Por que mulheres sem filhos incomodam
tanto? Elas são vistas como 'uma ameaça', diz historiadora
Em uma entrevista de
2021 à emissora Fox, J.D. Vance, então candidato ao Senado americano pelo
Estado de Ohio e, hoje, candidato a vice-presidente de Donald Trump, disse que
os Estados Unidos estavam sendo governados por “mulheres sem filhos”, que ele
chama de "cat ladies".
Em português, a
expressão pejorativa pode ser traduzida como "senhora dos gatos" e se
refere a mulheres que vivem sozinhas, preferindo a companhia dos bichos de
estimação à das pessoas.
Segundo Vance, essas
mulheres seriam "infelizes com as próprias escolhas que fizeram e, por
isso, querem tornar o resto do país miserável também".
O ataque teve como
alvo a vice-presidente Kamala Harris, e provável rival de Trump nestas
eleições, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, e o secretário de
Transportes dos EUA, o também Pete Buttigieg, o primeiro homossexual assumido
em um cargo executivo, que foram nominalmente mencionados.
"É apenas um fato
básico — você olha para Kamala Harris, Pete Buttigieg, AOC [Alexandria
Ocasio-Cortez] —, todo o futuro dos democratas é controlado por pessoas sem
filhos", afirmou Vance ao apresentador Tucker Carlson.
"E como faz
sentido entregarmos o nosso país a pessoas que não têm realmente interesse
direto nele?"
O resgate do vídeo
durante a campanha presidencial americana na semana passada causou diferentes
reações.
Desde divertidas fotos
de mulheres e seus felinos, a protestos mais contundentes, como o da atriz
Jennifer Aniston.
"Realmente não
consigo acreditar que isso vem de um potencial vice-presidente dos Estados
Unidos", escreveu a atriz em sua rede social.
"Tudo o que posso
dizer é: sr. Vance, rezo para que sua filha tenha a sorte de um dia ter seus
próprios filhos. Espero que ela não precise recorrer à fertilização in vitro
como segunda opção. Porque você também está tentando tirar isso dela."
A atriz, cuja luta
contra a infertilidade tornou-se pública, estava se referindo à adoção por
vários Estados americanos de leis que garantem a embriões congelados e a fetos
dentro do ventre da gestante as mesmas proteções legais dadas a uma pessoa.
Assim, a fertilização
in vitro tem virado o novo alvo de movimentos anti-aborto nos Estados Unidos.
Criado pela avó, a
quem ele chama de "grande salvadora", Vance teve uma infância
conturbada.
Seu pai biológico o
abandonou e sua mãe tinha problemas com drogas. Hoje, o republicano é pai de
dois meninos e uma menina.
Já Harris, cuja
candidatura à Presidência ainda não é oficial, mas já conta com o apoio da
maioria dos delegados democratas e do ex-presidente Barack Obama, não tem
filhos biológicos.
No entanto, ela
casou-se em 2014 com o advogado Douglas Emhoff, que já tinha dois filhos do
relacionamento anterior.
De acordo com
declarações de Harris à imprensa, os filhos do marido a chamam de
"momala", uma mistura de mãe, em inglês, com Kamala.
A ex-mulher de Doug
Emhoff, a produtora Kirst Emhoff, disse à emissora CNN que os ataques são
"infundados".
"Por mais de dez
anos, desde que Cole e Ella eram adolescentes, Kamala foi uma comãe com Doug e
eu. Ela é amorosa, cuidadosa, ferozmente protetora e sempre presente. Amo nossa
família misturada e sou grata por tê-la nela."
Peggy O’Donnell
Heffington, historiadora da Universidade de Chicago, afirma à BBC News Brasil
que o retrato pejorativo de mulheres que não têm filhos é histórico, assim como
a tentativa de controlar as decisões das mulheres sobre ter ou não filhos e
quantos ter.
Estudiosa do tema, ela
lançou, no ano passado, nos Estados Unidos o livro Without Children - the long
history of not being a mother ("Sem filhos - a longa história de não ser
mãe", em tradução livre; Seal Press), ainda sem edição no Brasil.
"Nos Estados
Unidos, esses esforços para encorajar — que, na verdade, são mais para obrigar
as mulheres a terem filhos, remontam, pelo menos, ao início do século 19, após
a Revolução Americana", contou ela, durante uma entrevista por videochamada.
