quarta-feira, 31 de julho de 2024

Como eleição na Venezuela se tornou 'maior teste' para política externa de Lula

O desfecho das eleições venezuelana se tornou "um desafio enorme" e "o maior teste" para a diplomacia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, afirmam analistas em política externa ouvidos pela BBC News Brasil.

O Conselho Nacional da Venezuela (CNE) divulgou que o presidente Nicolás Maduro venceu as eleições realizadas no domingo (27/7), mas os resultados foram contestados pela oposição, que disse ter havido fraude "grosseira" para modificar os números.

Em sua primeira reação, o governo brasileiro evitou apoiar qualquer um dos lados e disse que aguardaria mais informações sobre os resultados das urnas, já que o CNE divulgou inicialmente apenas dados gerais, sem dar transparências aos números de cada mesa eleitoral, o que permitiria a checagem dos resultados.

Em nota, o Itamaraty defendeu que a divulgação dos dados desagregados por mesa de votação é "passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito".

A vitória de Maduro foi anunciada pelo presidente do CNE, Elvis Amoroso, na madrugada de segunda-feira. Segundo ele, o presidente foi reeleito por 51,2% dos votos, contra 44,2% do opositor Edmundo González, com 80% das urnas apuradas.

Já María Corina Machado, principal líder da oposição, inabilitada para exercer cargos públicos e apoiadora de González, afirmou que as atas de votação transmitidas das mesas eleitorais ao CNE dão vitória para a oposição.

Lula e seu partido (PT) foram, historicamente, importantes aliados do governo venezuelano, desde que Hugo Chávez chegou ao poder em 1999 e foi sucedido por Maduro, após sua morte em 2013.

No entanto, notam analistas políticos, essa aliança acabou se enfraquecendo, conforme aumentaram os questionamentos sobre o autoritarismo do governo Maduro e o apoio ao governo venezuelano se tornou fator de desgaste interno para Lula e o PT.

O presidente brasileiro inclusive criticou declaração de Maduro de que haveria "banho de sangue, em uma guerra civil fratricida" se ele não vencesse as eleições. E o líder venezuelano reagiu dizendo que o sistema eleitoral brasileiro não seria auditável como o da Venezuela, o que foi repudiado, no Brasil, pelo Tribunal Superior Eleitoral, que desistiu de enviar dois observadores para acompanhar o pleito.

É nesse contexto que o diplomata aposentado Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, avalia a eleição venezuelana como "o maior teste nesse ano e meio de governo do Lula na política externa".

"Vamos ver se o governo vai atuar com base nos interesses brasileiros ou de acordo com princípios ideológicos", disse ainda à BBC News Brasil.

Sua expectativa é que o governo Maduro não vai divulgar os dados detalhados da votação, deixando o Brasil numa "sinuca de bico".

"Não sei como [a diplomacia e o governo Lula] vão sair dessa. Já arranjaram desculpa, disseram [o governo Maduro] que um hacker entrou lá no sistema eleitoral, então vão dizer que não tem ata", acredita Barbosa.

·        'Itamaraty colocou pressão sobre regime Maduro'

Professor de Política Internacional e Comparativa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dawisson Belém Lopes também vê o desfecho da eleição venezuelana como um "desafio enorme" para a diplomacia de Lula.

Ele ressalta que a posição divulgada pelo Itamaraty representa uma "ruptura" na tradição brasileira de não interferência em questões domésticas de outros países e "colocou pressão pública sobre o regime de Nicolás Maduro".

Segundo a Constituição Brasileira, as relações internacionais do país são regidas por dez princípios, incluindo a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a prevalência dos direitos humanos e a defesa da paz.

"Essa decisão brasileira de, de uma forma suave, impor condições para o reconhecimento de um governo ou de um processo eleitoral, é bastante atípico", nota Lopes.

"O que acontece, via de regra, é que o Brasil reconhece, qualquer que seja, o governante, entendendo que não cabe ao Brasil atuar na política doméstica de outros países. Então, há sim uma novidade, uma ruptura, até eu diria, de trajetória", acrescentou.

Na visão do professor, essa mudança reflete como a Venezuela "se tornou um fator muito perturbador para a política regional, com implicações para a política doméstica, para a política eleitoral dos países (da região), inclusive o Brasil".

Lopes ressalta que o governo Maduro hoje não é apenas rechaçado por governos de direita na região, mas também sofre críticas de líderes de esquerda, como os presidentes do Chile (Gabriel Boric) e da Colômbia (Gustavo Petro)

"A diplomacia do Brasil tem tentado reintegrar a Venezuela ao conserto regional da América do Sul em vão. Há muitas resistências ao governo de Nicolás Maduro".

"Então, de uma certa maneira, dá para dizer que a aspiração brasileira de reativar a Unasul [União de Nações Sul-Americana] e de restituir o projeto de integração regional sul-americano esbarra no fator Maduro, e tem sido cada vez mais difícil, mesmo para o Brasil, coordenar-se com o governo venezuelano", acrescentou.

