Ricardo Nêggo Tom: ‘A santa ceia de
Dionísio, e um Jesus perdido entre os deuses do Olimpo da hipocrisia’
Já era de se esperar
que os “cristãos” enxergassem algo diabólico ou um apocalipse para chamar de
seu, na cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Paris. Afinal, muitos
deles se escandalizam com qualquer coisa que não tenha, de fato, relevância ou
que seja nocivo ao bem-estar social coletivo. É uma espécie de identitarismo
reverso, onde eles não se identificam com qualquer coisa ou pessoa que não seja
igual a eles. É uma fé meio narcísica, onde todos que não aparecem refletidos
no espelho de sua devoção são do mal. Ninguém satiriza, demoniza ou
ridiculariza mais a fé alheia do que os cristãos. Sobretudo, os evangélicos. As
religiões de matriz africana que o digam. Ou quando o pastor faz uma marmota e
começa a bater o pezinho no chão e gritar feito um desesperado mandando orixás
e entidades africanas se renderem às suas ordens e comandos, ele está sendo
respeitoso?
Os cristãos são haters
profissionais do culto religioso alheio. Aliás, eles são haters do próprio
culto, porque ninguém profana mais a fé cristã do que a própria Igreja e seus
líderes. Sobretudo, a igreja evangélica, um berço de barbaridades proféticas, picaretagens
ungidas em nome da prosperidade e outros absurdos que envergonham os
ensinamentos de Cristo. É essa gente que se sentiu ofendida com uma encenação
artística que reproduz uma obra chamada a “Festa dos Deuses”, do holandês Jan
Van Bijlert, que mostra os deuses do Olimpo grego em confraternização, a qual
eles associaram a Santa Ceia, último momento de Jesus Cristo com os seus
discípulos. E se fosse a Santa Ceia, onde estaria a blasfêmia? Para esses ditos
cristãos, o problema não é a referência ao momento considerado sagrado para o
cristianismo, mas sim quem estaria interpretando esse momento. No caso da
abertura dos jogos olímpicos, as “drag-queens” que, para os fundamentalistas,
são seres diabólicos.
Fico imaginando o Deus
que tudo fez, tudo criou e tudo formou, assistindo a parte de sua criação
invalidando e demonizando a existência de outra, apenas por ser diferente dela.
Um Deus que é onipotente, onipresente e onisciente, mas que teria “perdido o controle”
da própria criação, ao permitir que pessoas diferentes viessem à existência.
Diferentes de quem? De quem se julga o padrão de aceitação por parte de Deus a
ser seguido. Um narcisismo espiritual que explica o porquê de a Igreja Católica
ter inventado que Jesus é branco, loiro, tem os olhos azuis e é rei. Alguma
dúvida de que poucos entregariam a alma para um Jesus preto, de cabelo “duro” e
sem título de nobreza? Reflitamos aqui: e se Jesus voltasse como um homem
preto, ou com o cabelo meio crespo, ou mais gordinho, ou meio baixinho, com
algum traço que alguém pudesse considerar meio afeminado, com alguma
característica física que os capacitistas entendessem como defeito, com um
semblante que alguém pudesse julgar não muito acolhedor, ou com uma aparência
que não convencesse aos padrões esperados? Como seriam as reações de seus
“fiéis” seguidores?
Os questionamentos
propostos no parágrafo anterior deveriam nos fazer entender porque a volta de
Jesus pode ser considerada apenas uma retórica espiritual que nunca acontecerá
fisicamente. Até porque, muitos que se dizem salvos em seu nome, poderiam ir para
o tão temido inferno e perderem a salvação, por duvidarem da veracidade da
figura que se apresentasse como o salvador da humanidade diante deles. Se
muitos religiosos já o crucificaram anteriormente por não acreditarem que ele
era Deus que se fez homem, porque todos os religiosos acreditariam agora se ele
retornasse? Um dos questionamentos feitos à divindade de Jesus, era o de que
ele era apenas um filho de uma camponesa e de um carpinteiro. Aliás, outro
fator que pesava sobre Jesus ser aceito como Deus, é o fato de sua paternidade
ser adotiva. Ou vocês acham que naquela época todos acreditaram que Maria
concebeu através do espírito santo? Os conservadores de outrora tinham Jesus
como um filho do pecado de uma mulher que havia conhecido um homem antes de se
casar com ele. Como alguém nascido nessas condições poderia ser um rei, um deus
para o povo daquela época? Num mundo onde cada um cria um Deus à sua imagem e
semelhança, Jesus não seria tolo de voltar aqui para ser morto novamente. Me
esperem sentados e de braços abertos, como eu morri, diz ele.
