segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Luís César Marques Filho: COP29, a COP Zumbi

A Papua-Nova Guiné boicotou a COP29. Em vista das “promessas vazias e da inação”, preferiu adotar a “política da cadeira vazia”. Se a COP30 seguir o mesmo caminho de inação, que mais países sigam esse exemplo corajoso

A 29ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP29), realizada no arcabouço da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês) – assinada há mais de 30 anos –, oferece a enésima comprovação de que esse tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) visando à contenção da emergência climática é um cadáver insepulto. A COP29 foi uma COP Zumbi. Que esse tratado seja de há muito letra morta não é segredo para ninguém.

Já em 2021, quando da COP26 em Glasgow (Escócia), escrevi a respeito: “Salvo engano meu (e gostaria muito de estar enganado), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, nascida em 1992, está morta. Morreu em Madri, em 2019, e o enterro foi em Glasgow. A Missa de Sétimo Dia será no Egito, em 2022 (COP27), e a missa de um ano será oficiada nos Emirados Árabes Unidos, em 2023 (COP28), uma das capitais do petróleo. […] A COP28 será quase como um ritual macabro da vitória final dos combustíveis fósseis. Até lá, as emissões de gases de efeito estufa estarão bem acima dos níveis atingidos em 2019”.

Voltei ao tema em 2022, escrevendo sobre a COP27 um artigo intitulado “A Convenção-Quadro do Clima morreu. E agora?”. O artigo afirmava que o tratado não apenas morrera, mas que havia nascido morto, porque não levara em conta os prognósticos do Primeiro Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), de 1990.

Relembremos o que disse então o IPCC: “Baseado nos resultados dos modelos atuais, predizemos, no Cenário A do IPCC (Business-as-Usual) de emissões de gases de efeito estufa, uma taxa de aumento da temperatura média global durante o próximo século de cerca de 0,3 °C por década (com uma faixa de incerteza de 0,2 °C a 0,5 °C por década). […] Isso resultará em um provável aumento na temperatura média global de cerca de 1 °C acima do valor atual até 2025 e 3 oC antes do final do próximo século”.

Já em 1990, o IPCC previa, acertadamente: (i) A taxa de aquecimento por década sucessiva a 1990. De fato, o aquecimento médio global (terrestre e marítimo combinados) aumentou à taxa de 0,22oC por década entre 1991 e 2023 e 0,33oC por década entre 2011 e 2023. Além disso, entre 2011 e 2023, o aquecimento apenas oceânico aumentou à taxa gigantesca de 0,26oC por década e o aquecimento médio global apenas terrestre (atmosfera superficial) aumentou 0,5oC por década.

(ii) O aquecimento médio global deveria cruzar 1,5oC até 2025. Em 1990, o aquecimento médio global já era de cerca de 0,5oC. Portanto, a previsão de um aquecimento de cerca de 1oC até 2025 “acima do valor atual” realizou-se em 2024. De fato, em 15 dos últimos 16 meses a temperatura média ficou mais de 1,5oC acima da do período pré-industrial. Na mosca!

Os signatários da Convenção-Quadro ignoraram esse veredito. Resultado: em 2023, as emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) aumentaram 1,3% em relação a 2022, batendo o recorde de 57,1 bilhões de toneladas. E entre 2015 (Acordo de Paris, COP21) e 2024, as emissões de CO2 aumentaram 8%.

Assim, se as COP26, COP27 e COP28 já eram rituais póstumos do Acordo do Clima, a COP29 parece mesmo uma COP Zumbi, ou um revival da patafísica de Alfred Jarry, a “ciência das soluções imaginárias e das leis que regem as exceções”, que inspirou os surrealistas da geração de 1948. De resto, o presidente do Azerbaijão, Ilhan Aliyev, faz lembrar o Ubu Rei, protagonista da peça homônima (1896) de Jarry, ao repetir, na abertura da COP, que “o petróleo é um presente de Deus”. Mas há uma passagem nada surrealista, aliás bem realista, em seu discurso, que a imprensa europeia divulgou de modo mais discreto:

“Há dois anos, o Azerbaijão e a Comissão Europeia assinaram uma declaração de parceria estratégica no campo da energia. Isso não foi uma ideia nossa e sim da Comissão Europeia. […] Pediram nossa ajuda e a demos. […] Dois anos atrás, quando assinamos essa declaração, dois países europeus recebiam nosso gás. Hoje são oito. Oito dos dez países aos quais exportamos nosso gás são europeus. A Comissão Europeia também nos pediu para dobrar nossa oferta de gás para a Europa até 2027”.

