Leonardo Sakamoto: ‘Para sair da ‘lista
suja’, escravagistas terão que indenizar trabalhadores’
EMPREGADORES responsabilizados
por trabalho escravo terão que pagar uma indenização de, no mínimo, 20 salários
mínimos para cada vítima, desembolsar 2% de seu faturamento bruto (até o limite
de R$ 25 milhões) em programas de assistência aos trabalhadores resgatados ou
vulneráveis e monitorar sua cadeia de fornecedores se quiserem sair da “lista
suja” do trabalho escravo, o cadastro de infratores mantido pelo governo
federal.
As regras estão
em portaria interministerial assinada, na
última sexta (26) e publicada nesta segunda (29), no Diário Oficial, por Luiz
Marinho, ministro do Trabalho e Emprego, e Silvio de Almeida, ministro dos
Direitos Humanos e da Cidadania, que
atualiza o cadastro de empregadores pessoas física e jurídica flagrados com mão
de obra análoga à de escravo.
Criada em novembro de
2003, a “lista suja” é atualizada semestralmente pelo governo federal. Os nomes
são incluídos após os autuados exercerem o direito de defesa em duas instâncias
na esfera administrativa e lá permanecem por dois anos. A portaria interministerial
4/2016, editada ao final do governo Dilma Rousseff, previa possibilidade de
acordo, mas a previsão foi revogada pelo governo Michel Temer.
Apesar de a portaria
que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem
sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de
risco, com bloqueios ou imposição de condições. Isso tornou o instrumento um exemplo
global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas. Ela
conta, hoje, com 642 nomes e pode ser consultada aqui.
Os empregadores que
firmarem o acordo com o governo serão relacionados em uma espécie de lista de
observação. Caso descumpram os termos, que serão monitorados pelos ministérios
do Trabalho e dos Direitos Humanos, voltarão para a lista principal e permanecerão
por lá por dois anos.
·
Quanto vale o tempo de
escravização?
O valor das indenizações
às vítimas de trabalho escravo no Brasil tem sido motivo de polêmica nos
últimos anos. Para além do montante pago como salários e direitos trabalhistas devidos, há uma tentativa por parte do Ministério Público
do Trabalho e da Defensoria Pública da União de garantir valores mais justos
através da negociação de danos morais no momento do resgate.
Contudo, procuradores
e defensores acabam esbarrando no fato de que empregadores sabem que, em
disputas na Justiça, magistrados costumam conceder valores mais baixos. Com
exceções, valores individuais de R$ 5 mil a R$ 15 mil de indenização têm sido
comum.
O texto da portaria
prevê que as indenizações anteriormente pagas aos trabalhadores em demandas de
procuradores e defensores públicos ou decisões judiciais podem ser considerados
para atingir o somatório de, no mínimo, 20 salários. Nesse sentido, isso aumenta
o montante pago, pois a diferença deverá ser complementada pelo empregador.
Eventualmente, o valor pode até ultrapassar esse patamar. O acordo tampouco
anula ações criminais em curso – lembrando que se trata de instâncias
diferentes.
O texto prevê que o
patamar de 20 salários mínimos seja aumentado em, pelo menos, dois salários a
cada ano cativo.
O recorde de tempo de
escravização no Brasil é de Maria de Moura. Ela foi resgatada pelo grupo
especial de fiscalização móvel, em 2022, aos 85 anos, após ser submetida a 72 anos de condições
análogas às de escravo como empregada
doméstica. Serviu a três gerações de uma mesma família, no Rio de Janeiro,
cuidando da casa e de seus moradores. Pelos cálculos, a indenização mínima
seria de 164 salários.
·
De R$ 20 mil a R$ 25
milhões
Além das indenizações
individuais, que entram na reparação dos danos causados, o acordo também prevê
o saneamento das irregularidades, medidas de prevenção por parte do empregador
para evitar que o crime volte a acontecer e o apoio a ações de inclusão dos
trabalhadores.
“Como medida de
reparação, o pagamento pelo dano social causado, para fins de custeio de
programa de assistência a trabalhadores resgatados de trabalho em condição
análoga à escravidão, ou especialmente vulneráveis a este tipo de ilícito, será
fixado em, no mínimo, 2% do faturamento bruto do administrado no último
exercício anterior à celebração do TAC a ser disciplinado em ato do Ministro de
Estado do Trabalho e Emprego”, afirma o texto.
