Maria Lucia Fattorelli: ‘O agravamento da
financeirização no Brasil’
Nosso planeta sempre
esteve em mutação, desde a sua origem, pois é um ser vivo, porém, em alguns
períodos essas mudanças ficam mais exacerbadas. É o que temos assistido nas
últimas décadas: uma aceleração de inúmeras mudanças, em todos os aspectos,
passando pela questão ambiental, comportamental e social, política, econômica,
financeira, e, acima de tudo, ética.
O desafio para
compreender e analisar essa conjuntura é imenso, por isso se busca analisar
cada aspecto separadamente, sem, contudo, perder a visão geral do todo, pois
tudo está intrinsecamente relacionado.
Nesse texto vou
procurar analisar a grande mudança na área da economia e finanças. Essa área
tem sido marcada, mais fortemente desde a década de 1970, pelo processo que se
denomina Financeirização Mundial, coincidindo – não por acaso – com a exacerbação da
concentração de renda nas mãos de alguns setores privilegiados e aumento da desigualdade social e dos danos ambientais.
O fenômeno
da Financeirização não surge por acaso, mas é fruto de um modelo
impulsionado por organismos internacionais, como FMI e Banco
Mundial, que passaram a determinar alterações legais para permitir liberdade
para a movimentação de capitais e mercadorias mundo afora, pregando grandes
vantagens da denominada “globalização”, que na prática pouco entregaram, como nos ensina o Prof. Dr. Miguel Bruno em seu brilhante artigo “Financeirização, neoliberalismo e
captura do Estado: uma tríade antidesenvolvimento do Brasil”.
O fetiche da
“globalização” era de fato irresistível, pois as fronteiras entre os diversos
países seriam abertas, concretizando-se o antigo sonho de comunhão
universal, porém, somente para fins comerciais e financeiros. Evidentemente,
essa liberdade não se estenderia às pessoas, como vimos em inúmeras e
dramáticas situações de rejeição à imigração. Que globalização é essa?
As alterações legais
que avançaram em todo o mundo nos anos 90 levaram a uma desregulamentação de
normas, justamente para facilitar o trânsito de capitais e mercadorias, abrindo
espaço para o avanço na criação de produtos financeiros e atuação de mecanismos
que buscam a valorização do capital por ele mesmo, de forma artificial e sem a
devida correspondência em geração de produto, trabalho e renda. Dessa forma, o
fenômeno da Financeirização acaba influenciando não apenas a esfera
pública e estatal em todo o planeta, o funcionamento dos bancos centrais,
mas afeta também a economia real, já que muitas empresas optam por ganhos
financeiros mais fáceis e lucrativos que o obtido em sua atividade operacional.
A Financeirização
aprofundou o neoliberalismo, na medida em que os ataques essencialmente ideológicos contra
o Estado de bem-estar social, às regras do sistema monetário internacional
estabelecidas pelo acordo de Breton Woods e às políticas keynesianas pró-crescimento e geração de
emprego eram convenientes à defesa da desregulamentação almejada, consolidando
a implementação de modelos econômicos dependentes da alta finança internacional
com seus interesses rentistas e operações especulativas:
Esta é a origem dos
processos de financeirização que se espalhou pelo mundo, graças ao advento das
novas tecnologias da comunicação e da informação que permitiu a formação de
mercados globais sob tutela dos interesses geopolíticos e geoeconômicos dos EUA.
Com praticamente todos os canais financeiros internacionais controlados
por Washington, a economia desse país se torna, na década de 1990, a mais
financeirizada do mundo (Boyer, 2000). Fato que lhes permitiu até a atualidade
subordinar e controlar os mercados bancário-financeiros tanto dos países
europeus quanto os da América Latina e de demais regiões do mundo.
A captura
dos Estados nacionais passou a ficar cada vez mais evidente,
submetidos a esse modelo econômico que privilegia cada vez mais o grande capital rentista com liberdade, desonerações fiscais e ganhos certos e
fáceis.
Em alguns países como
o Brasil, que abriu indiscriminadamente a sua economia para produtos
internacionais na década de 90, levando a indústria nacional a perdas profundas
que não se recuperaram até os dias atuais, o ganho financeiro passou a vir principalmente
pela remuneração de títulos públicos, pois o período coincide com aplicação de
política monetária ultraortodoxa, com juros elevadíssimos, sob a desculpa de
controlar inflação que, na realidade, tinha origem em aumentos de preços que
não se reduzem quando os juros aumentam.
