segunda-feira, 29 de julho de 2024

Samuel Kilstjan: ‘A violência dos Outros’

Até a primeira metade do século XX, a cultura ocidental ostentava teorias racistas científicas que justificavam o domínio dos europeus sobre o globo terrestre. Contudo, a ascensão e a queda do III Reich representou um ponto de inflexão nesta cultura e o surgimento de movimentos de libertação dos povos colonizados. Mesmo assim, os ocidentais, hipocritamente, continuam ostentando o troféu de pacifistas e caracterizam como violenta e terrorista toda e qualquer manifestação contrária aos interesses do mundo ocidental civilizado, ou seja, qualquer manifestação dos Outros.

Terroristas eram e continuam sendo os argelinos, moçambicanos, vietnamitas, colombianos, iranianos, palestinos etc. Terrorista não era a Ditadura militar no Brasil empenhada em prender, torturar e exterminar as pessoas que se manifestavam contra os desmandos dos militares que, encorajados pelo mundo ocidental durante a Guerra Fria, assumiram o poder em um golpe de estado; terroristas eram os Outros.

Violento era Frantz Fanon, este descendente de africanos subsaarianos, nascido na Martinica caribenha, que se doutorou na França, voltou para a África, para o Magrebe, e se transformou em um militante da Frente de Libertação Nacional da Argélia, esse intelectual com uma trajetória transnacional que só mesmo um império colonialista como a França poderia ter produzido.

Adam Shatz, autor de The Rebel’s clinic: the revolutionary lives of Frantz Fanon, posicionou-se prontamente sobre o massacre em Gaza, logo em 19 de outubro de 2023. Depois do 7 de outubro, os cidadãos da “única democracia do Oriente Médio”, ao sentirem o desamparo e o terror que os palestinos vivenciam há um século, se empenharam fortemente em acabar com a violência dos Outros.

Mas, em meio à atual carnificina veiculada em cores e em tempo real, enquanto alguns israelenses continuam achando que a vida em Israel segue seu curso normal, graças a seu poderoso exército “de defesa”, outros israelenses parecem começar a se sentir preocupados com o futuro do estado judeu.

Tantura se transformou em um ponto chave para a desconstrução da maquiada narrativa épica oficial da criação do Estado de Israel, de que 700 mil entre os 900 mil palestinos, que então constituíam a maior parte da população do país, simplesmente abandonaram suas casas, aldeias e cidades. A dissertação de mestrado O êxodo dos árabes das aldeias ao pé do Monte Carmel do Sul, apresentada por Theodore Katz em 1998, foi banida de todas as bibliotecas do país. Em 2022, Alon Schwarz retomou a polêmica lançando um documentário em que entrevista soldados da Brigada Alexandroni, responsável pelo Massacre de Tantura em 1948. Schwarz declarou que qualquer futuro para o Estado de Israel deve necessariamente passar pelo reconhecimento da violência sionista. E a questão ganhou novamente as manchetes dos jornais israelenses.

No documentário de 2022, entre os vários depoimentos de soldados que afirmam “matamos eles, sem remorsos” e “se você os matava era coisa boa”, Amitzur Cohen revela “Era o tempo em que Ben-Gurion dizia que tínhamos que fazer de tudo para expulsar os árabes… Eles fugiam sem lutar. Não lutavam, nada. Quando nós entrávamos nos vilarejos, o pão ainda estava quente. Nós os expulsamos? Nós lutamos, não expulsamos ninguém. Quem fugiu, fugiu… Eu era um assassino, se alguém levantava a mão, eu não fazia prisioneiros, matava todos a tiro”.

Quantas pessoas você acha que matou desse jeito? “Eu não contava. Eu realmente não poderia saber. Eu tinha uma metralhadora com 250 balas. Veja, eu atirava, não poderia contar.” (E Amitzur diz isso rindo a ponto de chacoalhar o corpo.) “Não contei para ninguém sobre isso, nem para minha esposa. O que contaria? Que eu era um assassino?” (Novamente, diz isso rindo, chacoalhando, sem se dar conta das contradições em seu discurso.) Nos arquivos do exército, provavelmente divulgado por descuido, há um documento que faz referência a uma vala comum no cemitério da aldeia de Tantura.