Fés à parte, o que
devemos analisar toda vez que os representantes do cristianismo se manifestam
em defesa da honra de Deus, como se ele precisasse de “advogados” tão
mequetrefes, é o que (ou quem) estaria sendo colocado em oposição ao sagrado
religioso. Se a Santa Ceia tivesse sido retratada através dos Super Amigos ou
de personagens da Disney, a gritaria talvez não fosse a mesma. Mas em se
tratando de população LGBT, a coisa muda de figura. Também gostaria de ver a
reação se a cena fosse retratada por um Jesus e seus discípulos vestidos com a
indumentária das religiões de matriz africana, ou pelos orixás do panteão
africano, que são mais antigos do que os símbolos do cristianismo. Desrespeito?
Eu chamaria de diversidade artística e inclusão cultural. Desrespeito é tentar
anular a existência de pessoas e matá-las em “nome de Deus”, tendo o discurso
de ódio e preconceito como arma letal. É curioso como pessoas que não respeitam
a liberdade individual das outras, gostam de exigir respeito para com elas. Hipocrisia,
não é? São esses que estão denunciando um suposto deboche com a fé cristã.
Deboche com a fé
cristã é nos fazer crer que Jesus apoiava a escravização de seres humanos.
Deboche com a fé cristã é usar o nome de Jesus para fingir milagres e curas, e
enriquecer às custas de fiéis incautos e alienados. Deboche é vermos picaretas
da fé se apresentando como escolhidos por Deus para guiar ovelhas cegas e
carentes de conhecimento. Deboche é ver a Igreja e seus líderes, depois de tudo
que já fizeram e apoiaram ao longo da história, se sentirem ofendidos em nome
do Jesus cujo evangelho eles corromperam por interesses políticos e pessoais.
Deboche com a fé cristã é ter pastor oferecendo ladrão de joias como messias
salvador da nação. Deboche com a fé cristã é ter pastor na política legislando
contra os direitos dos pobres para os quais Jesus prometeu o seu reino. Deboche
com a fé cristã é ouvir cristãos falarem em defesa da vida, ao mesmo tempo em
que apoiam Netanyahu e o genocídio que ele comanda contra o povo palestino.
Deboche com a fé cristã é viver um cristianismo sem Cristo.
• Paris ainda é uma festa? Por Miguel
Paiva
Podemos não saber,
porém, o que surpreende na festa de abertura dos jogos olímpicos de 2024 é,
justamente, a festa. Será possível que um país, ou uma cidade pode votar e
tentar eleger uma política de extrema direita tendo essa tendência tão forte à
invenção, à variedade, à aceitação de gêneros, à criatividade moderna, à
mistura de cores e pessoas como vimos na festa de abertura?
Parece, e é,
contraditório. Só posso entender como um costume difundido e estimulado de não
comparecimento às urnas. Um país com a riqueza cultural da França não deveria
aceitar políticas tão anticulturais como as da direita. Uma tradição francesa
de humanismo, existencialismo, filosofia e psicanálise não deveria conseguir
conviver com projetos tão reacionários e próximos à barbárie como os projetos
da extrema direita.
Não deveria ser um
problema a questão migratória. O francês é hoje um povo totalmente miscigenado.
Franceses são negros, brancos, muçulmanos e orientais naturalmente. Nasceram ou
vivem na Franca e se sentem franceses apesar de preservar suas origens e dar
valor a isso.
Foi o que vimos nos
atores, dançarinos, cantores e atletas franceses.
A França é grande por
conta disso também. A mistura de culturas, de hábitos, de comidas, de roupas e
modismos deu à França uma característica moderna como se vê em poucos lugares.
Como pode eleger uma gente tão contrária a isso tudo?
O povo francês e quem
se ocupa dele deve se interessar novamente por política. Deve voltar às ruas,
às reuniões comunitárias, aos livros e ao conhecimento. Essa tradição não pode
se perder nas mãos de gente tão rude e primitiva. A cultura francesa corre em
nossas veias e nas de todo mundo assim como corre o sangue variado de todas as
pessoas que habitam o planeta. O povo não se mistura só onde o totalitarismo
prevalece, onde os dogmas religiosos, sobretudo, acabam ditando o comportamento
das pessoas.
A França é um dos
países mais laicos que conheço. É importante que permaneça assim em defesa de
um humanismo que distribui muito mais amor que as religiões. É assim que tem
que permanecer para que se possa manter acesa a esperança no futuro, do mesmo
jeito que a pira olímpica vai ficar lá acesa e iluminando as mentes que ainda
desejam essa luz. É preciso manter esse espírito humanista vivo.
• Olimpíada, desigualdade e hipocrisia.
