Famílias
que teriam origem escravocrata mantêm poder há 200 anos
Pelo
menos seis autoridades que constam no levantamento da Agência Pública sobre
descendentes de escravizadores na época dos períodos colonial e imperial
brasileiros são integrantes de clãs familiares que, ainda hoje, controlam e
influenciam politicamente suas regiões.
A
governadora Raquel Lyra (PSDB-PE) e os senadores Cid Gomes (PSB-CE), Ciro
Nogueira (PP-PI), Efraim Filho (União Brasil-PB), Tereza Cristina (PP-MS) e
Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) vêm de famílias antigas com representantes na
política local e nacional.
Nos
baseamos em registros em cartórios, jornais e pesquisas acadêmicas que mostram
que alguns dos antepassados de políticos de agora teriam sido proprietários de
pessoas escravizadas – o que colaborou para o aumento de seus patrimônios.
Estas
são as suas histórias.
Um
dos episódios mais sombrios da história da escravidão brasileira, na visão do
escritor Laurentino Gomes, que escreveu a trilogia Escravidão, teve lugar em
uma fazenda de Remígio, cidade da região de Campina Grande, na Paraíba. Quem
passa por ali, em meio aos pacatos campos típicos do semiárido, provavelmente
não desconfia que as ruínas de mais de 200 anos hoje abertas a visitação
abrigaram um sistema de reprodução sistemática de pessoas escravizadas para
venda – como se fossem animais.
O
dono da propriedade e responsável pelo comércio de pessoas é um antepassado de
uma das famílias mais poderosas do estado, a Vital do Rêgo.
A
história começa no início do século 19, quando o português Francisco Jorge
Torres aportou no Brasil e deu início ao negócio de produção e venda de
pessoas. Além da fazenda, ele construiu um casarão no centro de Areia, cidade
vizinha, onde teria mantido uma senzala quase maior que a casa principal. Dos
19 quartos, 12 seriam de escravizados.
As
mulheres escravizadas que moravam na propriedade eram obrigadas a dormir com
alguns homens escravizados que eram “reprodutores escolhidos a dedo”, segundo o
historiador Raimundo Melo em entrevista ao Bom Dia Paraíba. Elas ficavam
grávidas e, quando estavam prestes a parir, eram levadas para a fazenda, onde
havia a chamada “maternidade das negras”.
Lá,
outras escravizadas mais velhas ajudavam no parto e nos cuidados com o bebê. As
mães podiam ficar com os filhos apenas nos primeiros dias, depois eram levadas
de volta para a cidade, onde tornavam a engravidar. Os bebês eram cuidados
“para que crescessem fortes e depois fossem vendidos no comércio local”,
continua Melo. Torres teria comercializado pelo menos uma centena de
escravizados.
“Pelas
leis da escravidão, cabia ao senhor o controle da reprodução física dos
cativos, cujos filhos não lhes pertenciam. A própria sexualidade, portanto,
estava sob domínio senhorial. Há notícias de recém-nascidos arrematados em
leilões ou oferecidos em anúncios de jornais. No Brasil há pouca documentação
sobre reprodução de escravos para venda, ao contrário dos Estados Unidos, onde
essa prática é bem documentada”, disse o escritor Laurentino Gomes em um vídeo
gravado quando estava visitando a fazenda em Remígio.
A
pesquisadora Eleonora Félix encontrou alguns registros de cartório de
transações relacionadas aos escravizados de Torres. Há a anotação da venda de
um homem de 23 anos: “João, solteiro, foi vendido por Francisco Jorge Torres
pelo preço de 620S000”. Isso daria aproximadamente R$ 91 mil em valores de
hoje, de acordo com a conta utilizada por Laurentino Gomes no livro 1822, que
considerou que uma libra esterlina valia cerca de 5 mil-réis.
O
comerciante registrou também que “dera carta de liberdade à sua escrava Maria
Angola”, em 1855, em “observância aos seus bons serviços”, mas com a condição
de permanecer com ele enquanto ele vivesse. Com isso, Maria Angola ficou livre
apenas um ano e meio depois, quando já tinha 50 anos de idade.
Em
uma das salas do casarão de Torres em Areia, que hoje é aberto ao público, há
uma homenagem com o nome das 18 pessoas escravizadas de Maria Franca Torres,
filha do patriarca, que constavam em seu inventário, registrado em 1871. Os
escravizados tinham entre 1 e 54 anos de idade. Seis eram crianças com menos de
10 anos.