Em 2021, durante a pandemia do coronavírus, participei como ouvinte de um seminário on-line sobre o Holocausto e as ditaduras latino-americanas durante os anos da Guerra Fria. O fato de eu ser filho de judeus poloneses sobreviventes e ter sido preso político no Brasil chamou a atenção de uma historiadora israelense. Demos então início a um intenso e frutífero relacionamento via email… até que ela leu meu texto Returnees, que narra o êxodo dos israelenses da Terra Prometida no início dos anos 1950, e me deixou falando sozinho.

Na antiguidade, estima-se que 90% dos hebreus abandonaram a sua cultura para abraçar em massa a sedutora cultura helenística dominante e que apenas 10% continuaram fiéis à sua tradição, desafiando o poder central. Da mesma forma, estima-se hoje que 90% dos judeus israelenses e da diáspora abraçam a sedutora cultura ocidental “civilizada” em sua luta contra a violência dos Outros.

E isto vale tanto para os judeus laicos como para os religiosos liberais e ortodoxos. A grande maioria dos ortodoxos segue sendo sionista, mas os apolíticos Satmar e os aguerridos Neturei Karta são fervorosos antissionistas fiéis à milenar cultura pacifista da diáspora, não matarás!

 

•        “O desejo turbocapitalista não pode ser satisfeito”. Por José Daniel Espejo

Certamente você conhece alguém assim. Essa pessoa passa o ano compartilhando conteúdos ecoativistas, denunciando as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e os recordes de temperatura. Também a gentrificação. Certamente até o turismo. Chegam as férias e zás! Portão de embarque no Instagram. E não exatamente para ver a família. Praga, Roma, Copenhague. Toda pinta de um voo barato de última hora. De qualquer forma, lugares sem qualquer ligação com o personagem em questão, a quem cada qual chama de uma determinada forma (“sofista turista” – ou vice-versa – na minha cabeça).

Ou talvez o que acabei de descrever seja adequado para você. Lhe incomoda? Você está tentando se livrar disso? Talvez tenha lhe ocorrido que sou um hipócrita e também poluo e escondo uma enorme pegada ecológica por trás das minhas pretensões de pureza. Bem, sem dúvida a minha pegada é maior do que quero admitir, como a de quase todo mundo. Mas fique comigo mais um pouco. Eu prometo a você que o que estou tentando fazer com este texto não é você se sinta mal.

Já que falamos sobre enormes pegadas, vamos agora olhar um pouco para o elefante gigante e silencioso no centro (e nas laterais, e ao redor) da sala. Os nossos valores estão, de modo geral, bastante desconectados das nossas práticas, do nosso consumo e dos nossos desejos, e o planeta – que sofre muitíssimo com estes últimos (nossos desejos) – não se importa muito com os primeiros (nossos valores). Não vai ser batendo no peito que sairemos dessa. Nem – infelizmente – baseado apenas em decretos-lei, embora Greta Thunberg saiba que eles ajudariam.

Em Múrcia, experimentamos isso muito bem no ano passado: diga à pessoa com os melhores sentimentos ambientais que um novo plano de mobilidade vai atrasar o seu acesso à autoestrada em dez minutos, e registre a sua irritada resposta. Não apenas o desejo e o consumo: também a impaciência, a frustração e o desconforto das nossas vidas em comum nas cidades contemporâneas determinam a nossa práxis e inclusive o nosso posicionamento político, a nossa ideologia.

O hiato entre discurso e desejo é um dos grandes temas do pensamento crítico no Antropoceno. Mark Fisher e Amador Fernández-Savater enfrentam-no, recuperando Marcuse e Lyotard para isso: uma surdez libidinal impede que ativistas e políticos de esquerda percebam o enorme apelo – e, portanto, poder – das práticas hiperconsumistas da sociedade contemporânea. Uma espécie de energia obscura inconsciente, um ectoplasma capitalista nos permeia, atravessa e nos direciona, pelo menos os nossos desejos mais urgentes. Incluindo, claro, pegar aquele avião poluente para aquela cidade onde você não perdeu nada.