O Azerbaijão é, sabidamente, o berço histórico do petróleo, mas sua produção é hoje marginal. Segundo o Worldometers, ele é o 24º maior produtor de petróleo do mundo, produzindo cerca de 850 mil barris de petróleo por dia (0,7% da produção mundial), menos da metade da produção da Noruega (2 milhões de barris/dia) e 17 vezes menos do que os EUA, o primeiro produtor mundial (quase 15 milhões de barris/dia). E, se ele continua hoje sendo um Petroestado, isso tem a ver com a crescente demanda de seus clientes europeus, que posam de líderes de uma fictícia transição energética.

•                        As COPs e o mundo real

Fictícia, sem dúvida. Em 2023, o artigo 23 do documento resultante da COP28, em Dubai (Emirados Árabes Unidos), sublinhava a necessidade de “transitar para fora dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação neste decênio crítico, de modo a atingir a meta de zero emissões líquidas até 2050, em acordo com a ciência”.

É grotesco que a primeira menção ao termo “combustíveis fósseis” ocorra mais de 30 anos após a assinatura da Convenção-Quadro sobre o clima. E é tanto mais grotesco porque nada de concreto substancia essa declaração da COP28. Nada é dito, sobretudo, sobre o fim dos subsídios governamentais à indústria dos combustíveis fósseis. Segundo Kristalina Georgieva, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2023 os governos gastaram cerca de US$ 1,3 trilhão em subsídios diretos aos combustíveis fósseis. Isso posto, acrescenta: “Se levarmos em conta os subsídios indiretos, o fato de não precificarmos o carbono e os impactos sanitários da poluição causada pelos combustíveis fósseis, estamos falando em um total de US$ 7 trilhões”.

Voltemos ao mundo real. Neste, os Estados Unidos de Donald Trump sairão novamente da convenção do clima. A deserção do segundo maior emissor de GEE do mundo é obviamente uma péssima notícia, mas seu impacto é mais psicológico do que efetivo, porque sua presença nas COPs sempre atrapalhou mais do que ajudou as negociações. A frase do ex-presidente George Bush (pai), no Rio de Janeiro em 1992, continua atualíssima: “O modo de vida dos EUA não está aberto a negociações. Ponto final” (“The American way of life is not up for negotiations. Period.”).

De resto, até finais de 2023, o atual presidente norte-americano, Joe Biden, aprovara quase 50% mais licenças de exploração de petróleo e gás em terras federais do que Trump em seus primeiros três anos de governo. O mundo real é também o que nos revela o último relatório da Global Oil & Gas Exit List (Gogel), que inclui 1.769 empresas, responsáveis por 95% da produção global de petróleo e gás. Em 2023, a produção de petróleo e gás atingiu um recorde histórico: 55,5 bilhões de barris de petróleo equivalente (bboe), ultrapassando, assim, o nível de produção pré-covid-19.

Em suma, o mundo real é este: malgrado 29 COPs, estamos transitando cada vez mais em direção aos combustíveis fósseis. A COP28, em Dubai, estabeleceu o compromisso de mobilizar (ridículos) US$ 702 milhões por ano para o “Fundo de Perdas e Danos” dos países mais pobres. Enquanto isso, as empresas de petróleo estão gastando uma média de US$ 61,1 bilhões em exploração anualmente.

