”,
ressalta Paula.
Segundo
Paula, o Ministério “está empenhado em combater os conflitos fundiários a
partir do fortalecimento da política de titulação quilombola”, que integra o
Programa Aquilomba Brasil, lançado em 2023. No início de novembro deste ano, o
MIR divulgou que o programa entregou 32 títulos de terra em 15 territórios
quilombolas.
INICIATIVAS
DO GOVERNO FEDERAL
Diretora
de Proteção de Direitos da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência
contra Mulheres do Ministério das Mulheres, Pagu Rodrigues reconhece a
necessidade de contemplar as especificidades dessas mulheres. No entanto, as
ações ainda não refletem claramente esse olhar. Ela destacou a capacitação da
equipe do Ligue 180 para atender quilombolas, mas o acesso ao serviço tem
diversas barreiras, como as apontadas nesta reportagem.
Unidades
móveis para atender mulheres em situação de violência doméstica devem ser
entregues a partir de março de 2025, segundo Pagu. A proposta é adotar fluxos
específicos para comunidades de difícil acesso. Os locais prioritários para
iniciar a distribuição estão sendo definidos, mas a meta é que cada estado
brasileiro tenha pelo menos duas unidades. O funcionamento em barcos e lanchas
está incluído no projeto, para atender a região amazônica e o Pantanal.
Fonte:
AzMina
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