quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Famílias que teriam origem escravocrata mantêm poder há 200 anos

Pelo menos seis autoridades que constam no levantamento da Agência Pública sobre descendentes de escravizadores na época dos períodos colonial e imperial brasileiros são integrantes de clãs familiares que, ainda hoje, controlam e influenciam politicamente suas regiões.

A governadora Raquel Lyra (PSDB-PE) e os senadores Cid Gomes (PSB-CE), Ciro Nogueira (PP-PI), Efraim Filho (União Brasil-PB), Tereza Cristina (PP-MS) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) vêm de famílias antigas com representantes na política local e nacional.

Nos baseamos em registros em cartórios, jornais e pesquisas acadêmicas que mostram que alguns dos antepassados de políticos de agora teriam sido proprietários de pessoas escravizadas – o que colaborou para o aumento de seus patrimônios.

Estas são as suas histórias.

Um dos episódios mais sombrios da história da escravidão brasileira, na visão do escritor Laurentino Gomes, que escreveu a trilogia Escravidão, teve lugar em uma fazenda de Remígio, cidade da região de Campina Grande, na Paraíba. Quem passa por ali, em meio aos pacatos campos típicos do semiárido, provavelmente não desconfia que as ruínas de mais de 200 anos hoje abertas a visitação abrigaram um sistema de reprodução sistemática de pessoas escravizadas para venda – como se fossem animais.

O dono da propriedade e responsável pelo comércio de pessoas é um antepassado de uma das famílias mais poderosas do estado, a Vital do Rêgo.

A história começa no início do século 19, quando o português Francisco Jorge Torres aportou no Brasil e deu início ao negócio de produção e venda de pessoas. Além da fazenda, ele construiu um casarão no centro de Areia, cidade vizinha, onde teria mantido uma senzala quase maior que a casa principal. Dos 19 quartos, 12 seriam de escravizados.

As mulheres escravizadas que moravam na propriedade eram obrigadas a dormir com alguns homens escravizados que eram “reprodutores escolhidos a dedo”, segundo o historiador Raimundo Melo em entrevista ao Bom Dia Paraíba. Elas ficavam grávidas e, quando estavam prestes a parir, eram levadas para a fazenda, onde havia a chamada “maternidade das negras”.

Lá, outras escravizadas mais velhas ajudavam no parto e nos cuidados com o bebê. As mães podiam ficar com os filhos apenas nos primeiros dias, depois eram levadas de volta para a cidade, onde tornavam a engravidar. Os bebês eram cuidados “para que crescessem fortes e depois fossem vendidos no comércio local”, continua Melo. Torres teria comercializado pelo menos uma centena de escravizados.

“Pelas leis da escravidão, cabia ao senhor o controle da reprodução física dos cativos, cujos filhos não lhes pertenciam. A própria sexualidade, portanto, estava sob domínio senhorial. Há notícias de recém-nascidos arrematados em leilões ou oferecidos em anúncios de jornais. No Brasil há pouca documentação sobre reprodução de escravos para venda, ao contrário dos Estados Unidos, onde essa prática é bem documentada”, disse o escritor Laurentino Gomes em um vídeo gravado quando estava visitando a fazenda em Remígio.

A pesquisadora Eleonora Félix encontrou alguns registros de cartório de transações relacionadas aos escravizados de Torres. Há a anotação da venda de um homem de 23 anos: “João, solteiro, foi vendido por Francisco Jorge Torres pelo preço de 620S000”. Isso daria aproximadamente R$ 91 mil em valores de hoje, de acordo com a conta utilizada por Laurentino Gomes no livro 1822, que considerou que uma libra esterlina valia cerca de 5 mil-réis.

O comerciante registrou também que “dera carta de liberdade à sua escrava Maria Angola”, em 1855, em “observância aos seus bons serviços”, mas com a condição de permanecer com ele enquanto ele vivesse. Com isso, Maria Angola ficou livre apenas um ano e meio depois, quando já tinha 50 anos de idade.

Em uma das salas do casarão de Torres em Areia, que hoje é aberto ao público, há uma homenagem com o nome das 18 pessoas escravizadas de Maria Franca Torres, filha do patriarca, que constavam em seu inventário, registrado em 1871. Os escravizados tinham entre 1 e 54 anos de idade. Seis eram crianças com menos de 10 anos.

