Fake news: o Brasil é crédulo e educação
midiática é saída
2024, o ano
super-eleitoral. Não há nenhuma dose de exagero na definição que já circula em
artigos acadêmicos e na imprensa. E não é para menos: em todo o planeta pelo
menos 2 bilhões de pessoas votaram ou votarão em eleições – além do Brasil, na
Índia, União Europeia, Estados Unidos, Bangladesh, México, Paquistão,
Indonésia, Irã, África do Sul e Venezuela. Todos com um componente a mais: o
uso cada vez mais preocupante da chamada Inteligência Artificial (IA).
E o que poderia ser
uma ferramenta não só da apuração mais rápida e confiável dos votos, acende o
alerta amarelo para outra fonte de preocupação: a desinformação – as
onipresentes e incômodas fake news.
Pois antes mesmo da
disputa eleitoral começar, alguns políticos mais populares já sofreram na pele
os efeitos da deepfake. O uso de imagens, muito próximas da realidade, com voz
e rostos sincronizados, mas disseminando a mais descarada das desinformações.
Uma das mais recentes
colocou um jovem deputado da extrema direita informando sobre o direito a uma
indenização do Serasa. Mentira pura.
Mas os temores e
dúvidas em torno da Inteligência Artificial e seus usos e abusos nas eleições
não são recentes, embora aumentem na medida em que se aproximam as eleições. No
caso do Brasil, agosto quando as campanhas municipais começarem pra valer.
Na esfera mundial, a
Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências e braços de apoio e
assessoramento já produziram dezenas de trabalhos e estudos. A Unesco
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por
exemplo, já publicou uma recomendação “Sobre a Ética da Inteligência
Artificial”. Aprovado em 2021 e publicado em 2022, o estudo atenta para
questões como mercado de trabalho, meio ambiente, privacidade e desenvolvimento
e cooperação internacional, entre 11 tópicos contidos no item “Áreas de ação
política”.
·
Eleições e
desinformação
E bem antes do chamado
“ano super-eleitoral”, a Unesco recomenda dentro do tópico “Comunicação e
Informação”:
“Os
Estados-membros devem investir e promover habilidades de alfabetização digital,
midiática e informacional para fortalecer o pensamento crítico e as
competências necessárias para se entender o uso e a implicação dos sistemas de
IA, a fim de mitigar e combater a desinformação, as notícias falsas e o
discurso de ódio”
Mais recentemente,
este ano, a Unesco também publicou um guia mais abrangente, que embora
incorpore os conceitos de IA, também é mais minucioso, assertivo e cuidadoso em
relação aos processos eleitorais. Trata-se das 148 páginas do “Eleições em
tempos digitais – Um guia para profissionais eleitorais”.
No guia, um ponto de
atenção é levantado por Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile e Alta
Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos de 2018 a 2022.
“Os
Estados e as empresas já estão utilizando ferramentas baseadas em dados que
podem identificar os indivíduos como potenciais ameaças à segurança, incluindo
nas fronteiras e nos sistemas de justiça penal. De acordo com Bachelet, os
sistemas de IA avaliam e categorizam as pessoas; tiram conclusões sobre suas
características físicas e mentais; e preveem suas condições médicas futuras,
sua adequação para empregos, até mesmo sua probabilidade de ofensa.
Em que pese a imagem e
semelhança com os episódios da Abin Paralela, o uso das ferramentas não se
limita a espionagem pura, simples e deslavada. Máquinas (ou os robozinhos do
Escritório do Ódio) são perigosos porque se valem, segundo os especialistas, dos
chamados 4 Vs – Velocidade, Volume, Viralização e Verossimilhança.
Ou seja, são velozes,
em grandes volumes, viralizam pelo mundo inteiro e têm verossimilhança – é
muito próximo da realidade e tem tudo parecer verdade, mas não é.