Os valores a serem
pagos para esse item não podem ser inferiores a R$ 20 mil ou superiores a R$ 25
milhões.
A portaria também
prevê o monitoramento da situação de sua cadeia de valor por, pelo menos,
quatro anos. Afirma que o empregador é responsável por monitorar e reparar
violações a direitos humanos e trabalhistas envolvendo trabalhadores
diretamente contratados e os contratados por “prestadora de serviço
terceirizado” e “por fornecedor direto cuja atividade esteja vinculada à
confecção, distribuição dos produtos ou à prestação dos serviços explorados
economicamente pelo empregador”.
Em setembro de 2020, o
Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por
nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras
Imobiliárias (Abrainc).
A ação sustentava que
o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao
divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa
hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que
a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se
tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
·
Trabalho escravo hoje
no Brasil
Desde a década de
1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas
dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea e
condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo
149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea
por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir),
servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas),
condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco
a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo
esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua
saúde e vida).
Desde a criação dos
grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão
no país, em maio de 1995, mais de 63 mil trabalhadores foram resgatados.
Participam desses grupos, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do
Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária
Federal e Defensoria Publica da União.
Denúncias de trabalho
escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em
2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao
trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.
¨ Frigoríficos entram na Justiça para não pagar adicional de
insalubridade
NA “MAIOR FÁBRICA de hambúrgueres do mundo”, uma unidade da Marfrig em Bataguassu (SP), inaugurada em
2022, trabalhadores reclamam de temperaturas que variam de 6°C a 9°C em alguns
setores. Aldo*, cujo trabalho exige a manipulação de carne congelada, disse
ficar com as mãos vermelhas e doendo mesmo usando as luvas fornecidas pela
empresa. Seu colega Dirceu* contou que tenta há mais de dois meses pedir a
troca do blusão de lã fornecido pela companhia, sem sucesso: “Está todo
rasgado”, lamenta.
Em outro setor da
planta, as caixas de carne congelada batendo nas estruturas de inox fazem um
ruído incômodo. “O barulho era insuportável, mesmo depois de terminar o meu
turno eu ficava ouvindo aquele zumbido”, relata Julio*, ex-empregado. “Mesmo
com protetor auricular e fone de ouvido, é insuportável”, completa seu colega
André*.
Já Pedro*, que atuava
como refilador na JBS de Pimenta Bueno (RO) presenciou em 2021 um vazamento de
amônia – um gás tóxico usado para refrigerar as carnes – e guarda na memória o
desespero dos funcionários: “tinha um pessoal desmaiando, outros caindo”.
Atividades com
exposição ao frio, a altos níveis de ruído ou produtos químicos podem ser
consideradas insalubres, e são passíveis de um adicional que varia entre 10% e 40% do salário mínimo da região. A lei
também proíbe a realização de horas extras nestes locais e quem trabalha nestes
setores pode adiantar o pedido de aposentadoria, caso seja comprovado que a atividade realizada é nociva à
saúde do trabalhador. As informações estão detalhadas no relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido pelo Programa de Pesquisa da Repórter
Brasil em parceria com a organização dos Países Baixos, SOMO.
Apesar desses relatos,
historicamente, os frigoríficos atuam, inclusive na Justiça, para que suas
atividades não sejam qualificadas como “insalubres”, de acordo com o procurador
do Ministério Público do Trabalho, Lincoln Cordeiro, em entrevista concedida em 2022
à Repórter Brasil.
Em 2015, duas ações
judiciais em Mato Grosso terminaram com vitórias dos trabalhadores das câmaras
frias. Uma liminar proibiu que a JBS exigisse horas extras de seus empregados e a Minerva foi condenada a pagar R$ 500 mil por exigir trabalho adicional nesses
locais – que foram considerados insalubres.
No mais novo capítulo
deste tipo de disputa judicial se deu em Rondônia, onde a Justiça reconheceu
que a JBS estava perseguindo os trabalhadores que reivindicaram o adicional por
insalubridade.