A fim de garantir
recursos para essa elevada remuneração rentista, medidas de ajuste fiscal
ganham cada vez maior importância, visando conter e até reduzir os
investimentos sociais para que sobrem cada vez mais recursos para a
chamada dívida pública: inicialmente impostas pelo FMI e Banco Mundial,
as medidas que impõem limites para gastos sociais passaram a ser incorporadas
em normas legais, chegando a ocupar a Constituição Federal com
a Emenda 95 aprovada em 2016, quando foi aprovada a submissão a um
teto de gastos que perduraria por 20 anos! Evidentemente tal medida absurda não
sobreviveu por muito tempo, no entanto, foi substituída pelo arcabouço fiscal (Lei
Complementar 200/2023), que mantém o teto de gastos sociais com flexibilização
mínima, de apenas até 2,5% ao ano e ainda sujeita a arrojadas metas de
superávit primário, enquanto não impõe limite ou controle algum ao gasto
financeiro com a dívida pública.
O chamado “resultado
primário” é a diferença entre as “receitas primárias” (em sua maioria
representada tributos) e as “despesas primárias”, que representam os
investimentos sociais, ou seja, não incluem o gasto com a dívida pública. Desta
forma, para cumprir a meta de “resultado primário”, é preciso controlar e
cortar investimentos sociais, porém, não os gastos com a dívida pública, que
desta forma podem continuar sem controle.
Um dos mecanismos
geradores de dívida pública no Brasil está relacionado às operações de open
marketing, também mencionadas pelo Prof. Dr. Miguel Bruno em seu
texto antes mencionado, “envolvendo compra e venda de títulos da dívida
pública”, ressaltando que embora “possam ser funcionais à gestão da liquidez,
sua prática com taxas exorbitantes de juros reais deslocam a função da política
monetária para outro campo. A convertem num instrumento tácito e eficaz para a
drenagem de recursos orçamentários realimentando o endividamento público
improdutivo às expensas dos demais setores da economia, especialmente, daqueles
que dependem da produção e, portanto, de imobilizar capital, incorrendo em
perda de liquidez e maiores riscos.”
De fato, no Brasil,
essas operações de open marketing esterilizam grande volume de
moeda, tendo em vista que as chamadas “operações compromissadas” atingiram o
patamar de R$ 1,6 trilhão em agosto/2020, por exemplo, como
amplamente noticiado, impedindo a circulação saudável do dinheiro na economia,
gerando uma escassez que provoca, ao mesmo tempo, elevação das taxas de juros de mercado, aumento do gasto com juros da dívida e elevação de seu
estoque.
Esse fato evidencia o
avanço do fenômeno da Financeirização sobre as finanças
públicas, submetendo o orçamento federal à priorização da remuneração rentista,
em detrimento do atendimento às necessidades sociais urgentes da população e o
nosso direito ao desenvolvimento socioeconômico.
Cabe ainda ressaltar
os aspectos de “financeirização usurária” e o avanço da financeirização para as
famílias no Brasil, trazidos pelo Prof. Dr. Miguel Bruno:
Em estudos
recentes, Bruno (2021) e Bruno & Caffé (2017) mostraram que a modalidade de
financeirização na economia brasileira difere do padrão observado em economias
desenvolvidas como a dos EUA. Como no Brasil as taxas reais de juros permanecem
em níveis inusitados quando comparadas à média internacional, a renda de juros
reais capitalizada (capitalização composta) converte os títulos e fundos de
renda fixa no paraíso do rentismo, freando a expansão dos títulos de renda variável, essência do
mercado de ações. Por essa razão, pode-se classificar esse tipo de
financeirização como financeirização usurária, para diferenciá-la do tipo
observado nos países em que vigoram baixas taxas de juros reais, especialmente,
aquelas que remuneram os títulos da dívida pública.
Na primeira fase da
financeirização da economia brasileira, nos anos 1980, a acumulação
rentista-financeira baseava-se nos ganhos inflacionários obtidos na chamada
“ciranda financeira”, expressão do processo especulativo de curto prazo com os
títulos públicos. Mas, com a adesão aos mercados financeiros globais nos anos
1990, a financeirização brasileira atinge um novo patamar. Além de expandir o
endividamento público interno, promoveu de forma acelerada o endividamento
privado de famílias e de empresas não-financeiras devido às elevadíssimas taxas
de juros reais, de tal modo que cerca de 76,6% das famílias encontram-se
endividadas e 30% inadimplentes.
O processo
de Financeirização vem se agravando no Brasil, tanto por meio da
priorização de destinação orçamentária para atividades improdutivas como a
remuneração do Sistema da Dívida (que no Brasil não possui
contrapartida em investimentos, como já declarou o Tribunal de Contas da
União), como por meio da aplicação de modelo que garante baixos salários e
coloca a população em uma constante necessidade de recorrer a endividamento
bancário. Adicionalmente, a Financeirização se agrava no país, diante
da proliferação de produtos financeiros que avançam sobre o orçamento público,
desviando recursos arrecadados antes mesmo que estes alcancem os cofres
públicos, como o nocivo esquema da chamada Securitização de Créditos Públicos.