O
casarão exibe a reprodução de bilhetes de rifa cujo prêmio era a compra da
alforria de escravizados. Pois Areia, apesar de abrigar o horror da “produção
de escravos”, também foi uma das primeiras cidades brasileiras a ter um forte
movimento abolicionista – tanto que libertou seus escravizados dias antes da
promulgação da Lei Áurea, de 1888.
Torres
foi o primeiro do ramo familiar que há séculos é um dos mais influentes da
Paraíba. Ele é o quinto avô do hoje senador Veneziano Vital do Rêgo. Veneziano,
por sua vez, é filho da ex-senadora Nilda Gondim e do ex-deputado Antônio Vital
do Rêgo, irmão do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo
Filho, neto do ex-governador Pedro Gondim e sobrinho-neto do ex-governador,
ex-deputado federal e ex-senador Argemiro de Figueiredo.
O
senador Cid Gomes e seu irmão Ciro Gomes, ex-ministro, ex-deputado e
ex-presidenciável por quatro vezes, têm um histórico antigo com a cidade de
Sobral, no Ceará – que hoje é presidida por outro irmão deles, Ivo Gomes.
Os
três são filhos de José Euclides Ferreira Gomes Júnior, que foi prefeito de
Sobral, e bisnetos de José Ferreira Gomes, o segundo prefeito do município.
Ele, por sua vez, é irmão de Vicente Ferreira Gomes, o primeiro prefeito de
Sobral. José Euclides Ferreira Gomes, o avô, foi deputado estadual.
A
família também tem um histórico que estaria ligado à posse de escravizados. Há
um registro em cartório do batizado de uma menininha que seria filha de uma
escravizada de Cesário Ferreira Gomes, trisavô de Cid e Ciro. Além disso, um
anúncio de jornal de 1854 fala sobre a fuga de um escravizado de Diogo Gomes
Parente, outro trisavô.
“Ao
abaixo assignado fugió de Sobral, um escravo mulato, de nome Delmiro, com os
signaes seguintes: idade de 22 annos, estatura baixa, cheio de corpo, cabello
crespo arruivascado, olhos grandes, sobrancelhas fechadas, nariz grosso e um
tanto arrebitado, bocca regular, faltão-lhe dois dentes na frente, pouca barba,
rosto redondo, pouco cabello no peito, pés grandes, tem uma pequena cicatriz no
nariz, em um lado da cabeça tem uma grande brecha que o cabelo cobre, e várias
cicatrizes nas costes”, diz o anúncio.
Raquel
Lyra é filha de João Lyra Neto, ex-governador de Pernambuco – ele foi vice de
Eduardo Campos e assumiu quando este se licenciou para concorrer à Presidência
– e ex-prefeito de Caruaru. O avô também foi prefeito de Caruaru. O tio
Fernando Lyra foi ministro da Justiça.
O
poder da família é antigo: o capitão Manoel Monteiro Paes da Rocha Lira, sexto
avô de Raquel, recebeu uma sesmaria (terra inexplorada para ser colonizada) da
coroa portuguesa em 1816, na região de Recife. Desde então, seus descendentes
são influentes na região.
José
Soares da Silva Lyra, trisavô de Raquel, é descrito como escravista no livro
História da Lagoa dos Gatos, do historiador João Pereira Callado. O autor cita
que ele seria “dono de uma porção dessa desgraçada gente”, em referência aos
escravizados. “Era daqueles bons senhores estimados. Depois da alforria,
ficaram todos seus cativos consigo, numa honrosa demonstração de bom caráter”,
continua o texto.
Em
outro trecho do livro, o historiador diz que o quinto avô de Raquel, José Paes
de Lira, foi “ajudado ainda pelo braço de seus numerosos cativos” na venda de
algodão produzido em sua propriedade.
O
pesquisador José Eduardo da Silva levantou que Paes de Lira seria dono de 23
pessoas, de acordo com o inventário deixado por ele em 1844 em Garanhuns. Os
escravizados correspondiam a 34% do seu patrimônio, ainda segundo o estudo.
A
senadora e ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias vem
de uma longa linhagem de políticos mato-grossenses. Um de seus avôs foi duas
vezes senador e duas vezes governador. Seu bisavô também foi governador duas
vezes. E seu tataravô foi Quintino Bocaiuva, primeiro ministro das Relações
Exteriores e da Agricultura da República.
Quintino
Bocaiuva foi um dos mais importantes abolicionistas da história do Brasil. Ele
defendia a causa em seu jornal, O Paiz, junto com Joaquim Nabuco, uma das
principais vozes contra a escravidão.