Uma nuance importante deste desejo turbocapitalista é que ele não pode ser satisfeito. O bem-estar produzido pelo cumprimento das suas constantes promessas é efêmero. Logo depois, nos encontraremos com um novo produto, uma nova experiência a fazer. Seu objetivo não é nos proporcionar bem-estar, mas nos manter produtivos e competitivos, girando a roda em busca de mais uma recompensa.

Nem é preciso dizer que o desconforto se acumula, de tanto girar. O tempo de descanso, o tempo de lazer, o tempo de relação, o tempo de cuidado e até o tempo de cura estão sendo minados pelo mandato da produtividade contínua e da acumulação de capital, não apenas financeiro, mas também social, cultural, visual, sexual, viral... As redes sociais serviram para estabelecer valores quantitativos para cada um dos minutos de nossas vidas.

Cresce uma sensação geral de cansaço, de falta de tempo, de não conseguir nada, de estar perdendo várias competições ao mesmo tempo. E de fato as estamos perdendo. As crises sobrepostas de precariedade, moradia, taxas de natalidade ou de saúde mental são responsáveis pelo empobrecimento e pela violência exercidos nas vidas profissionais, especialmente nas mulheres jovens.

Isso significa que não há nada que possamos fazer? Significa que tudo está por fazer, no macro e no micro, no político e no cultural, no econômico e no social. Podemos partir de uma perspectiva tão desoladora como a de Italo Calvino, que em As Cidades Invisíveis (1972) nos alertou que “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

O mestre Calvino não é explícito sobre isso, mas pelo seu fragmento fica claro que a atenção e o aprendizado contínuos também devem ser direcionados para o nosso próprio interior, para aprender a reconhecer quais desejos, dentro do inferno do qual fazemos parte, não são inferno, e fazê-los durar.

Compartilhar nas redes sociais o enésimo recorde de temperatura recentemente quebrado em nossa cidade, e acompanhá-lo com um sincero “não sei o que mais precisamos para acordar de uma vez por todas”, não é ruim. Desistir da oferta de última hora para conhecer Budapeste e passar duas semanas na cidade é outro nível. O primeiro dá favoritos e o segundo os remove. Você pode se gabar mais de Budapeste do que de Moratalla. Mas isso não significa que essa reviravolta inesperada não tenha suas vantagens.

Alerta de spoiler: em A solidão do corredor de longa distância (1959), um jovem problemático da classe trabalhadora de Nottingham se vê confinado a um reformatório após cometer um crime menor. Ali descobre suas habilidades como corredor, que também não passam despercebidas ao diretor da instituição. Em troca de pequenas vantagens na prisão, o adolescente Colin Smith é pressionado a representar Ruxton Towers em um determinado campeonato. Finalmente, depois de uma largada brilhante com a qual deixa os demais corredores para trás, Colin desiste da vitória tão somente por ficar parado a um passo da linha de chegada.

É possível desejar a renúncia? Perder os pontos voluntariamente, algo que a nossa sociedade quantifica e valoriza como positivo? Encontrar prazer em descer da roda do hamster? Aqueles de nós que acreditam que isso pode ser feito geralmente usam como exemplo os prazeres da indolência, da perambulação, da conversação, do flaneurismo. Mas também não esqueçamos as atividades complexas nas quais desenvolvemos, sem nos autoexplorar, os nossos conhecimentos, paixões e entusiasmos em virtude de motivações não hipercompetitivas.

Posso estar me estendendo demais, ou talvez, em vez de estender, o que estou fazendo é divagar, ensaiar meandros de sentido que serpenteiam por aquela área um tanto pantanosa que diz respeito ao libidinal e ao pré-linguístico. Talvez esteja inventando novas razões, algo que, segundo [José] Lezama Lima em Paradiso (1966), é típico do sofista (turista).

O seu antídoto: tentemos inventar novas paixões ou reproduzir as antigas com igual intensidade. A ênfase é minha. Inventar novas paixões, e, se possível, não infernais, como é fácil dizer isso, mestre Lezama Lima. Pode ser que a última parte, reproduzindo as antigas, seja mais fácil. Conscientemente, deliberadamente, saboreando-as, projetando nelas as emoções primordiais e, ao mesmo tempo, desfrutando da renúncia de viver uma nova paixão intercambiável e pré-fabricada, de consumo rápido. Talvez só isso seja suficiente.

 

Fonte: A Terra é Redonda/IHU OnLine

 

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