O casarão exibe a reprodução de bilhetes de rifa cujo prêmio era a compra da alforria de escravizados. Pois Areia, apesar de abrigar o horror da “produção de escravos”, também foi uma das primeiras cidades brasileiras a ter um forte movimento abolicionista – tanto que libertou seus escravizados dias antes da promulgação da Lei Áurea, de 1888.

Torres foi o primeiro do ramo familiar que há séculos é um dos mais influentes da Paraíba. Ele é o quinto avô do hoje senador Veneziano Vital do Rêgo. Veneziano, por sua vez, é filho da ex-senadora Nilda Gondim e do ex-deputado Antônio Vital do Rêgo, irmão do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo Filho, neto do ex-governador Pedro Gondim e sobrinho-neto do ex-governador, ex-deputado federal e ex-senador Argemiro de Figueiredo.

O senador Cid Gomes e seu irmão Ciro Gomes, ex-ministro, ex-deputado e ex-presidenciável por quatro vezes, têm um histórico antigo com a cidade de Sobral, no Ceará – que hoje é presidida por outro irmão deles, Ivo Gomes.

Os três são filhos de José Euclides Ferreira Gomes Júnior, que foi prefeito de Sobral, e bisnetos de José Ferreira Gomes, o segundo prefeito do município. Ele, por sua vez, é irmão de Vicente Ferreira Gomes, o primeiro prefeito de Sobral. José Euclides Ferreira Gomes, o avô, foi deputado estadual.

A família também tem um histórico que estaria ligado à posse de escravizados. Há um registro em cartório do batizado de uma menininha que seria filha de uma escravizada de Cesário Ferreira Gomes, trisavô de Cid e Ciro. Além disso, um anúncio de jornal de 1854 fala sobre a fuga de um escravizado de Diogo Gomes Parente, outro trisavô.

“Ao abaixo assignado fugió de Sobral, um escravo mulato, de nome Delmiro, com os signaes seguintes: idade de 22 annos, estatura baixa, cheio de corpo, cabello crespo arruivascado, olhos grandes, sobrancelhas fechadas, nariz grosso e um tanto arrebitado, bocca regular, faltão-lhe dois dentes na frente, pouca barba, rosto redondo, pouco cabello no peito, pés grandes, tem uma pequena cicatriz no nariz, em um lado da cabeça tem uma grande brecha que o cabelo cobre, e várias cicatrizes nas costes”, diz o anúncio.

Raquel Lyra é filha de João Lyra Neto, ex-governador de Pernambuco – ele foi vice de Eduardo Campos e assumiu quando este se licenciou para concorrer à Presidência – e ex-prefeito de Caruaru. O avô também foi prefeito de Caruaru. O tio Fernando Lyra foi ministro da Justiça.

O poder da família é antigo: o capitão Manoel Monteiro Paes da Rocha Lira, sexto avô de Raquel, recebeu uma sesmaria (terra inexplorada para ser colonizada) da coroa portuguesa em 1816, na região de Recife. Desde então, seus descendentes são influentes na região.

José Soares da Silva Lyra, trisavô de Raquel, é descrito como escravista no livro História da Lagoa dos Gatos, do historiador João Pereira Callado. O autor cita que ele seria “dono de uma porção dessa desgraçada gente”, em referência aos escravizados. “Era daqueles bons senhores estimados. Depois da alforria, ficaram todos seus cativos consigo, numa honrosa demonstração de bom caráter”, continua o texto.

Em outro trecho do livro, o historiador diz que o quinto avô de Raquel, José Paes de Lira, foi “ajudado ainda pelo braço de seus numerosos cativos” na venda de algodão produzido em sua propriedade.

O pesquisador José Eduardo da Silva levantou que Paes de Lira seria dono de 23 pessoas, de acordo com o inventário deixado por ele em 1844 em Garanhuns. Os escravizados correspondiam a 34% do seu patrimônio, ainda segundo o estudo.

A senadora e ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias vem de uma longa linhagem de políticos mato-grossenses. Um de seus avôs foi duas vezes senador e duas vezes governador. Seu bisavô também foi governador duas vezes. E seu tataravô foi Quintino Bocaiuva, primeiro ministro das Relações Exteriores e da Agricultura da República.

Quintino Bocaiuva foi um dos mais importantes abolicionistas da história do Brasil. Ele defendia a causa em seu jornal, O Paiz, junto com Joaquim Nabuco, uma das principais vozes contra a escravidão.

