quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O tempo das drogas de produtividade em massa

O uso de medicamentos psiquiátricos, bem como os diagnósticos em si, vem aumentando de forma que parece pouco usual na medicina. Temos cada vez mais pessoas “doentes” e novas formas de classificá-las sendo criadas de tempos em tempos.

Em paralelo, não vemos uma melhora dos resultados desses tratamentos. O que se tem é o aumento de pessoas classificadas como “crônicas”, e o objetivo agora parece ser o de torná-las “funcionais”, seja lá o que isso realmente signifique.

•                                    Cultura e ideologia: duas coisas que moldam nosso senso de normalidade

A definição de normal e anormal é algo que pode ser descrito como fluido. E quando essas classificações são usadas para questões de saúde mental, é possível notar grandes diferenças entre épocas, culturas e países.

A tristeza após perder um ente querido, por exemplo, sempre foi entendida como normal e esperada. Mas, num mundo capitalista que exige uma produtividade padronizada e crescente, esse estado de luto não pode durar muito. Existe uma fronteira onde, de um lado temos a normalidade, e do outro uma possível depressão. Afinal, essa pessoa precisa trabalhar, e, caso não consiga, existem diagnósticos e medicamentos prontos para ajudá-la.

O mesmo ocorre com outros estados mentais. Mas quem desenhou essas fronteiras da normalidade, e por que elas são modificadas com tanta frequência? Não existe uma resposta simples e direta para esses questionamentos, mas o que se pode afirmar com certeza é que os padrões de normalidade, para questões mentais, são definidos de forma arbitrária, de acordo com o que a sociedade julga aceitável e desejável. E esse termos são fortemente influenciáveis pelo mundo que nos rodeia.

Assim, temos doenças sendo definidas por fatores que estão fora daquilo que comumente vemos na medicina, ou seja, a definição vem da expectativa que o mundo tem de nós, não de um funcionamento anômalo do organismo. Não existe um exame de sangue ou de imagem que mostre essa anormalidade, da mesma forma que não temos nada que defina de forma exata o medicamento mais adequado para tratá-la.

•                                    O que estamos tratando?

Se nos baseamos no modelo de doença utilizado por outras especialidades médicas, a doença mental não existe. O que não significa que o sofrimento mental deva ser ignorado. Mas, como não há um parâmetro físico ou laboratorial que possa confirmar um diagnóstico psiquiátrico, o que existem são sintomas isolados ou em conjunto. Assim, tratamos esses estados mentais que são definidos como patológicos.

O psiquiatra britânico Sami Timimi, em seu livro Insane medicine, fala dos diagnósticos psiquiátricos como formas de descrever sintomas, não como algo que explique o quadro apresentado por pessoas que deles sofrem. Se “trata” um sintoma que, sozinho, pouco diz sobre a situação atual da pessoa.

As tentativas de identificar as causas genéticas para as doenças psiquiátricas tampouco dão os resultados esperados. Até o momento não se identificaram genes que estejam ligados diretamente a esses padecimentos mentais. Mas vemos também que algumas famílias têm um número maior de certas enfermidades. O que isso significa? Talvez indique que o que chamam de doença mental pode ser um sintoma da dinâmica familiar ou sociedade.

Em paralelo a isso, a principal teoria que “explicava” a causa da depressão foi derrubada. O artigo de revisão de Jonna Moncrieff, publicado em 2022, aborda a teoria da deficiência de serotonina como explicação para a depressão, e mostra que não existem evidências dessa deficiência como causa do problema. Isso, apesar de já ser de conhecimento de parte da comunidade médica, traz implicações importantes: estamos realmente tratando a causa da depressão? Ou só usando uma droga que suprime temporariamente seus sintomas, mas que é incapaz de reverter o quadro?

Essas perguntas podem ser feitas para qualquer outro dos chamados distúrbios psiquiátricos, e demonstram o pouco que sabemos sobre algo que a sociedade insiste em diagnosticar e tratar com drogas novas cada vez mais potentes e caras. E com resultados insatisfatórios para a maior parte de seus usuários.

•                                    A cronificação da doença mental

Nosso cérebro, da mesma forma como ocorre com o resto do organismo, tende a buscar o equilíbrio, ou, em termos mais científicos, a homeostase. Assim, quando utilizamos alguma substância que modifica a liberação de neurotransmissores por um período prolongado, como no caso de antidepressivos e antipsicóticos, algumas mudanças ocorrem nos receptores dessas substâncias, numa tentativa de compensar o seu excesso ou falta.

Mas, o que parece, a princípio, algo benéfico, torna a retirada de tais medicamentos um processo difícil e doloroso, e faz com que muitos profissionais indiquem o uso “pelo resto da vida”.

Ou seja, um tratamento que deveria resolver um problema acaba levando a uma espécie de dependência vitalícia de uma substância. Fora os numerosos efeitos colaterais que essas drogas causam.

Mas esse novo problema é preferível, já que transforma a pessoa em alguém mais controlável, e que, sob o rótulo do diagnóstico, pertence a uma subclasse humana. Um doente, que precisa de tratamento para se adequar às normas sociais. Alguém, espera-se, a caminho da produtividade.

O que se exclui do discurso é que são justamente essas normas, voltadas para a produtividade cada vez maior, que estão na raiz da maioria desses problemas.

E mesmo que o tratamento não torne o indivíduo produtivo, visto que a psiquiatria falha em comprovar a eficácia de seus tratamentos, essa pessoa deixa de questionar, ou tem seus questionamentos abafados sob esse mesmo rótulo da loucura.

 

Fonte: Por Marcela Gottschald, em Outras Palavras

 

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