O Sistema da Dívida
tem sido o instrumento preferido da Financeirização no Brasil. Para
enfrentar esse cenário e corrigir o rumo, é necessário conscientizar a
população, vítima de propaganda enganosa no sentido de que o país teria dívida
porque estaria gastando demais com Previdência, Saúde e
benefícios para o povo; que deveria cortar investimentos sociais para ser
“responsável”, quando, na realidade, o endividamento público no Brasil tem
funcionado como um sistema que se retroalimenta, absorvendo todas as receitas
financeiras com a venda de títulos públicos apenas para pagar os
próprios juros e amortizações dessa chamada dívida, e ainda abocanha boa parte
de recursos advindos de outras fontes. Com mobilização social consciente será
possível corrigir os rumos da economia, como vislumbrado pelo
Papa Francisco ao convocar a juventude mundial para o movimento
da Economia de Francisco e Clara.
¨ O Brasil precisa enfrentar o sistema de drenagem da dívida
pública. Por José Alvaro de Lima Cardoso
No dia 22 de julho os
ministérios da Fazenda e Planejamento oficializaram o bloqueio de R$ 15 bilhões
no Orçamento federal, conforme consta no Relatório de Avaliação de Receitas e
Despesas Públicas (RARDP), do terceiro bimestre de 2024. No dia 30 de julho
sairá um decreto que trará o detalhamento dos ministérios que sofrerão os
cortes, em nome do equilíbrio fiscal. Pelo que foi divulgado até o momento, o
corte orçamentário será feito da seguinte forma: R$ 11,2 bilhões do Benefício
de Prestação Continuada (BPC) e benefícios previdenciários; e R$ 3,8 bilhões de
contingenciamento, em virtude da arrecadação insuficiente para alcançar a meta
de déficit zero. O contingenciamento é o retardamento do gasto em função da
insuficiência de arrecadação das receitas previstas. Se a arrecadação melhorar
ao longo do ano, o contingenciamento pode ser desfeito.
O corte orçamentário é
para garantir o objetivo do governo, que é zerar o déficit fiscal nesse ano,
com tolerância de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB), para cima ou para
baixo. O governo está sendo duramente criticado por economistas ortodoxos,
pelas projeções realizadas, de crescimento da receita (10,5% pelo relatório
bimestral de maio), que estariam sendo superestimadas. Para os críticos, o
governo estaria também, por outro lado, subestimando os gastos. Algumas
estimativas preveem que, se o governo quiser atingir a meta de déficit zero,
terá que cortar mais R$ 11 bilhões. Os economistas ortodoxos falam em
“credibilidade fiscal”, “segurança fiscal”, necessidade de “controlar o risco
Brasil” etc.
O teto total de gastos
sujeitos à limitação neste ano é R$ 2,1 trilhões em decorrência da nova regra
fiscal, votada no ano passado. O bloqueio que o governo está fazendo é para que
esse limite não seja ultrapassado. Segundo a equipe econômica do governo, o
bloqueio de R$ 11,2 bilhões foi feito por dois fatores principais: 1.o gasto
com o BPC terá um acréscimo de R$ 6,4 bilhões; 2. Houve um aumento de R$ 4,9
bilhões nos benefícios previdenciários, devido ao Programa de Enfrentamento à
Fila da Previdência Social, do governo federal.
É preciso entender. O
BPC é um benefício de 1 salário-mínimo por mês (R$ 1.412) concedido ao idoso
com 65 anos ou mais, além de pessoas com deficiência. Nos dois casos, pessoas
muito pobres, com renda familiar per capita de um quarto do salário-mínimo. No
caso da Previdência, que foi também atingida pelo bloqueio de recursos, quase
70% dos benefícios concedidos são também de um salário-mínimo. O bizarro de
todo esse debate sobre o corte orçamentário, é que ninguém menciona que a
renúncia fiscal da União, neste ano, chegará a quase R$ 790 bilhões, segundo
levantamento da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita
Federal do Brasil). Segundo o estudo, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2023,
as isenções cresceram 212,44%.
Como na questão do
bloqueio orçamentário recém anunciado, uma boa parte das renúncias fiscais
corresponde a impostos que financiam a Previdência Social. Segundo o Tribunal
de Contas da União (TCU) em 2023 as isenções subtraíram da previdência R$ 274
bilhões em receitas. Considerando PIS/Cofins e a Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido (CSLL), a renúncia fiscal chegou a R$ 274 bilhões no ano
passado.