Os dados mostram que 578 empresas pretendem explorar 239,3 bilhões de barris de petróleo equivalente (bboe) de novos recursos nos próximos um a sete anos. As sete empresas com os maiores planos de expansão de curto prazo são a Saudi Aramco (19,6 bboe), a QatarEnergy (17,8 bboe), a ADNOC (9,5 bboe), a ExxonMobil e a Gazprom (9,4 bboe cada), a TotalEnergies e a Petrobras (8 bboe cada). Quase dois terços dos planos de expansão de curto prazo dessa indústria ultrapassam o cenário da Agência Internacional de Energia para emissões líquidas zero até 2050.

Em uma conferência de energia em Houston, em março último, o CEO da Saudi Aramco, Amin Nasser, disse: “Devíamos abandonar a fantasia de descontinuar a produção de petróleo e gás” (“We should abandon the fantasy of phasing out oil and gas.”). Nasser referia-se à declaração da COP28, de resto, convenientemente “esquecida” no documento final da COP29, assim como no do G20.

•                        Os países ricos pagarão muito caro por sua desfaçatez

Uma ótima análise a respeito da situação climática atual foi proposta por José Eustáquio Diniz Alvez, com o título: “Meta de 1,5oC está mais morta do que uma porta”. O artigo tem por epígrafe uma frase pronunciada na abertura da COP29 por António Guterres, secretário-geral da ONU: “Este ano de 2024 tem sido uma aula magistral de destruição humana” (“This year has been a masterclass in human destruction.”).

De fato, a COP29 trouxe a novidade de destruir até as aparências. Ela foi a COP do dinheiro, da nova sopa de letrinhas, dessa vez NCQG (New Collective Quantified Goal), ou Novo Objetivo Coletivo Quantificado. Tratava-se de uma nova quantificação da transferência de recursos dos países ricos para os países pobres, de modo a aumentar as chances de viabilizar a descarbonização de suas economias. Nesse sentido, a COP29 foi a da desfaçatez dos países ricos e a do enfrentamento mais explícito entre Norte e Sul, de modo que, ao final, faltaram os aplausos mútuos, com seus habituais abraços e tapinhas nas costas.

Os países pobres, com razão, consideraram a proposta prevalecente dos países ricos “um insulto” e uma “flagrante violação da justiça climática”. Após a batida final de martelo e a ovação de alívio, Chandni Raina, representante da Índia, exclamou: “A Índia não aceita essa proposta em sua forma atual. Esse documento é uma ilusão de ótica”. Foi aclamada pelos representantes de Cuba, da Bolívia e da Nigéria. Não por acaso, Marina Silva declarou que “a COP29 foi uma experiência dolorosa”.

Como observado por Claudio Angelo, do Observatório do Clima, os países ricos “claramente chegaram para se livrar de suas obrigações”. E dado que os ridículos US$ 300 bilhões anuais até 2035, finalmente acordados, virão em grande parte na forma de empréstimos, ele bem lembrou que “ter financiamento climático como o texto atual propõe só vai aprisionar ainda mais esses países,” já atolados em dívidas. Para começo de jogo, os países ricos deveriam simplesmente cancelá-las.

O balanço da COP29 feito por Ali Mohamed, enviado especial do Quênia e porta-voz do Grupo África, não poderia ser mais claro: a proposta final foi “fraca demais, demasiado tardia e ambígua. […] Quando a África perde, o mundo perde”. Sim, o mundo todo perde, e não por último os países ricos. Alissa Kleinnijenhuis lembra, com razão, que quando se fala em transferência de recursos, “a escala é o nome do jogo”. Ora, os países ricos não entenderam o que está em jogo: “Pagar agora os países pobres para ajudá-los a se descarbonizar ou enfrentar uma escalada de prejuízos climáticos em casa”.

O impacto das emissões de GEE, e portanto, do aquecimento é sentido globalmente. Assim, o aumento dessas emissões de parte dos países pobres já está sendo sentido ao norte do Mediterrâneo (Valência que o diga) e será sentido cada vez mais. A Europa é o continente que mais rapidamente se aquece desde 1980. Em 2022, o aquecimento médio anual já aí atingira 2,3 ± 0,2 °C em relação a 1850-1900 (Copernicus/OMM, quase o dobro, portanto, do aquecimento médio global naquela data.