"Naquele momento,
os políticos e as pessoas no poder começaram a tornar muito claro que a
principal contribuição cívica das mulheres para esta nova nação, ou o que era
esperado que elas fizessem como cidadãs, era ter filhos."
Para Heffington, as
declarações de Vance sobre as mulheres sem filhos vão neste sentido. "De
certa forma, ele está dizendo que elas renegaram seus deveres como cidadãs ao
não terem filhos e, por isso, não se pode confiar nelas para governar o país."
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Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
• Por que ter filhos ou não ainda é algo
considerado tão importante ainda nos dias de hoje?
Peggy O’Donnell
Heffington - Essa carga tem sido colocada sobre as mulheres em todo o mundo. No
caso especificamente da sociedade americana, a história é mais longa. Nos
Estados Unidos, esses esforços para encorajar — que, na verdade, são mais para
obrigar as mulheres a terem filhos — remontam, pelo menos, ao início do século
19, após a Revolução Americana.
Naquele momento, os
políticos e as pessoas no poder começaram a tornar muito claro que a principal
contribuição cívica das mulheres para esta nova nação, ou o que era esperado
que elas fizessem como cidadãs, era ter filhos, fazer mais americanos, e depois
educá-los para serem bons cidadãos americanos.
Esse era o principal
papel das mulheres, era assim que elas próprias deveriam ser boas cidadãs.
Avançando, digamos,
cem anos, [o então presidente] Theodore Roosevelt, em 1905, durante um
discurso, comparou as mulheres que não têm filhos aos soldados que fogem da
batalha. Portanto, a ideia é que essas mulheres são covardes e se recusam a
servir ao seu país quando mais se precisa delas.
Por isso, penso que
essa ideia, de que a forma de ser um cidadão americano digno é ter filhos, é
uma coisa muito antiga e acho que é isso que J.D. Vance faz.
De certa forma, ele
está explorando esse tema quando diz que as democratas são um bando de mulheres
sem filhos e "senhoras dos gatos", que não têm qualquer interesse no
futuro. Ele está dizendo que elas renegaram seus deveres como cidadãs ao não
terem filhos e, por isso, não se pode confiar nelas para governar o país.
• Classificar pejorativamente essas
mulheres que não têm filhos é uma forma de falar sobre algo que lhes falta?
Heffington - Sim, sem
dúvida. É como se ter filhos fosse a principal contribuição cívica das
mulheres. Ao mesmo tempo, a retórica sobre as mulheres sem filhos fala delas
como se não funcionassem direito.
Nesse mesmo discurso,
em 1905, Theodore Roosevelt descreveu as mulheres sem filhos como um pão que é
feito sem fermento, ou seja, que não cresce.
Ele disse que elas não
servem para nada, que estão perdendo algo que é parte integrante da vida. É
como se não cumprissem sua parte como cidadã, mas também sugere que lhe falta
alguma coisa ou que lhe falta alguma coisa como pessoa.
• Você saberia dizer se os Estados Unidos
já tiveram algum presidente que não tinha filhos?
Heffington - É uma
ótima pergunta. Já tivemos cinco presidentes que não tinham filhos. O primeiro
presidente dos Estados Unidos, George Washington [que governou entre 1789 e
1797], não tinha.
Sua mulher tinha
filhos de um casamento anterior, mas ele nunca foi pai biológico. E, de fato,
isso era algo que tinha muito apelo para as pessoas na América revolucionária,
porque elas queriam expulsar o rei. E como é que os reis se tornam reis? Tendo
filhos que se tornam reis.
Então era, de fato,
uma coisa que as pessoas admiravam muito em George Washington, porque pensavam:
"Ele não tem filhos que poderiam herdar o poder e por isso é uma escolha
muito segura para um primeiro presidente".
Além dele, James
Madison [1809-1817], Andrew Jackson [1829-1837], James Polk [1845-1849] e James
Buchanan [1857-1861]. Claro, eles eram todos homens, o que apenas reforça o
quanto ter filhos é uma expectativa que recai somente sobre as mulheres.
• O eleitorado de Trump e J.D. Vance
acredita que ter filhos é parte fundamental da existência de uma mulher? Esse
discurso de que Kamala Harris não tem filhos pode ter apelo de alguma forma?
Heffington - Pensando
generosamente, imagino que há uma parte do eleitorado que acredita realmente
que ter filhos é não apenas um dever cívico, mas algo que dá sentido à vida de
alguém, que é o maior objetivo da vida de uma mulher. Acho que temos de ser muito
cuidadosos e temos de compreender que algumas pessoas acreditam mesmo nisso.