Ele lembra ainda que a continuidade do governo Maduro traz riscos de mais instabilidade para a região, na medida em que o presidente venezuelano reivindica a região de Essequibo, hoje território da vizinha Guiana, como sendo da Venezuela.

"Se Maduro, por exemplo, cogitar invadir a Guiana, cenário hipotético, isso pode trazer as potências mundiais para o nosso quintal. Estou falando dos Estados Unidos (críticos do governo Maduro), China e Rússia (aliados do governo Maduro). Certamente é uma perspectiva que não nos interessa. A manutenção dessa paz e segurança regionais é algo que o Brasil preza e o Brasil vai tentar garantir", disse ainda.

Pedido do Brasil não é interferência, diz consultor

Mestre em direito internacional pela USP e consultor em Direitos Humanos, o advogado Victor Del Vecchio está na Venezuela acompanhando o processo eleitoral.

Ele disse à BBC News Brasil que o clima nos últimos dias foi de grande mobilização nas ruas, tanto de apoiadores do governo quanto de eleitores da oposição, sendo difícil apontar um lado favorito na disputa.

"Eu pude viajar por seis estados diferentes, conversei com pessoas de diferentes estratos sociais, matriz político-ideológica, nível de instrução, e, de fato, o país estava muito dividido. Seria impreciso e irreal abraçar qualquer uma das narrativas que tenta dizer que havia uma vantagem esmagadora nas ruas de um lado ou de outro", diz.

Antes da eleição, a maioria das pesquisas no país indicavam que o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, liderava a corrida presidencial.

Del Vecchio considera que foi "muito acertada" a decisão do governo Lula de demandar informações mais completas do resultado eleitoral antes de se posicionar.

"Inclusive porque, pelo que tenho conversado com muitos especialistas e observadores internacionais, o sistema de votação venezuelano é muito seguro", afirmou.

"Mas, para que essa segurança se efetive, o processo eleitoral precisa ser completo. Então, o que o Brasil está pedindo é justamente que o processo transcorra até o final com essa confirmação de votos através da entrega de atas (de votação das mesas eleitorais), o que pode confirmar que o resultado divulgado é de fato o resultado obtido nas urnas", acrescentou.

Para Del Vecchio, o pedido do Brasil por dados mais transparentes "não extrapola limites da diplomacia brasileira".

"Esse princípio [de não intervenção] tem limites. E eu acredito que observar a autodeterminação do Estado venezuelano, em alguma medida, também significa fazer esforços para que o país consiga conduzir um pleito eleitoral justo e limpo", argumenta.

"Pensando em outros princípios das nossas relações exteriores, inclusive nas nossas estratégias enquanto liderança regional, o Brasil tem um papel muito importante de balizar boas práticas democráticas na região. Entendo que essas medidas que o país tem tomado vêm nessa linha", reforçou.

·        Quais podem ser os próximos passos do Brasil?

Se não houver a divulgação das atas eleitorais, o governo brasileiro enfrentará um "impasse" sobre reconhecer ou não a eleição de Maduro, prevê Del Vecchio.

Ainda assim, ele acredita que o Brasil pode seguir uma postura pragmática, mantendo as relações com o governo venezuelano, apesar das contestações ao resultado.

"Talvez nunca se chegue a um resultado que o Brasil possa reconhecer plenamente, mas, tacitamente, ele o tenha que fazer em razão de relações diplomáticas, comerciais e até estratégicas em termos de geopolítica com o nosso vizinho venezuelano", analisa.

"E claro, também deve haver um cuidado por parte do Lula de ser pragmático. Em alguma medida, ele precisa reconhecer o governo do Maduro, mas ele também não precisa mostrar grande conivência e amizade com o mandatário", ressalta.

Para Dawisson Belém Lopes, professor da UFMG, a reação do governo brasileiro, caso não sejam divulgados dados confiáveis do resultado eleitoral, dependerá dos desdobramentos internos da Venezuela.

"O que vai acontecer é muito contingente de qual será a reação da sociedade venezuelana. Eu acho que esse é o primeiro e mais importante vetor. O papel do Brasil não pode ser primário nesse processo", afirma.

"Dependendo do grau de conflagração, de conflito social na Venezuela, a resposta pode ser uma ou outra, ou uma terceira", reforça.

Já o embaixador Rubens Barbosa acredita que o governo Lula vai aguardar a reação de outros atores internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Centro Carter, principal organização internacional que acompanhou as eleições na Venezuela.

As duas instituições também pediram que sejam divulgados dados detalhados da apuração eleitoral.

 

¨      Governo Lula diz que dados de cada mesa de votação são necessários para credibilidade do resultado

governo brasileiro disse nesta segunda-feira (29/07) que aguarda a divulgação de dados mais completos sobre a eleição na Venezuela, realizada no domingo (28/7).

O Conselho Nacional da Venezuela (CNE) divulgou que o presidente Nicolás Maduro venceu as eleições, mas os resultados foram contestados pela oposição, que disse ter havido fraude "grosseira" para modificar os números.

