Salvador: Moradores antigos do Centro
Histórico pagarão alto preço com chegada de grandes empreendimentos
No Centro Histórico de
Salvador, centenários prédios entre a Praça da Sé e a Rua Chile estão dando
lugar a hoteis e restaurantes de luxo. A mudança na paisagem urbana está
acompanhada de um aumento significativo no custo de vida na região. O
surgimento de empreendimentos comerciais de alto padrão e as obras em curso
trazem uma nova fase para o local, levantando preocupações entre antigos
moradores e comerciantes sobre os possíveis benefícios e prejuízos dessa
transformação.
A quarta matéria da
série “Da Decadência Urbana às Noites de Luxo no Centro de Salvador” explora
como essas melhorias urbanas podem levar ao aumento dos preços de aluguel,
alimentação e serviços, refletindo o fenômeno da gentrificação. Ele ocorre
quando um bairro se torna mais caro e mais sofisticado, o que pode beneficiar a
área, mas também pode deslocar os moradores que já viviam lá.
• Investimento de grandes grupos
No Centro Histórico de
Salvador, grandes grupos empresariais enxergam na decadência uma oportunidade
para revitalizar o Centro, utilizando suas riquezas para transformá-lo em um
ponto promissor da economia de luxo soteropolitana.
Um dos principais
investidores na transformação da região é o Grupo Fera Investimentos, que
adquiriu vários imóveis na área. Em entrevista ao BNEWS, o advogado Felipe
Almeida, que participou da venda de cinco imóveis para o Grupo Fera no final do
ano passado, acredita a área será reconfigurada para atender a um público de
alto padrão, com a expectativa de que a transformação traga um novo perfil para
a região. “As coisas por ali vão mudar muito. Vai ser para um público de nível
A +”, avalia.
As vendas das quais
tem participado são em locais como a Rua Chile, Rua Carlos Gomes e o Comércio.
Ele explica que são imóveis antigos, por vezes com dívidas e em estado crítico
de conservação, mas em pontos privilegiados da cidade, com vista para a Baía de
Todos-os-Santos.
• Deslocamento dos residentes históricos
A chegada das empresas
de alto padrão não é bem aceita por alguns moradores do Pelourinho. A trancista
Natasha Mendonça, de 24 anos, vive no local desde que nasceu. Mora em uma casa
própria, o que considera um aspecto facilitador, mas diz ver conhecidos migrando
para outros bairros devido ao aumento do custo de vida e às desocupações
durante projetos de requalificação feitos no bairro nos últimos anos.
"Dá pra contar
nos dedos quantas famílias moram, de fato, no Pelourinho. Porque o público
maior é hoteis, pousadas… E o povo se vê sufocado a sair daqui", protesta.
Ela frisa que a maioria dos moradores trabalha no local e a distância do trabalho
gera obstáculos, como mais horas fora de casa e maior custo no dia a dia.
Um ex-morador da
região, que preferiu não se identificar e trabalha como hostess em hoteis e
restaurantes locais, relata que, apesar da conveniência de viver próximo ao
trabalho, foi forçado a deixar o Pelourinho. “Ficou mais barato morar em Brotas
do que morar aqui”, lembra, ao classificar o momento como “péssimo” para os
antigos habitantes.
• Impactos
O economista e
professor universitário Edísio Freire explica que empreendimentos de luxo podem
provocar gentrificação. Ele observa que, à medida que o ticket médio aumenta,
isso pode ser economicamente positivo, pois indica desenvolvimento da área. No
entanto, sugere que esse processo pode levar à segregação de algumas famílias
que não conseguirem acompanhar as mudanças econômicas.
"O ticket médio
começa a aumentar. Isso é muito positivo do ponto de vista econômico, porque a
área se desenvolve. Com um público disposto a pagar um preço maior, é preciso
oferecer um serviço melhor. Então, a região fica mais cara. E talvez algumas
famílias que não conseguirem acompanhar esse processo acabem sendo
segregadas", explica.
O vice-presidente do
Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA), Ernesto Carvalho,
reforça que a segregação socioespacial ou socioeconômica é característica da
gentrificação. “Provoca a saída de moradores ou frequentadores antigos por
causa do aumento do custo de vida. Pode acontecer em áreas urbanas onde há
expectativa de valorização ou revalorização imobiliária”, acrescenta.
Conhecido como ‘Mestre
Calá’ no Pelourinho, Clarindo Silva passou a vida inteira na região. Dos seus
82 anos, 53 foram dedicados à administração do renomado restaurante Cantina da
Lua, localizado no Terreiro de Jesus. Para ele, a chegada de empresas de alto
padrão contribui para a preservação da área, além de gerar empregos e renda. No
entanto, ele ressalta a importância de não prejudicar a população local e
defende a implementação de ações sociais. “As pessoas precisam ter
sensibilidade de que nós é que estamos aqui há vários anos. Merecemos respeito
e isso a gente cobra da maneira mais enfática possível”, diz.
