quarta-feira, 27 de novembro de 2024

ANOS DE CHUMBO: Vozes negras que a ditadura tentou calar de todas as formas

Lélia Gonzalez era mais que uma voz. Era um grito que atravessa séculos de silenciamento. Filha de empregada doméstica indígena com um trabalhador ferroviário negro, nasceu no coração da desigualdade brasileira em 1935. Negra, mulher e pensadora, sua escrita não era apenas teoria, era corpo que dançava entre a academia e a rua, entre o passado e o futuro. Perseguida, mas nunca silenciada, Gonzalez viveu e resistiu em um Brasil sufocado pela ditadura militar, em que não bastava enfrentar a censura e a repressão: ser mulher, negra e ativista significava lutar em três frentes ao mesmo tempo. Naquele período sombrio, ela não apenas se destacou como intelectual, mas como uma militante incansável.

Durante os anos de chumbo, Lélia ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, num ato de coragem que desafiava tanto a ditadura quanto à invisibilização da causa negra nos espaços progressistas. Mais do que contestar o autoritarismo político, Lélia questionava as bases de uma sociedade que marginalizava corpos negros, apontando como o racismo era uma engrenagem silenciosa no projeto de poder do regime. Seu filho, Rubens Rufino, de 63 anos, graduado em economia e diretor-executivo do memorial da mãe, lembra como Lélia, durante sua vida e principalmente durante os anos de chumbo do regime , abriu mão de tudo pelo ativismo com o povo negro.

"Ela foi uma lutadora. Ela abriu mão da vida pessoal para lutar pelo povo negro. Isso me marcou muito, não só a mim, mas também à nossa família. Para poder entender, argumentar e falar sobre racismo, ela se dedicou profundamente à ciência. Ela se armou do conhecimento para falar sobre racismo. Ela reuniu todas essas vertentes para entender melhor e combater o racismo com argumentos sólidos. Essa foi a forma que ela encontrou para abordar diversas questões, especialmente as relacionadas às mulheres, sobre as quais ela falava com muita profundidade e propriedade", conta o filho.

•        Partido Comunista

Lélia não foi a única. Arthur Pereira da Silva, pai de Rosa Cimiana e mais três filhos, era ferroviário, filiado ao Partido Comunista e negro. Acabou preso durante o regime por ser considerado "subversivo". Foi torturado, liberado, mas viveu em clandestinidade até o fim da vida. Pereira não era filiado a nenhum partido racial, mas a filha Rosa conta que a cor de pele influenciou na barbaridade das violências sofridas na época do cárcere.

"No dia 1º de abril, veio o golpe, e já no dia 4 meu pai estava preso. Com ele, também foram presos o prefeito e o vice-prefeito de Santa Maria, além de alguns dos melhores advogados, como o Adelmo Genro, o Tarso Genro e o Jorge Montes. Jornalistas também foram detidos. Mas, diferentemente dos outros, meu pai foi condenado e banido do país. Os demais, que eram brancos, continuaram sendo vigiados, mas não sofreram o mesmo destino. Meu pai foi o único desse grupo que foi torturado; os outros não passaram por isso", conta Rosa.

A filha de Arthur explica ainda que o "apelido" dele para os militares era "Negrão da Operação Férrea". O que fica marcado para Rosa Cimina é a sensação de impunidade e a violência da prisão. "Quando vieram buscá-lo em casa, foi algo que marcou nossas vidas para sempre. Chegaram com 50 soldados e quatro oficiais. Meu pai sempre dizia que nunca esqueceria aquilo: policiais armados dentro de nossa casa. Minha mãe, tentando proteger os filhos, pediu que os soldados ao menos aguardassem até o dia seguinte para levá-lo, pois queria tirar a gente de casa para não presenciarmos aquela cena. Eu tinha apenas 5 anos."

"Lembro que os oficiais falavam com minha mãe (que era branca), mas, quando se referiam ao meu pai, o chamavam de 'esse negro'. Não usavam o nome dele, apenas o reduziam à cor da pele, de forma desumana. Depois, descobrimos que, quando foi torturado, um dos militares responsáveis revelou, em uma entrevista no final dos anos 1980, que meu pai era o primeiro nome na lista. Ele dizia: "Era o negrão da Viação". Era assim que o identificavam, sem sequer reconhecê-lo como um ser humano", conclui Rosa.

•        "Democracia racial"

A historiadora Marize Conceição, doutora e pesquisadora da área, esclarece que, durante a ditadura militar, os governantes disseminavam a ideia de uma "democracia racial" como parte de um ideal político e social. Esse conceito sustentava que, devido à intensa miscigenação do povo brasileiro, o país teria se tornado uma nação livre de racismo e de tensões raciais, promovendo uma imagem de harmonia entre diferentes grupos étnicos.

Esse discurso oficial buscava ocultar a existência de profundas desigualdades sociais e raciais, ignorando a realidade de discriminação e exclusão vivida pela população negra. Segundo Renata, a "democracia racial" era uma construção ideológica conveniente para os interesses do regime, uma forma de deslegitimar movimentos negros que denunciavam o racismo estrutural e lutavam por direitos.

"A denúncia da falsa democracia racial no Brasil e a denúncia do racismo no Brasil, eu acho que é uma das principais pautas do movimento negro naquele momento, a denúncia ao Brasil como um país racista, onde vigora o mito da democracia racial e também a luta pela construção de uma identidade negra positiva e a construção dessa identidade negra positiva passando pela revisão da história do Brasil, na qual o movimento negro começa a apresentar a participação de negros e negras na construção da história do Brasil, como sujeitos históricos", explica a historiadora.

Marize destaca que as lideranças negras enfrentaram enormes desafios durante a ditadura militar, especialmente na luta para criminalizar e expor o peso do racismo na sociedade brasileira. "Acredito que a maior dificuldade enfrentada pela militância do movimento negro e pelas organizações negras naquela época foi a luta para criminalizar o racismo. Era um desafio imenso denunciar o racismo estrutural e as arbitrariedades cometidas pela polícia nas favelas e periferias, onde homens negros eram presos sem qualquer crime ou julgamento", afirma.

Para a historiadora Renata Melo, doutora em história pela Universidade de Brasília e especialista em história e cultura afro-brasileira, casos de perseguidos políticos brancos tinham muito mais revolta e aparições em jornais e repercussão na mídia enquanto os negros, que aconteciam principalmente em subúrbios e comunidades diariamente, foram deixados de lado.

"Quanto à população negra que desapareceu, foi morta ou perseguida, incluindo aqueles que estavam nas universidades, muitos não tiveram seus nomes lembrados. Apenas agora, com as pesquisas e o aumento da presença de negros e negras nas universidades públicas, especialmente após a implementação das cotas raciais, é que começamos a dar visibilidade a essa história. Esse movimento tem fomentado a nossa intelectualidade negra e, historicamente, tem chamado atenção para questões que antes eram negligenciadas", explica.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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