·
Liberdade de expressão
via ONU
Enquanto as máquinas
se encarregam dos 4 Vs, quem geralmente está por trás das fake news escora-se
no discurso da “liberdade de expressão” e se posicionam serem “contra qualquer
tipo de censura”. Embora cautelosa, a ONU e suas agências não endossam simplesmente
estas duas defensivas. Em seus trabalhos, as organizações mostram-se
preocupadas com o excesso e dividem a liberdade de expressão em três
sub-espécies.
A mais grave e que
exige uma infração penal; aquela que não é criminalmente punível, mas pode
justificar uma ação civil ou sanção administrativa; e aquela que não gera uma
ação nem sanções administrativas, mas causa preocupação quanto à tolerância,
civilidade e respeito ao direito dos outros.
O estudo ainda
questiona quando há algum tipo de incitação, por exemplo, à violência e o
envolvimento de autoridades ou responsáveis. Mas, cautelosa e diplomaticamente,
sugere que cada país tenha a soberania jurídica de punir ou não quem semeia
ódio e destila desinformação. Menos mal: não há liberdade de expressão que não
possa ser regulada.
·
Educação midiática no
Brasil
Em terras brasileiras,
o governo começa a investir em educação e já começa a oferecer pequenos cursos
para professores que serão multiplicadores e começa a debater o tema da
desinformação em sala de aula. Só para se ter uma ideia, no curso “Fake Dói:
verificação de conteúdo na internet com técnicas abertas” há sete tipos de
qualificações para formas comuns de desinformação.
São eles: conteúdo
fabricado, conteúdo manipulado, conteúdo impostor, contexto falso, conteúdo
enganoso, falsa conexão, sátira ou paródia.
Ainda há um longo
caminho a percorrer e investir em educação midiática e nos mais jovens é a
situação mais óbvia, mas que não apresenta resultados em curtíssimo tempo, isto
é as eleições previstas para 6 de outubro (e 27 no segundo turno apenas para
municípios com mais de 200 mil eleitores).
Tudo para evitar mais
uma daquelas pesquisas que mostram o tamanho do estrago: a Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou, no mês passado, um
pesquisa revelando qual país está mais identificando as fake news. E qual o
mais crédulo e o que menos distingue desinformação. Ficamos em último lugar.
Somos o que mais acredita e compartilha inverdades. Foram 40.756 entrevistados
em 21 países.
¨ Conflito de interesses: quando a ética fica em segundo plano, o
jornalismo se esvai. Por Kalianny Bezerra
Na prática
jornalística, as decisões são tomadas não apenas do ponto de vista da técnica,
como também da ética. Embora isso pareça evidente e numerosos exemplos
positivos de decisões acertadas no plano deontológico validem essa ideia, por
que ainda são observados tantos casos de profissionais e organizações
jornalísticas cometendo falhas éticas?
Um exemplo recente
ocorreu na semana passada, quando a então jornalista da TV Record, Renata
Varandas, vazou partes de uma entrevista que havia realizado com o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Trechos descontextualizados da fala do presidente foram divulgados pela
corretora de investimentos BGC Liquidez, que recebeu as informações da agência
especializada de análise política e financeira Capital Advice, da qual Varandas
é sócia.
A entrevista foi ao ar
na íntegra na noite da terça-feira (16), no Jornal da Record. No entanto, antes
das 13h do mesmo dia, a BGC já havia emitido a seguinte nota: “Em entrevista à
Record TV, que será veiculada hoje ao longo dia, o presidente Lula disse que é
preciso convencê-lo de que será mesmo preciso cortar entre R$ 15 e 20 bilhões
no relatório de 22 de julho. Disse ainda que, se precisar modificar a meta, ele
não se opõe”. Após a transmissão completa pela emissora, ficou claro que o
trecho foi tirado de contexto e que os valores não foram mencionados pelo
presidente, e sim destacados apenas na pergunta feita pela jornalista.
No dia seguinte, a
Record divulgou uma nota informando desconhecer a conexão da repórter com a
Capital Advice e condenou “qualquer vazamento de informações, principalmente
com recorte parcial do que é apurado em entrevistas feitas por nossas equipes”.