A líder comunitária do
Santo Antônio Além do Carmo, Tânia Pastori, enxerga oportunidades de emprego na
região e acredita que a inflação não tem afetado negativamente a população
local. “É uma área de classe média. Tem pessoas de baixa renda, mas não como em
outros lugares. Até essas famílias gostam das coisas que acontecem, porque
conseguem renda.” Também reforça que os imóveis ficaram muito mais valorizados,
com alguns alcançando preços em torno de R$ 1 milhão.
Tânia aponta que os
moradores dominam os estabelecimentos do bairro e fazem parte da característica
local. Por isso, não acredita em um possível processo de migração. “Os
visitantes não querem ver uma avenida de longe. Querem ver um bairro bucólico,
parecendo interior. Por isso, precisamos predominar o comércio, para evitar a
gentrificação”, acredita.
O sociólogo e
professor do Serviço Social da Indústria (Sesi), Leandro Passos, sugere que a
percepção da população em relação ao aumento do custo de vida e às mudanças na
cidade está diretamente relacionada à degradação da qualidade de vida e à
segregação espacial.
O especialista explica
que o aumento do custo de vida resulta na perda de recursos econômicos, levando
a restrições no consumo e no acesso a serviços comuns, enquanto a segregação
espacial provoca um sentimento de estranhamento em relação a um espaço que
antes era familiar.
“Isso pode ser
facilmente observado em Salvador em bairros que passam por um processo de
gentrificação, a exemplo do Santo Antônio Além do Carmo, no qual anteriormente
tinha em todo seu ecossistema uma dinâmica mais popular e devido a intervenções
urbanas e econômicas mudam a natureza da região. Compra e reforma de imóveis
por grandes empresas e consequentemente a elevação do seu padrão alteram a
destinação social fazendo surgir moradias com valores mais caros e
empreendimentos voltados a um público que não os dos moradores tradicionais
daquela localidade. Sendo assim, é inevitável não ocorrer uma segregação e uma
hostilidade ainda que sutil às camadas mais populares”, explica.
Já o economista e
professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcos Alban, defende que a
gentrificação não se aplica ao Centro Histórico. Ele aponta que não há
infraestrutura suficiente para atender a população de alto padrão em setores
como o de mobilidade, como acontece em áreas nobres. Alban ressalta que há
restrições para as modificações que seriam necessárias, por ser uma área
tombada.
Para que os novos
empreendimentos se firmem a longo prazo, o especialista aponta como solução a
moradia popular. Ele diz que a movimentação local proporciona sensação de
segurança aos turistas e visitantes. “É preciso que os soteropolitanos ocupem o
Pelourinho, morem na Rua Chile, da mesma forma que moram no Santo Antônio Além
do Carmo”, defende.
O vice-presidente do
CAU-BA, Ernesto Carvalho, destaca que a utilização de prédios públicos pela
iniciativa privada pode contribuir para o processo de gentrificação. Segundo Carvalho, embora isso possa gerar
oportunidades de trabalho para diversas faixas socioeconômicas, a definição de
áreas inteiras para empreendimentos exclusivos, se não for bem planejada, pode
intensificar esse processo.
Ele defende que o
poder público deve equilibrar a revitalização com a criação de moradias
populares e o estímulo ao surgimento de serviços essenciais, como mercados,
farmácias e escolas. "Poderia se converter em oportunidade de trabalho
para diversas faixas socioeconômicas. Mas a definição de zonas inteiras
destinadas a empreendimentos exclusivos tende, se não bem dimensionada ou
devidamente planejada, a ser uma âncora desse processo", diz.
• Desenvolvimento é necessário e gentrificação
é inevitável
O economista Edísio
Freire concorda que o desenvolvimento é necessário e que a gentrificação é
inevitável, mas acredita que um equilíbrio será encontrado. Ele prevê que o
início do processo será marcado por adaptações, com desafios para alguns e
oportunidades para outros.
"O momento
inicial vai ser de adaptação, com agonia para uns e alegria para outros. Quem
conseguir se adaptar vai se manter, e os que não conseguirem vão precisar
encontrar novos caminhos. E as empresas que chegarem vão promover o
desenvolvimento na região. Mas à medida que as coisas forem evoluindo, a
estrutura em si vai se adaptar", avalia.
Em meio a essa
discussão, a transformação do Centro Histórico de Salvador segue em plena
ebulição, impulsionada pela chegada de empreendimentos de alto padrão e pela
valorização dos imóveis. O equilíbrio entre progresso e preservação será
crucial para garantir que a evolução da região beneficie a todos, sem
sacrificar a identidade e o bem-estar das comunidades históricas.
Fonte: BNews
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