Em resposta
à Repórter Brasil, a Minerva disse que adquiriu a unidade em Mirassol
D´Oeste (MT), onde se deu a discussão sobre as horas extras, no final de 2014,
após os “atos que originaram o processo e a decisão”. A empresa reforçou que “o
processo em referência foi encerrado com a adoção de todas as medidas
necessárias ao fiel cumprimento da legislação, confirmando seu
compromisso de seguir com as melhores práticas para seus colaboradores”.
Já a JBS reforçou que
sua política de saúde e segurança no trabalho “segue as normas previstas em
legislações civis e trabalhistas vigentes e são revisadas anualmente com base
em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade, absenteísmo e horas extras,
assim como apontamentos feitos pelos funcionários”.
A Marfrig, por sua
vez, afirmou que os equipamentos de proteção fornecidos aos funcionários –
entre os quais uniformes, moletons, jaquetas, toucas balaclava, luvas, meias e
botas térmicas – são todos adequados a cada atividade, ambiente e necessidade.
As manifestações na íntegra das empresas podem ser acessadas aqui.
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Justiça reconhece que JBS perseguiu quem cobrava adicional
Em 2018, empregados da
JBS que trabalhavam na planta de Vilhena, em Rondônia, começaram a protocolar
ações judiciais reivindicando o adicional por insalubridade – um movimento que
seguiu nos anos seguintes.
Mas o Sindicato dos
Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra
Intra) afirma que depois de pedirem o adicional de insalubridade, os
trabalhadores iam sendo demitidos. “Era uma caça às bruxas, uma perseguição
sistematizada, jogo pesado”, disse uma fonte ligada ao sindicato e ouvida
pela Repórter Brasil sob condição de anonimato. “Eliminava qualquer
possibilidade dos trabalhadores reclamarem seus direitos”, conclui.
Segundo o sindicato,
ao menos 22 pessoas foram dispensadas entre 2018 e 2023 depois que tentaram
obter o adicional de insalubridade na Justiça – o que levou a entidade a
ajuizar uma ação coletiva na Justiça, denunciando o assédio.
“A dispensa desses
trabalhadores é uma represália, uma forma de coibir o exercício do direito de
ação de seus funcionários”, diz o texto da ação.
Neste novo processo,
foram anexadas mensagens de texto e áudio em que os trabalhadores expõem o medo
da demissão caso seguissem cobrando seus direitos na Justiça. “Estão chamando
aqueles que estão na lista e colocando uma pressãozinha para que desistam do
processo”, relatou um funcionário.
“Eles falaram que
podem pegar as pessoas que entraram com a ação e demitir todos. Acho que vou
cancelar pois pago aluguel, sou casado e faço faculdade”, escreveu outro.
“Quero desistir do
processo porque todos que estão ganhando a causa estão sendo demitidos. Não
adianta receber um pouquinho e ficar desesperado”, completa um terceiro
trabalhador.
Em uma decisão de
março de 2023 – que deu ganho de causa aos trabalhadores – o juiz do trabalho
Carlos Antônio Chagas Júnior reconheceu que “a atitude da empresa, além de
violar direito assegurado constitucionalmente, acarreta em insegurança nos
funcionários da empresa em perderem seus empregos, de modo que estes optam pela
desistência da ação”.
A decisão chegou a ser
revertida pela segunda instância, mas em maio do ano passado, o TRT-14, emitiu
nova sentença favorável aos empregados. “As ameaças realizadas pela demandada
[JBS] afetam toda a coletividade, em face do notório desrespeito ao ordenamento
jurídico trabalhista e, especialmente, a dignidade dos trabalhadores, que
convivem com medo e angústia de perderem a principal fonte de subsistência”,
diz o texto.
O juiz determinou o
pagamento de R$ 450 mil de indenização por dano moral coletivo, a ser revertido
para entidades beneficentes para a realização de projetos sociais.
Questionada sobre essa
ação, a JBS não teceu comentários alegando que a tramitação não havia ainda
sido concluída. Mas, no processo que corre na Justiça, a empresa disse que os
“desligamentos ocorrem por diversos motivos, sendo, em sua maioria, por pedidos
de demissão”.
*Nomes
fictícios para proteger a identidade dos trabalhadores
Fonte: Repórter Brasil
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