Já
o quinto avô de Tereza Cristina, Francisco Corrêa da Costa, foi descrito como “um médio proprietário de
escravos” em um estudo de Maria Amélia Alves Crivelente, mestre em história
pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Corrêa da Costa foi presidente
da província de Mato Grosso, deputado estadual e dono de engenho. Em outro
estudo, a mesma autora cita que seu filho Antonio assumiu o engenho do pai e
adquiriu outros, multiplicando o patrimônio da família e também teria posse de
dezenas de escravos.
“Com
perspicácia, audácia e experiência na convivência com o pai, em 1855 seus bens
somavam considerável patrimônio em sesmarias onde cultivava milho, arroz e
feijão, além do engenho de açúcar e aguardente, tinha ainda 8.000 cabeças de
gado, bestas, cavalos, 10 casas em Cuiabá e 194 escravos, sendo 81 deles
africanos”, cita a pesquisadora.
O
avô paterno do senador Ciro Nogueira (PP-PI) foi prefeito de Pedro II, o pai
foi deputado federal duas vezes e um tio também foi deputado federal. Nogueira
foi casado com a ex-deputada federal Iracema Portella (PP-PI). A história deles
está intrinsecamente ligada à política do Piauí há mais de 300 anos.
Quinto
avô de Nogueira, o tenente-coronel Antonio Sousa Mendes embarcou em um navio
saindo do Rio de Janeiro em 7 de maio de 1853 junto com dois escravos, Antonio
e Raimundo, de acordo com registro no jornal O Constitucional. Sousa Mendes
participou como militar da guerra da independência e da repressão à Balaiada,
revolta da população pobre do Maranhão.
Um
dos filhos de Sousa Mendes foi Simplício Mendes, que foi presidente da
província do Piauí quatro vezes e nomeou a cidade de mesmo nome. Outro filho
foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O filho de Simplício, Álvaro de
Assis Osório Mendes, foi senador e governador do Piauí.
A
família é descendente de Valério Correia Rodrigues, português que foi um dos
primeiros povoadores do Piauí, em meados do século 18. Rodrigues colecionou
dezenas de fazendas e teria sido dono de vários escravos, como constataram
pesquisadores da Associação dos Descendentes de Valério Coelho, que montaram
uma árvore genealógica desde o patriarca.
“Foram
encontrados vários assentos de batismos de familiares e escravos de Valério
Coelho”, diz o site que compila a pesquisa genealógica do patriarca. De acordo
com os registros, Coelho batizava os filhos de suas escravizadas. “Aos dezasete
de dezembro de mil e sete centos e setenta e quatro na fazenda do Paulista
Baptizei solemne mente e pus os santos oleos a Ignacia filha de digo Baptizei e
et cetra a Luiza filha de Quiteria preta solteira de Nascam Angolla Escrava de
Vallerio Coelho Rodrigues morador na dita fazenda”, diz um deles.
Ciro
Nogueira não aparece como descendente direto de Valério Coelho nos registros
oficiais porque tudo indica que seu bisavô, Pedro da Silva Mendes, não foi um
filho legítimo do trisavô Álvaro de Assis Osório Mendes. O seu registro de
falecimento, inclusive, diz que sua mãe era Luiza de França Vilarinho,
“doméstica”.
O
senador fez parte da Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho
Escravo em 2010. Três anos antes, ele foi um dos parlamentares que votaram para
aprovar uma regra que dificultava o combate ao trabalho escravo – ela
estipulava que auditores fiscais do trabalho não poderiam apontar vínculo
empregatício entre patrões e funcionários quando constatassem irregularidades.
Filho
do ex-senador paraibano Efraim Morais e neto dos ex-deputados estaduais João
Feitosa e Inácio Bento de Morais, o senador Efraim Filho já reconheceu que “ter
sobrenome conhecido na política ajuda a abrir portas”.
Seu
tataravô, Manoel de Araújo Pereira II, aparece em uma relação de senhores de
escravos em Santa Luzia do Sabugy, antigo nome de Santa Luzia, na Paraíba, no
período de 1858 a 1888, de acordo com a dissertação de Joselito Eulâmpio da
Nóbrega, “Comunidade Talhado – um grupo étnico de remanescência quilombola: um
identidade construída de fora?”, sobre a comunidade com remanescentes de
quilombolas dessa cidade. O registro não cita o número de escravizados que ele
teria tido.
A
reportagem procurou os políticos citados para esclarecer os achados de suas
genealogias, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto
Escravizadores, mas não recebemos respostas até a publicação.
Fonte:
Por Amanda Audi, da Agência Pública
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