A Seguridade Social
brasileira impacta a vida de cerca de 150 milhões de compatriotas, ou mais,
direta e indiretamente. Seguridade Social não é só Previdência, mas abrange
também Saúde e Assistência Social, áreas vitais para a sobrevivência da
população, especialmente a mais pobre. O sistema previdenciário brasileiro paga
todo mês cerca de 39,5 milhões de benefícios e injeta de mais de R$ 70 bilhões
mensais na economia do país, o que é fundamental, inclusive, para o mercado
consumidor interno. Quase 70% dos municípios brasileiros tem como principal
renda, os benefícios pagos pelo INSS.
Já está se falando em
realizar nova “reforma” da previdência dentro de dois ou três anos,
supostamente para “garantir a sustentabilidade” do sistema. Ou seja, ao mesmo
tempo em que se retira recursos da previdência, por isenção fiscal ou cortes
puro e simples, vai se intensificando uma campanha contra o suposto “déficit”
da previdência social, feito com diagnóstico totalmente falacioso, e contra os
gastos sociais em geral. Estão questionando inclusive a vinculação do reajuste
do salário-mínimo com benefícios como BPC, abono salarial e seguro-desemprego,
direitos históricos da população brasileira.
A Lei Orçamentária
(LOA) prevê despesas de R$ 5,5 trilhões para 2024. No entanto, a parte do leão
irá para o refinanciamento da dívida pública. Nessa rubrica, a previsão da LOA
é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano. Enquanto
com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal, deverão ser
investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão
comprometidos nada menos que o valor mencionado, que representa 44% do
orçamento federal. Os juros nominais do setor público consolidado, no acumulado
em doze meses até maio, chegaram a R$781,6 bilhões (7,04% do PIB). Fala-se em
pagamento de juros e amortizações, porém, apesar de ser destinado 6% ou 7% do
PIB todo ano para pagamento de juros, a dívida só cresce. Ou seja, a
amortização da dívida não passa de uma fantasia.
A Dívida Bruta – que
abrange Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais – atingiu 76,8%
do PIB, e equivalente a R$8,5 trilhões. Os credores preservam esse estoque de
dívida porque ele representa uma verdadeira “galinha dos ovos de ouro”. Não
lhes interessa que a dívida seja paga, ou seja, não querem matar a galinha. Os
gastos com juros da dívida em 12 meses, de R$781,6 bilhões, equivalem a mais de
83% dos investimentos previstos com a Previdência para 2024. Mas com uma
diferença crucial: os gastos com a previdência social são fundamentais para
cerca de 150 milhões de brasileiros (direta e indiretamente); os gastos com a
dívida pública, é dinheiro jogado fora: vai para o bolso de especuladores que
não agregam nada à geração de valor no país.
O pagamento dos
especuladores no Brasil é sacrossanto, com ele não se mexe. Entra governo, sai
governo, e os banqueiros seguem levando todo ano, quase metade do orçamento
público federal. Em nome do interesse dos banqueiros – em ações que vêm
travestidas de equilíbrio fiscal e outras falácias - se retira benefícios dos
pobres, não se concede aumento para o salário-mínimo, o SUS é sucateado, e
miseráveis, que dependem de auxílio público para não morrer de fome, são
tratados como criminosos.
O Brasil é o país mais
industrializado da América do Sul, apesar do processo de desindustrialização
que sofre nas últimas décadas. É o terceiro maior produtor agrícola do planeta
e o maior exportador de alimentos. Há cálculos de que o país disponha de
recursos naturais que valem US$ 21,8 trilhões, ocupando a sexta posição nesse
quesito, no mundo. Possui algumas das principais commodities como urânio, ouro,
ferro e petróleo. No setor de mineração é uma potência com elevada extração de
bauxita, ferro, estanho, cobre e ouro. Possui as maiores reservas de urânio e
ouro do planeta, e é a segunda potência na produção de ferro. Além disso, é o
segundo maior produtor florestal do mundo, com 496 milhões de hectares
plantados, fornecendo quase 13% da madeira consumida no planeta.
Apesar de todos estes
recursos, 20,8 milhões de famílias precisam receber bolsa família, com valor
médio de R$ 682, para não morrer de fome. Enquanto os banqueiros levam todo
ano, quase um trilhão de reais em nome de juros da dívida, cerca de um quarto da
população brasileira depende de ajuda governamental para sobreviver. Se o
Brasil quiser se desenvolver em termos socioeconômicos, mais cedo ou mais tarde
terá que enfrentar esse parasita monstruoso.
Fonte: IHU OnLine/Brasil
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