Na quinta-feira (18), outra nota foi publicada informando que Renata Varandas,
que estava na emissora desde 2007 e ocupava o cargo de chefe de redação em Brasília, havia
sido desligada da equipe de jornalismo da empresa. Até a publicação deste
texto, ela ainda não havia se pronunciado sobre o caso.
O caso ilustra
claramente um conflito de interesse: a jornalista usou as informações apuradas
durante a entrevista para benefício pessoal. Esse tipo de falta ética pode
ocorrer quando interesses ou relacionamentos pessoais interferem nos deveres ou
responsabilidades profissionais do jornalista, levando, segundo Marc-François
Bernier, professor de jornalismo da Universidade de Ottawa, a ganhos
financeiros, defesas ideológicas ou fortalecimento de determinados
relacionamentos.
Mesmo não abordando
todos os aspectos e nuances dessa questão, o Código de Ética dos Jornalistas
Brasileiros destaca no capítulo 2, artigo 7º, inciso VI, que os profissionais
não podem “realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha
sobre organizações públicas, privadas ou não-governamentais, da qual seja
assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário, nem utilizar o
referido veículo para defender os interesses dessas instituições ou de
autoridades a elas relacionadas”. Ainda assim, o caso da jornalista não é
isolado e tampouco representa o único tipo de conflito de interesses numa
organização jornalística.
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De olhos fechados
A demissão de Renata
Varandas parece uma medida robusta e necessária, levando em consideração sua
conduta antiética e a quebra de confiança com o veículo midiático e seus
públicos. Entretanto, é importante também questionar quando as próprias
empresas de comunicação parecem negligenciar conflitos de interesses. É
fundamental que os profissionais evitem esse tipo de comportamento, mas e
quando as próprias emissoras borram tais barreiras éticas?
A própria TV Record
parece enviar uma mensagem aos seus profissionais de que conflito de interesses
são irrelevantes quando ela própria dilui as barreiras que deveriam existir entre a emissora, partidos políticos
e igreja. De propriedade de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de
Deus, a empresa amenizou o tom de coberturas jornalísticas críticas ao governo Bolsonaro
ou até mesmo ampliou discursos em favor ao ex-presidente, por exemplo.
Também fica difícil
saber quais são os direcionamentos para esse tipo de situação, já que numa
busca pelo site da emissora não é possível encontrar princípios editoriais que
devem guiar a conduta de seus profissionais. Embora isso não signifique
necessariamente que a emissora não tenha diretrizes para a prática dos
jornalistas, a ausência de informações acessíveis sobre esses princípios aponta
para a necessidade de fortalecer seu comprometimento com padrões éticos
sólidos.
Outro exemplo que
ilustra como os interesses financeiros de veículos midiáticos podem se sobrepor
aos do público de ter acesso à informação relevante e de qualidade aconteceu em
23 de maio de 2020. O telejornal SBT Brasil, da emissora de radiodifusão SBT,
por ordem de Sílvio Santos, teve sua exibição cancelada após reclamações do
Governo Federal sobre a cobertura que estava realizando da pandemia de
Covid-19. No lugar do telejornal, outro programa foi exibido sem que qualquer
explicação fosse dada ao público. O caso foi debatido pela professora Silvia
Meirelles, em texto publicado no objETHOS, no qual ela assinala a clara evidência de que a empresa
priorizava os benefícios de uma relação próxima com o governo Bolsonaro em
detrimento de sua responsabilidade jornalística.
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Regras necessárias
Uma relação de
confiança entre organizações de notícias e seus públicos também depende da
garantia de que o conteúdo divulgado foi construído a partir de princípios
éticos como verdade, independência e pluralidade. Conflitos de interesses podem
comprometer essa relação; nesse sentido, o primeiro passo a ser dado para
evitar o problema é estar atento, identificar e combater potenciais conflitos.