E desde os anos 1980,
há uma reação ao feminismo por parte das mulheres conservadoras nos Estados
Unidos. Essas mulheres começaram a dizer "olha, eu até gosto de ser mãe.
Na verdade, gosto de não ter uma carreira e essa também é uma forma válida de existir
no mundo". E acho que essa porção da sociedade ainda existe.
Por isso, acho que é
uma crença genuína para a maioria das pessoas. Mas, no caso de J.D. Vance e de
Trump, penso que se trata mais de controle, de defender a mulher nos papéis
tradicionais de gênero como forma de controlar a forma como a vida das mulheres
pode ser encarada.
Há um precedente
histórico para isso também. No século 19, nos Estados Unidos, o número de
filhos que uma mulher tinha começou a diminuir.
Isso aconteceu na
maior parte do mundo, mas, especificamente nos Estados Unidos, caiu
drasticamente. E, ao mesmo tempo, se tivermos menos filhos, estaremos passando
muito menos tempo grávidas. Passaremos muito menos tempo cuidando dos bebês.
Havia uma preocupação
explícita por parte de alguns políticos: o que as mulheres vão fazer com o seu
tempo? Talvez comecem a tentar entrar na política, no mercado, vão arranjar um
emprego.
Ao mesmo tempo que a
fertilidade começou a diminuir no século 19, aumentaram as expectativas do que
significa ser mãe nos Estados Unidos, tal como a propaganda mostra, essa
espécie de retórica em torno do que significa ser uma boa mãe.
Assim, as mulheres
estão tendo menos filhos, mas as expectativas de quanto tempo se gasta na
criação de cada filho, ou seja, quanto esforço é necessário, aumentaram.
É bastante explícito
que esse pensamento surge para tomar o tempo das mulheres, já que elas não
estavam mais o tempo todo grávidas. Isso evita que elas se metam na política.
Penso que ainda há
algumas tensões nesse sentido, uma vez que alguns dos defensores dos papéis
tradicionais de gênero e os críticos das mulheres sem filhos, estão preocupados
com o que consideram ser uma forma correta de as mulheres passarem o seu tempo.
E que as mulheres que dedicam o seu tempo à carreira ou à política em vez da
maternidade são, de alguma forma, uma ameaça.
• Nos Estados Unidos, não há
licença-maternidade, e as creches são caras. É possível que o eleitorado que
está preocupado com o fato de as mulheres terem filhos ou não também possa
cobrar mais políticas públicas para ajudar a cuidar dessas crianças?
Heffington - Espero
que sim. É nessa fragilidade que podemos ver muito da retórica política de
pessoas como J.D. Vance sobre o fato de que as mulheres devem ter filhos. Não
vem de um ponto de vista genuíno de dizer: "Acredito realmente que as
mulheres encontram um significado ao terem filhos".
Se fosse isso,
poderiam também apoiar políticas de licença-maternidade ou creches gratuitas ou
de baixo custo ou o acesso a um pré-natal gratuito, facilitando ao máximo a
possibilidade de as mulheres terem filhos. Mas acho que é aí que está a
contradição: na realidade, se trata muito mais de controlar as mulheres do que
de as ajudar a alcançar tudo o que querem na vida.
• Esse debate agora pode ser um indício da
misoginia que Kamala Harris pode enfrentar caso se confirme candidata?
Heffington -
Infelizmente, sim. Acho que é uma forma bastante conveniente de atacá-la,
porque não a estão criticando por ser mulher, mas sim pelo fato de não ter
filhos. Isso sugere algum tipo de falha em relação a ela.
É como se dissessem
"não é com as mulheres que temos um problema, mas sim com uma mulher com
uma falha que temos um problema". Por isso, receio que isso pode ser uma
espécie de prenúncio para uma misoginia muito mais profunda.
Também gostaria de
salientar que a forma como Vance e outros estão falando de Kamala Harris como
uma mulher sem filhos apaga totalmente o fato de que ela é madrasta, que o seu
marido tem dois filhos, que ela está muito envolvida nas suas vidas.
Acho que isso sugere
que não estão realmente preocupados com a participação de uma mulher na criação
da próxima geração, porque ela está fazendo isso.
É a maternidade
biológica, e é uma espécie de maternidade como papel principal da mulher, o que
eles defendem. É nisso que ela é falha. Não é que ela esteja apenas ignorando a
próxima geração.