Segundo María Corina Machado, principal líder da oposição, González Urrutia teria recebido 6,27 milhões de votos, enquanto Maduro teria tido 2,75 milhões. De acordo com ela, a oposição teria em seu poder 73,2% das atas de votação (algo como o boletim de urna no Brasil).

“Com as atas que nos faltam, mesmo que o CNE tenha dado 100% dos votos a Maduro, não alcançaria o que já temos. A diferença foi tão grande, tão grande, avassaladora, em todos os Estados da Venezuela, em todos os estratos, em todos os setores… Ganhamos", disse Machado.

Já Maduro, na cerimônia em que foi oficialmente proclamado como presidente eleito, acusou os opositores e a "extrema direita" no exterior de tentarem desestabilizar o país.

"Não é a primeira vez que enfrentamos o que enfrentamos hoje. Está sendo feita uma tentativa de impor um golpe de Estado na Venezuela, novamente. De natureza fascista e contrarrevolucionária", disse Maduro, apontando que estariam em curso os "primeiros passos" para desestabilizar o país.

"Os mesmos países que hoje questionam o processo eleitoral venezuelano, a mesma extrema direita fascista... foram os que quiseram tentar impor ao povo da Venezuela, acima da Constituição, um presidente espúrio, usando as instituições do país", disse ele, em alusão à autoproclamação como presidente interino do deputado Juan Guaidó, em 2019.

Segundo o presidente do CNE, Elvis Amoroso, Maduro obteve 51,2% dos votos, contra 44,2% do opositor Edmundo González, com 80% das urnas apuradas.

Em nota do Itamaraty, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que "saúda o caráter pacífico da jornada eleitoral de ontem na Venezuela e acompanha com atenção o processo de apuração".

Em seguida, ressaltou a importância da transparência na divulgação dos dados.

Até o momento, o CNE divulgou apenas dados gerais, sem desagregar os resultados das urnas.

"[O governo brasileiro] Reafirma ainda o princípio fundamental da soberania popular, a ser observado por meio da verificação imparcial dos resultados", diz a nota do Itamaraty.

A nota diz, ainda, que o governo brasileiro "aguarda, nesse contexto, a publicação pelo Conselho Nacional Eleitoral de dados desagregados por mesa de votação, passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito".

Na noite de segunda-feira, o Itamaraty divulgou uma outra nota, dessa vez alertando brasileiros que moram ou têm viagem marcada para a Venezuela sobre a segurança no país, "em vista dos recentes acontecimentos".

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) brasileiro tinha planos de enviar dois observadores para acompanhar o pleito na Venezuela, mas a Corte desistiu alguns dias antes das eleições após Maduro dizer, sem provas, que as urnas brasileiras não são auditáveis.

"Em face de falsas declarações contra as urnas eletrônicas brasileiras, que, ao contrário do que afirmado por autoridades venezuelanas, são auditáveis e seguras, o Tribunal Superior Eleitoral não enviará técnicos para atender convite feito para acompanhar o pleito do próximo domingo", disse o TSE em nota.

<><> Importância do posicionamento brasileiro

O governo venezuelano já foi acusado de cometer fraude eleitoral, e as eleições de 2018 foram consideradas ilegítimas por uma aliança formada por 14 nações latino-americanas mais o Canadá e os Estados Unidos.

Em 2024, no entanto, acordos entre oposição e governo chamados Acordos de Barbados permitiram a realização das eleições.

Segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil antes da eleição, o Brasil deve ter papel de destaque na política venezuelana nos próximos meses.

O período entre a divulgação dos resultados e a posse presidencial, em janeiro, vai exigir dos países em torno da Venezuela - e especialmente do Brasil - muito cuidado na mediação entre as partes, afirmou Carolina Silva Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

O governo Lula já exerceu esse papel de mediador em outras ocasiões, inclusive durante as negociações para os Acordos de Barbados.

"Muitos acreditam que, sem a intervenção do Brasil, em especial a atuação pessoal do presidente Lula, o candidato da oposição Edmundo Gonzalez não estaria concorrendo e a situação seria semelhante à de 2018, quando havia pouco desafio a Maduro", afirma Phil Gunson, analista sênior da organização Crisis Group, que acompanha a situação venezuelana, sobre as negociações para o pacto.

O Brasil de Lula também trabalhou nas conversas entre a Venezuela e a Guiana após a crise pela disputa da região de Essequibo.

Uma reunião entre os chanceleres das duas nações aconteceu em Brasília em janeiro deste ano, com a mediação do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.

Para Phil Gunson, agora Brasil e Colômbia terão um papel crucial.

"Na Venezuela, não existem instituições neutras; o Supremo Tribunal e a autoridade eleitoral estão totalmente controlados pelo governo. Portanto, a comunidade internacional tem um papel vital, já que a oposição não tem a quem recorrer internamente para apresentar seu caso", diz Gunson.


Fonte: BBC News Brasil

 

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