Já o quinto avô de Tereza Cristina, Francisco Corrêa da Costa,  foi descrito como “um médio proprietário de escravos” em um estudo de Maria Amélia Alves Crivelente, mestre em história pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Corrêa da Costa foi presidente da província de Mato Grosso, deputado estadual e dono de engenho. Em outro estudo, a mesma autora cita que seu filho Antonio assumiu o engenho do pai e adquiriu outros, multiplicando o patrimônio da família e também teria posse de dezenas de escravos.

“Com perspicácia, audácia e experiência na convivência com o pai, em 1855 seus bens somavam considerável patrimônio em sesmarias onde cultivava milho, arroz e feijão, além do engenho de açúcar e aguardente, tinha ainda 8.000 cabeças de gado, bestas, cavalos, 10 casas em Cuiabá e 194 escravos, sendo 81 deles africanos”, cita a pesquisadora.

O avô paterno do senador Ciro Nogueira (PP-PI) foi prefeito de Pedro II, o pai foi deputado federal duas vezes e um tio também foi deputado federal. Nogueira foi casado com a ex-deputada federal Iracema Portella (PP-PI). A história deles está intrinsecamente ligada à política do Piauí há mais de 300 anos.

Quinto avô de Nogueira, o tenente-coronel Antonio Sousa Mendes embarcou em um navio saindo do Rio de Janeiro em 7 de maio de 1853 junto com dois escravos, Antonio e Raimundo, de acordo com registro no jornal O Constitucional. Sousa Mendes participou como militar da guerra da independência e da repressão à Balaiada, revolta da população pobre do Maranhão.

Um dos filhos de Sousa Mendes foi Simplício Mendes, que foi presidente da província do Piauí quatro vezes e nomeou a cidade de mesmo nome. Outro filho foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O filho de Simplício, Álvaro de Assis Osório Mendes, foi senador e governador do Piauí.

A família é descendente de Valério Correia Rodrigues, português que foi um dos primeiros povoadores do Piauí, em meados do século 18. Rodrigues colecionou dezenas de fazendas e teria sido dono de vários escravos, como constataram pesquisadores da Associação dos Descendentes de Valério Coelho, que montaram uma árvore genealógica desde o patriarca.

“Foram encontrados vários assentos de batismos de familiares e escravos de Valério Coelho”, diz o site que compila a pesquisa genealógica do patriarca. De acordo com os registros, Coelho batizava os filhos de suas escravizadas. “Aos dezasete de dezembro de mil e sete centos e setenta e quatro na fazenda do Paulista Baptizei solemne mente e pus os santos oleos a Ignacia filha de digo Baptizei e et cetra a Luiza filha de Quiteria preta solteira de Nascam Angolla Escrava de Vallerio Coelho Rodrigues morador na dita fazenda”, diz um deles.

Ciro Nogueira não aparece como descendente direto de Valério Coelho nos registros oficiais porque tudo indica que seu bisavô, Pedro da Silva Mendes, não foi um filho legítimo do trisavô Álvaro de Assis Osório Mendes. O seu registro de falecimento, inclusive, diz que sua mãe era Luiza de França Vilarinho, “doméstica”.

O senador fez parte da Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo em 2010. Três anos antes, ele foi um dos parlamentares que votaram para aprovar uma regra que dificultava o combate ao trabalho escravo – ela estipulava que auditores fiscais do trabalho não poderiam apontar vínculo empregatício entre patrões e funcionários quando constatassem irregularidades.

Filho do ex-senador paraibano Efraim Morais e neto dos ex-deputados estaduais João Feitosa e Inácio Bento de Morais, o senador Efraim Filho já reconheceu que “ter sobrenome conhecido na política ajuda a abrir portas”.

Seu tataravô, Manoel de Araújo Pereira II, aparece em uma relação de senhores de escravos em Santa Luzia do Sabugy, antigo nome de Santa Luzia, na Paraíba, no período de 1858 a 1888, de acordo com a dissertação de Joselito Eulâmpio da Nóbrega, “Comunidade Talhado – um grupo étnico de remanescência quilombola: um identidade construída de fora?”, sobre a comunidade com remanescentes de quilombolas dessa cidade. O registro não cita o número de escravizados que ele teria tido.

A reportagem procurou os políticos citados para esclarecer os achados de suas genealogias, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores, mas não recebemos respostas até a publicação.

 

Fonte: Por Amanda Audi, da Agência Pública

 

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