Ela gosta muito de ser
mãe como parte da sua identidade, mas acho que é muito interessante o fato de
eles revelarem que o que lhes interessa não são os atos de cuidado que uma
mulher pode dar através da maternidade. Preocupam-se com o ato biológico de ser
mãe.
• Em seu livro, a senhora menciona, dentre
outras coisas, que a decisão de algumas mulheres evitarem a maternidade não é
algo novo.
Heffington - Quando
comecei a escrever o livro, muitas pessoas me disseram: "Como é que você
está escrevendo uma história longa sobre não ter filhos se a pílula
anticoncepcional foi inventada em 1954?".
Uma das coisas que
quis demonstrar com o livro é que as mulheres têm manipulado ativamente a sua
reprodução há muito tempo. Podemos recuar até à Grécia e Roma antigas e há
registros médicos de várias formas holísticas de prevenir e interromper a
gravidez.
Na Europa, a partir do
início do período moderno, nos séculos 17 e 18, podemos ver que as taxas de
natalidade começam a diminuir enquanto a idade da última gestação começa a
baixar.
Isso sugere que, já
naquela época, elas estavam tendo dois ou três filhos e depois diziam "já
chega". Para isso, elas já estavam encontrando meios eficazes de controlar
a sua reprodução.
Em todos estes casos,
trata-se de mães, porque se olharmos para os registos de nascimento e os
utilizamos para provar que as pessoas usavam algum tipo de contracepção,
estamos olhando para as mães.
Mas acho que não é
algo tão distante da realidade assumir que as mulheres que nunca tiveram filhos
também usavam esses métodos contraceptivos ou interrompiam a gravidez.
Por isso, penso que é
seguro dizer que as mulheres têm evitado e interrompido as gravidezes desde que
começaram a ficar grávidas. Agora, é muito mais fácil fazê-lo, claro. Dispomos
de uma tecnologia muito melhor, mas controlar sua reprodução sempre foi uma
coisa que as mulheres quiseram fazer, quer fossem mães ou não.
• Existe um termo para quem não tem filhos
nos Estados Unidos, chamado "nomo", que seria a junção das palavras
"no" (não) e "mom" (mamãe). Esses termos têm ganhado força?
Heffington - Não sei,
mas penso que representa mais um esforço para encontrar uma palavra para uma
mulher que não seja mãe e que não fale da falta que mencionou anteriormente.
Porque, se dissermos
que é uma mulher sem filhos, significa que lhe falta um filho. Ou se dissermos
que uma mulher que não é mãe, é como uma definição negativa, estamos definindo
ela pelo que ela não é.
Por isso, há esforços
para encontrar um termo que seja mais neutro, que seja menos relacionado com o
que lhe falta. E "nomo", uma abreviatura de "não-mãe", é
uma tentativa, embora tenha uma conotação negativa também. Nos Estados Unidos,
o termo mais comum que as pessoas utilizam é "child-free" (sem
filhos), e isso é uma reivindicação de uma identidade positiva, que é algo que
escolheram ativamente.
• Qual o papel da decisão da Suprema Corte
que reverteu o entendimento que garantia o direito ao aborto nos Estados
Unidos?
Heffington - Não creio
que seja por acaso que, em um momento em que a fertilidade nos Estados Unidos
está diminuindo, em que o número de bebês nascidos todos os anos tem diminuído
há cerca de uma década, que, ao mesmo tempo, haja pessoas que vão limitar o
acesso ao aborto e até à contracepção em alguns locais.
Para mim, é bastante
claro que os políticos que estão tomando conhecimento da queda das taxas de
natalidade, da queda da fertilidade, da queda do número de bebês, estão
pensando também em retirar o acesso à contracepção e ao aborto. Isto, mais uma
vez, tem um precedente histórico.
Nos Estados Unidos, no
século 19, no mesmo momento em que os nascimentos diminuíram, como mencionei
anteriormente, o número médio de nascimentos por mulher diminuiu também.
É aí que começam a ser
aprovadas leis contra o aborto e a contracepção. Temos então este outro momento
histórico em que as mulheres começam a ter muito menos filhos e as pessoas
entram em pânico e começam a fazer leis para tornar o aborto ilegal, para regular
o uso de contraceptivos.
Acho que estamos neste
ponto outra vez. Parece-me que estão explicitamente ligados, que os esforços
para anular a decisão sobre o aborto estavam ligados ao receio de que as
mulheres americanas não estivessem tendo filhos suficientes.
Fonte: BBC News Brasil
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