Por Wellington Mesquita
A cada quatro anos a
abertura dos Jogos Olímpicos nos surpreende pelas apresentações arrojadas,
shows de cores e muita emoção, mas sempre que assisto à cerimônia fico abismado
com o grau de desigualdade presente também no mundo dos esportes. Outra característica
que me chama a atenção é a dose cavalar de hipocrisia que cerca o evento.
Durante um mês, um punhado de países, denominados potências olímpicas,
abocanhará quase a totalidade das medalhas. Atletas fortes e bem preparados
quebrarão recordes e exibirão suas habilidades a bilhões de telespectadores em
todo o mundo. Ao sul global, por sua vez, é relegado o papel de coadjuvante da
festa, com destaques quase sempre isolados. Basta ligar a TV nos próximos 30
dias para se cansar de ouvir os hinos dos países do G7, China e Austrália.
Se não fossem os
africanos e caribenhos, com performances extraordinárias no atletismo, a
disparidade seria ainda maior. Considerada exceção, Cuba se esforça para manter
sua força olímpica, mas perde o fôlego a cada edição. O mesmo podemos dizer de
alguns países do leste europeu, que carregam ainda uma cultura esportiva
herdada do período socialista, quando se investia pesado em todas as
modalidades. Infelizmente, o Brasil ainda está longe de ser uma potência
olímpica e se destaca graças, principalmente, à superação e ao talento de
alguns atletas. O desempenho dos países nos Jogos Olímpicos é um reflexo claro
da desigualdade global. Ganha quem investe, e investe quem tem dinheiro, com
exceções, evidentemente.
A criativa abertura em
Paris mostrou muita diversidade e bom gosto musical, como a arrebatadora
apresentação de Celine Dion. Apesar disso, o Rio Sena, que corta a capital
francesa, transbordou de hipocrisia. A começar pelo barco do time de atletas
refugiados, um dos primeiros a cruzar o curso de água. Obviamente poucos
espectadores se lembraram de outras embarcações, que todas as semanas tentam
atravessar o Mediterrâneo e a rota Atlântica, com homens, mulheres e crianças,
espremidos, lutando por sobrevivência. Muitos naufragam, como aconteceu nesta
semana na costa da Mauritânia, deixando mais de cem pessoas desaparecidas.
Todos buscavam refúgio na rica Europa, que provavelmente lhes negaria.
A presença de artistas
franceses originários de ex-colônias e departamentos, como Mali e Guadalupe,
reforçou o caráter multicultural da capital francesa, numa disputa ideológica
travada com as forças reacionárias que avançam na Europa. As magníficas apresentações
não escondem, entretanto, a tensão e insatisfação dessas localidades para com a
metrópole. Os moradores do pobre arquipélago de Mayotte, no Oceano Índico, que
o digam. Desde o início do ano, a França tenta limitar o direito à cidadania a
filhos de imigrantes nascidos no local. É apenas um exemplo da hipocrisia que
rege o chamado ocidente. Para não falar de ex-colônias francesas na África que
até hoje lutam para se libertar do jugo colonial, como o Mali, terra natal da
cantora Aya Nakamura, uma das estrelas do espetáculo de abertura.
O barco israelense
atravessou o rio parisiense com atletas alegres e radiantes, enquanto seus
concidadãos despejavam bombas e bombas sobre Gaza. A presença da delegação de
Israel - e a ausência da Rússia - é sem dúvida uma das maiores hipocrisias da
história dos Jogos Olímpicos. Maior até que a dos EUA e seus aliados, que
boicotaram os jogos de Moscou por conta da invasão soviética ao Afeganistão,
anos depois de deixarem o Vietnã e de terem apoiado golpes militares em toda a
América Latina. Os atletas israelenses não são culpados pelo genocídio
promovido por Netanyahu, mas se a Rússia foi punida pelo comitê olímpico
pela guerra na Ucrânia, Israel também
deveria ser.
A organização
caprichou na cerimônia, ressaltando a diversidade numa França cada vez mais
refém da extrema-direita. Encolhido, não só pela chuva que caiu sobre a capital
francesa, mas pelo isolamento político, o primeiro-ministro Emmanuel Macron
parecia uma rainha da Inglaterra, cercado de pompa, mas sem prestígio político.
Mais assustado, porém, ficou o rei da Espanha, Felipe VI, quando numa das
janelas de um palácio apareceu a figura antiga monarca Maria Antonieta,
decapitada. A representação da rainha austríaca, símbolo da opulência e do
luxo, que gerou tanta indignação nos tempos da revolução, hoje não provoca mais
a repulsa de outrora. Ao contrário, também ajuda a vender a imagem da capital
francesa para o mundo, o que certamente renderá bilhões de euros em turismo à
Cidade Luz.
Fonte: Brasil 247
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