O tempo
das drogas de produtividade em massa
O
uso de medicamentos psiquiátricos, bem como os diagnósticos em si, vem
aumentando de forma que parece pouco usual na medicina. Temos cada vez mais
pessoas “doentes” e novas formas de classificá-las sendo criadas de tempos em
tempos.
Em paralelo,
não vemos uma melhora dos resultados desses tratamentos. O que se tem é o
aumento de pessoas classificadas como “crônicas”, e o objetivo agora parece ser
o de torná-las “funcionais”, seja lá o que isso realmente signifique.
• Cultura e
ideologia: duas coisas que moldam nosso senso de normalidade
A
definição de normal e anormal é algo que pode ser descrito como fluido. E
quando essas classificações são usadas para questões de saúde mental, é
possível notar grandes diferenças entre épocas, culturas e países.
A
tristeza após perder um ente querido, por exemplo, sempre foi entendida como
normal e esperada. Mas, num mundo capitalista que exige uma produtividade
padronizada e crescente, esse estado de luto não pode durar muito. Existe uma
fronteira onde, de um lado temos a normalidade, e do outro uma possível
depressão. Afinal, essa pessoa precisa trabalhar, e, caso não consiga, existem
diagnósticos e medicamentos prontos para ajudá-la.
O
mesmo ocorre com outros estados mentais. Mas quem desenhou essas fronteiras da
normalidade, e por que elas são modificadas com tanta frequência? Não existe
uma resposta simples e direta para esses questionamentos, mas o que se pode
afirmar com certeza é que os padrões de normalidade, para questões mentais, são
definidos de forma arbitrária, de acordo com o que a sociedade julga aceitável
e desejável. E esse termos são fortemente influenciáveis pelo mundo que nos
rodeia.
Assim,
temos doenças sendo definidas por fatores que estão fora daquilo que comumente
vemos na medicina, ou seja, a definição vem da expectativa que o mundo tem de
nós, não de um funcionamento anômalo do organismo. Não existe um exame de
sangue ou de imagem que mostre essa anormalidade, da mesma forma que não temos
nada que defina de forma exata o medicamento mais adequado para tratá-la.
• O que
estamos tratando?
Se
nos baseamos no modelo de doença utilizado por outras especialidades médicas, a
doença mental não existe. O que não significa que o sofrimento mental deva ser
ignorado. Mas, como não há um parâmetro físico ou laboratorial que possa
confirmar um diagnóstico psiquiátrico, o que existem são sintomas isolados ou
em conjunto. Assim, tratamos esses estados mentais que são definidos como
patológicos.
O
psiquiatra britânico Sami Timimi, em seu livro Insane medicine, fala dos
diagnósticos psiquiátricos como formas de descrever sintomas, não como algo que
explique o quadro apresentado por pessoas que deles sofrem. Se “trata” um
sintoma que, sozinho, pouco diz sobre a situação atual da pessoa.
As
tentativas de identificar as causas genéticas para as doenças psiquiátricas
tampouco dão os resultados esperados. Até o momento não se identificaram genes
que estejam ligados diretamente a esses padecimentos mentais. Mas vemos também
que algumas famílias têm um número maior de certas enfermidades. O que isso
significa? Talvez indique que o que chamam de doença mental pode ser um sintoma
da dinâmica familiar ou sociedade.
Em
paralelo a isso, a principal teoria que “explicava” a causa da depressão foi
derrubada. O artigo de revisão de Jonna Moncrieff, publicado em 2022, aborda a
teoria da deficiência de serotonina como explicação para a depressão, e mostra
que não existem evidências dessa deficiência como causa do problema. Isso,
apesar de já ser de conhecimento de parte da comunidade médica, traz
implicações importantes: estamos realmente tratando a causa da depressão? Ou só
usando uma droga que suprime temporariamente seus sintomas, mas que é incapaz
de reverter o quadro?
Essas
perguntas podem ser feitas para qualquer outro dos chamados distúrbios
psiquiátricos, e demonstram o pouco que sabemos sobre algo que a sociedade
insiste em diagnosticar e tratar com drogas novas cada vez mais potentes e
caras. E com resultados insatisfatórios para a maior parte de seus usuários.
• A
cronificação da doença mental
Nosso
cérebro, da mesma forma como ocorre com o resto do organismo, tende a buscar o
equilíbrio, ou, em termos mais científicos, a homeostase. Assim, quando
utilizamos alguma substância que modifica a liberação de neurotransmissores por
um período prolongado, como no caso de antidepressivos e antipsicóticos,
algumas mudanças ocorrem nos receptores dessas substâncias, numa tentativa de
compensar o seu excesso ou falta.
Mas,
o que parece, a princípio, algo benéfico, torna a retirada de tais medicamentos
um processo difícil e doloroso, e faz com que muitos profissionais indiquem o
uso “pelo resto da vida”.
Ou
seja, um tratamento que deveria resolver um problema acaba levando a uma
espécie de dependência vitalícia de uma substância. Fora os numerosos efeitos
colaterais que essas drogas causam.
Mas
esse novo problema é preferível, já que transforma a pessoa em alguém mais
controlável, e que, sob o rótulo do diagnóstico, pertence a uma subclasse
humana. Um doente, que precisa de tratamento para se adequar às normas sociais.
Alguém, espera-se, a caminho da produtividade.
O
que se exclui do discurso é que são justamente essas normas, voltadas para a
produtividade cada vez maior, que estão na raiz da maioria desses problemas.
E
mesmo que o tratamento não torne o indivíduo produtivo, visto que a psiquiatria
falha em comprovar a eficácia de seus tratamentos, essa pessoa deixa de
questionar, ou tem seus questionamentos abafados sob esse mesmo rótulo da
loucura.
Fonte:
Por Marcela Gottschald, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário