ANOS DE CHUMBO: Vozes negras que a ditadura
tentou calar de todas as formas
Lélia Gonzalez era
mais que uma voz. Era um grito que atravessa séculos de silenciamento. Filha de
empregada doméstica indígena com um trabalhador ferroviário negro, nasceu no
coração da desigualdade brasileira em 1935. Negra, mulher e pensadora, sua escrita
não era apenas teoria, era corpo que dançava entre a academia e a rua, entre o
passado e o futuro. Perseguida, mas nunca silenciada, Gonzalez viveu e resistiu
em um Brasil sufocado pela ditadura militar, em que não bastava enfrentar a
censura e a repressão: ser mulher, negra e ativista significava lutar em três
frentes ao mesmo tempo. Naquele período sombrio, ela não apenas se destacou
como intelectual, mas como uma militante incansável.
Durante os anos de
chumbo, Lélia ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, num
ato de coragem que desafiava tanto a ditadura quanto à invisibilização da causa
negra nos espaços progressistas. Mais do que contestar o autoritarismo político,
Lélia questionava as bases de uma sociedade que marginalizava corpos negros,
apontando como o racismo era uma engrenagem silenciosa no projeto de poder do
regime. Seu filho, Rubens Rufino, de 63 anos, graduado em economia e
diretor-executivo do memorial da mãe, lembra como Lélia, durante sua vida e
principalmente durante os anos de chumbo do regime , abriu mão de tudo pelo
ativismo com o povo negro.
"Ela foi uma
lutadora. Ela abriu mão da vida pessoal para lutar pelo povo negro. Isso me
marcou muito, não só a mim, mas também à nossa família. Para poder entender,
argumentar e falar sobre racismo, ela se dedicou profundamente à ciência. Ela
se armou do conhecimento para falar sobre racismo. Ela reuniu todas essas
vertentes para entender melhor e combater o racismo com argumentos sólidos.
Essa foi a forma que ela encontrou para abordar diversas questões,
especialmente as relacionadas às mulheres, sobre as quais ela falava com muita
profundidade e propriedade", conta o filho.
• Partido Comunista
Lélia não foi a única.
Arthur Pereira da Silva, pai de Rosa Cimiana e mais três filhos, era
ferroviário, filiado ao Partido Comunista e negro. Acabou preso durante o
regime por ser considerado "subversivo". Foi torturado, liberado, mas
viveu em clandestinidade até o fim da vida. Pereira não era filiado a nenhum
partido racial, mas a filha Rosa conta que a cor de pele influenciou na
barbaridade das violências sofridas na época do cárcere.
"No dia 1º de
abril, veio o golpe, e já no dia 4 meu pai estava preso. Com ele, também foram
presos o prefeito e o vice-prefeito de Santa Maria, além de alguns dos melhores
advogados, como o Adelmo Genro, o Tarso Genro e o Jorge Montes. Jornalistas também
foram detidos. Mas, diferentemente dos outros, meu pai foi condenado e banido
do país. Os demais, que eram brancos, continuaram sendo vigiados, mas não
sofreram o mesmo destino. Meu pai foi o único desse grupo que foi torturado; os
outros não passaram por isso", conta Rosa.
A filha de Arthur
explica ainda que o "apelido" dele para os militares era "Negrão
da Operação Férrea". O que fica marcado para Rosa Cimina é a sensação de
impunidade e a violência da prisão. "Quando vieram buscá-lo em casa, foi algo
que marcou nossas vidas para sempre. Chegaram com 50 soldados e quatro
oficiais. Meu pai sempre dizia que nunca esqueceria aquilo: policiais armados
dentro de nossa casa. Minha mãe, tentando proteger os filhos, pediu que os
soldados ao menos aguardassem até o dia seguinte para levá-lo, pois queria
tirar a gente de casa para não presenciarmos aquela cena. Eu tinha apenas 5
anos."
"Lembro que os
oficiais falavam com minha mãe (que era branca), mas, quando se referiam ao meu
pai, o chamavam de 'esse negro'. Não usavam o nome dele, apenas o reduziam à
cor da pele, de forma desumana. Depois, descobrimos que, quando foi torturado,
um dos militares responsáveis revelou, em uma entrevista no final dos anos
1980, que meu pai era o primeiro nome na lista. Ele dizia: "Era o negrão
da Viação". Era assim que o identificavam, sem sequer reconhecê-lo como um
ser humano", conclui Rosa.
• "Democracia racial"
A historiadora Marize
Conceição, doutora e pesquisadora da área, esclarece que, durante a ditadura
militar, os governantes disseminavam a ideia de uma "democracia
racial" como parte de um ideal político e social. Esse conceito sustentava
que, devido à intensa miscigenação do povo brasileiro, o país teria se tornado
uma nação livre de racismo e de tensões raciais, promovendo uma imagem de
harmonia entre diferentes grupos étnicos.
Esse discurso oficial
buscava ocultar a existência de profundas desigualdades sociais e raciais,
ignorando a realidade de discriminação e exclusão vivida pela população negra.
Segundo Renata, a "democracia racial" era uma construção ideológica conveniente
para os interesses do regime, uma forma de deslegitimar movimentos negros que
denunciavam o racismo estrutural e lutavam por direitos.
"A denúncia da
falsa democracia racial no Brasil e a denúncia do racismo no Brasil, eu acho
que é uma das principais pautas do movimento negro naquele momento, a denúncia
ao Brasil como um país racista, onde vigora o mito da democracia racial e também
a luta pela construção de uma identidade negra positiva e a construção dessa
identidade negra positiva passando pela revisão da história do Brasil, na qual
o movimento negro começa a apresentar a participação de negros e negras na
construção da história do Brasil, como sujeitos históricos", explica a
historiadora.
Marize destaca que as
lideranças negras enfrentaram enormes desafios durante a ditadura militar,
especialmente na luta para criminalizar e expor o peso do racismo na sociedade
brasileira. "Acredito que a maior dificuldade enfrentada pela militância do
movimento negro e pelas organizações negras naquela época foi a luta para
criminalizar o racismo. Era um desafio imenso denunciar o racismo estrutural e
as arbitrariedades cometidas pela polícia nas favelas e periferias, onde homens
negros eram presos sem qualquer crime ou julgamento", afirma.
Para a historiadora
Renata Melo, doutora em história pela Universidade de Brasília e especialista
em história e cultura afro-brasileira, casos de perseguidos políticos brancos
tinham muito mais revolta e aparições em jornais e repercussão na mídia enquanto
os negros, que aconteciam principalmente em subúrbios e comunidades
diariamente, foram deixados de lado.
"Quanto à
população negra que desapareceu, foi morta ou perseguida, incluindo aqueles que
estavam nas universidades, muitos não tiveram seus nomes lembrados. Apenas
agora, com as pesquisas e o aumento da presença de negros e negras nas
universidades públicas, especialmente após a implementação das cotas raciais, é
que começamos a dar visibilidade a essa história. Esse movimento tem fomentado
a nossa intelectualidade negra e, historicamente, tem chamado atenção para
questões que antes eram negligenciadas", explica.
Fonte: Correio
Braziliense
Nenhum comentário:
Postar um comentário