Não custa relembrar o European Environmental Report de 2024: “A Europa é o continente que mais rapidamente se aquece no mundo. O calor extremo, outrora relativamente raro, está se tornando mais frequente à medida que os padrões de precipitação mudam. Chuvas torrenciais e outros extremos estão se agravando e, nos últimos anos, registraram-se inundações catastróficas em várias regiões. Ao mesmo tempo, o sul da Europa deve sofrer diminuições consideráveis de precipitação e secas mais graves. Tais eventos, combinados com fatores de risco ambiental e social, impõem grandes desafios em toda a Europa”.

Kleinnijenhuis lembra também que o compromisso anterior de transferir US$ 100 bilhões por ano até 2020 só foi alcançado em 2022 e, mais importante, “apenas US$ 25 bilhões na forma de investimentos sem obrigação de pagamento. O resto foi sobretudo providenciado por financiamentos privados e empréstimos”. Os juros bancários dos bancos dos países ricos são a alma do negócio do clima…

•                        A COP30 será capaz de ressuscitar a Convenção-Quadro?

A Papua-Nova Guiné boicotou a COP29. Em vista das “promessas vazias e da inação”, preferiu adotar a “política da cadeira vazia”. Justin Tckatchenko, ministro das Relações Exteriores do país, descreveu-a como “uma total perda de tempo”:

“As últimas três COPs andaram em círculos, não produzindo resultados tangíveis para os pequenos Estados insulares. A COP29 não será diferente. Então a Papua-Nova Guiné não participará no nível político. A comunidade internacional demonstrou total falta de respeito por países como o nosso, que desempenham um papel crucial na mitigação das mudanças climáticas. Estamos cansados de ser marginalizados. As promessas feitas pelos principais poluidores não passam de conversa fiada. Elas impõem barreiras impossíveis para que tenhamos acesso aos fundos cruciais de que precisamos para proteger nosso povo”.

Finalmente um país teve a coragem de dizer que o rei está nu. Nesse jogo de cartas marcadas, todos fingem negociar o que já foi decidido antes e prometem o que não cumprirão. Por que cumpririam, se não há governança global capaz de impor sanções aos transgressores? Peter Wadhams, especialista do Ártico, reforça essa percepção: “O governo [britânico] pode afirmar seu compromisso de que em 30 anos reduzirá nossas emissões de CO2 em 80%. Ele pode citar o número que quiser nesse compromisso, porque não tem intenção de cumpri-lo”.

Em 2015 (COP21), o Brasil assumiu o compromisso de diminuir suas emissões de GEE até 2030 em 37% em relação a 2005.

Em 2021, as emissões aumentaram 12,2% em relação a 2020 e em 2022 aumentaram ainda mais. Em 2023, elas começaram a diminuir, mas estão ainda acima das de 2007 (e observe-se que a contabilidade das emissões brasileiras não leva em conta as emissões de metano das hidrelétricas e tampouco, salvo engano meu, as emissões liberadas pelos incêndios). Na COP28, a Colômbia subscreveu o Tratado de Não-Proliferação de Combustíveis Fósseis, enquanto o Brasil preferiu aceitar o convite para aderir à versão expandida da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP+) e levou por isso, merecidamente, o prêmio Fóssil do Dia, conferido desde 1999 pela Climate Action Network (CAN). E, como se não bastasse esse vexame, em 13 de dezembro de 2023, no dia seguinte ao término da COP28, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) promoveu o obsceno “Leilão do Fim do Mundo”.

Há razões para acreditar que a COP30 representará a miraculosa ressurreição da Convenção-Quadro do Clima? Se esse milagre não acontecer, se a COP30 continuar sequestrada pelo petróleo e pelo agronegócio, se os lobbies do Big Oil e do Big Ag continuarem a sentar à mesa das negociações, o mais provável (e desejável) é que mais países sigam o exemplo corajoso da Papua-Nova Guiné. Veremos…

 

Fonte: Jornal da Unicamp

 

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