Se ainda assim eles surgirem, seja devido aos proprietários, atividades
comerciais que conflitam com o conteúdo editorial, ou com as atividades dos
jornalistas, o mínimo que se espera é eles sejam reconhecidos, comunicados e
corrigidos.
Deveria, mas não se
trata de uma iniciativa simples. Políticas organizacionais podem ajudar a
mitigar comportamentos antiéticos; mas, mesmo com regras bem definidas, outros
aspectos precisam acompanhar a atuação jornalística: a honestidade e o
compromisso com o público. Esses são dois valores fundamentais para garantir
uma prática jornalística ética e reduzir falhas deontológicas.
¨ Jornalismo de memes. Por Guilherme Scalzilli
Uma série de montagens
visuais com o rosto do ministro Fernando Haddad surgiu nas redes bolsonaristas.
As peças fazem trocadilhos pejorativos com referências midiáticas, no mesmo
acabamento rudimentar que (não) disfarça o profissionalismo da autoria.
São os tais “memes”
(iconotextos, na língua semiótica), de existência quase tão antiga quanto a da
própria internet. Há milhões dessas figuras em circulação diária, das mais
variadas estirpes, envolvendo celebridades, anônimos, bichos, personagens etc.
De repente,
simultâneos, Folha, Estadão, Globo e outros veículos informativos trataram de
divulgar o material contra Haddad. Algo que ficaria restrito a nichos radicais
ganhou a atenção de um público mais amplo, endossada pelo discurso
jornalístico.
Em outras palavras, a
mídia que se afirma democrática e legalista ajudou a disseminar material
enganoso, ofensivo a uma autoridade pública, não muito diferente dos produtos
da indústria de crimes cibernéticos do fascismo. Mas qual seria a notícia no
episódio?
Os editores têm duas
respostas possíveis. Se entenderem que houve um crime, deveriam ter
seguido os protocolos éticos da denúncia jornalística: nomear o delito,
esclarecer os fatos deturpados, cobrar as autoridades responsáveis. Apurar.
Isso não aconteceu. As
difamações receberam tratamento de ironia crítica legítima. Haddad e o governo
ocuparam espaços de contraponto, como se tivessem justificativas a dar. Como se
os próprios veículos não soubessem discernir as falácias insinuadas.
De outro lado, a
notícia poderia ser o alcance das mensagens. Mas a cobertura aumentou essa
visibilidade no ato de repercuti-la. Em suma, criou o fenômeno que motivaria o
destaque inicial. Potencializou o dano malicioso para explorar seu interesse.
Critério de
noticiabilidade, sempre discutível, é terreno propício para o cinismo. Entre os
registros literais das bravatas fascistas de Jair Bolsonaro e os artigos que
julgam os discursos de Lula, o rigor seletivo das redações exala seus pendores
ideológicos.
Tão sisudos para a
falta de provas em acusações incômodas, os fiscais da verdade não acham correto
problematizar os memes contra Haddad. Agências que denunciam “fake news” da
esquerda fazem vistas grossas diante de material similar que a atinge.
Há anos, centenas de
imagens ridicularizam Sérgio Moro, a família Bolsonaro, Tarcísio de Freitas,
ministros do STF e Arthur Lira, com popularidade e relevância contextual, mas
são ignoradas pela imprensa. A reputação de Haddad não inspira o mesmo cuidado.
O problema já seria
grave se ficasse na ingênua adesão ao vale-tudo digital, que certo jornalismo
acha eficaz para reverter sua crise de legitimidade. Nivelando-se pela
estupidez hegemônica, esse campo vira apenas outra ferramenta propagadora de
memes.
Ocorre que a serventia
é mais profunda e embaraçosa. O ataque à política econômica de Lula tem viés
eleitoral. E o método da campanha, misturando escracho e manipulação, revela um
pedigree bastante claro. Só precisamos entender de quem estamos rindo.
Fonte: Por Heraldo
Leite, em Outras Palavras/Observatório da Imprensa
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