quarta-feira, 31 de julho de 2024

Leonardo Sakamoto: ‘Para sair da ‘lista suja’, escravagistas terão que indenizar trabalhadores’

EMPREGADORES responsabilizados por trabalho escravo terão que pagar uma indenização de, no mínimo, 20 salários mínimos para cada vítima, desembolsar 2% de seu faturamento bruto (até o limite de R$ 25 milhões) em programas de assistência aos trabalhadores resgatados ou vulneráveis e monitorar sua cadeia de fornecedores se quiserem sair da “lista suja” do trabalho escravo, o cadastro de infratores mantido pelo governo federal.

As regras estão em portaria interministerial assinada, na última sexta (26) e publicada nesta segunda (29), no Diário Oficial, por Luiz Marinho, ministro do Trabalho e Emprego, e Silvio de Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, que atualiza o cadastro de empregadores pessoas física e jurídica flagrados com mão de obra análoga à de escravo.

Criada em novembro de 2003, a “lista suja” é atualizada semestralmente pelo governo federal. Os nomes são incluídos após os autuados exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa e lá permanecem por dois anos. A portaria interministerial 4/2016, editada ao final do governo Dilma Rousseff, previa possibilidade de acordo, mas a previsão foi revogada pelo governo Michel Temer.

Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco, com bloqueios ou imposição de condições. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas. Ela conta, hoje, com 642 nomes e pode ser consultada aqui.

Os empregadores que firmarem o acordo com o governo serão relacionados em uma espécie de lista de observação. Caso descumpram os termos, que serão monitorados pelos ministérios do Trabalho e dos Direitos Humanos, voltarão para a lista principal e permanecerão por lá por dois anos.

·        Quanto vale o tempo de escravização?

O valor das indenizações às vítimas de trabalho escravo no Brasil tem sido motivo de polêmica nos últimos anos. Para além do montante pago como salários e direitos trabalhistas devidos, há uma tentativa por parte do Ministério Público do Trabalho e da Defensoria Pública da União de garantir valores mais justos através da negociação de danos morais no momento do resgate.

Contudo, procuradores e defensores acabam esbarrando no fato de que empregadores sabem que, em disputas na Justiça, magistrados costumam conceder valores mais baixos. Com exceções, valores individuais de R$ 5 mil a R$ 15 mil de indenização têm sido comum.

O texto da portaria prevê que as indenizações anteriormente pagas aos trabalhadores em demandas de procuradores e defensores públicos ou decisões judiciais podem ser considerados para atingir o somatório de, no mínimo, 20 salários. Nesse sentido, isso aumenta o montante pago, pois a diferença deverá ser complementada pelo empregador. Eventualmente, o valor pode até ultrapassar esse patamar. O acordo tampouco anula ações criminais em curso – lembrando que se trata de instâncias diferentes.

O texto prevê que o patamar de 20 salários mínimos seja aumentado em, pelo menos, dois salários a cada ano cativo.

O recorde de tempo de escravização no Brasil é de Maria de Moura. Ela foi resgatada pelo grupo especial de fiscalização móvel, em 2022, aos 85 anos, após ser submetida a 72 anos de condições análogas às de escravo como empregada doméstica. Serviu a três gerações de uma mesma família, no Rio de Janeiro, cuidando da casa e de seus moradores. Pelos cálculos, a indenização mínima seria de 164 salários.

·        De R$ 20 mil a R$ 25 milhões

Além das indenizações individuais, que entram na reparação dos danos causados, o acordo também prevê o saneamento das irregularidades, medidas de prevenção por parte do empregador para evitar que o crime volte a acontecer e o apoio a ações de inclusão dos trabalhadores.

“Como medida de reparação, o pagamento pelo dano social causado, para fins de custeio de programa de assistência a trabalhadores resgatados de trabalho em condição análoga à escravidão, ou especialmente vulneráveis a este tipo de ilícito, será fixado em, no mínimo, 2% do faturamento bruto do administrado no último exercício anterior à celebração do TAC a ser disciplinado em ato do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego”, afirma o texto.

Os valores a serem pagos para esse item não podem ser inferiores a R$ 20 mil ou superiores a R$ 25 milhões.

A portaria também prevê o monitoramento da situação de sua cadeia de valor por, pelo menos, quatro anos. Afirma que o empregador é responsável por monitorar e reparar violações a direitos humanos e trabalhistas envolvendo trabalhadores diretamente contratados e os contratados por “prestadora de serviço terceirizado” e “por fornecedor direto cuja atividade esteja vinculada à confecção, distribuição dos produtos ou à prestação dos serviços explorados economicamente pelo empregador”.

Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.

·        Trabalho escravo hoje no Brasil

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea e condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 63 mil trabalhadores foram resgatados. Participam desses grupos, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Publica da União.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

 

¨      Frigoríficos entram na Justiça para não pagar adicional de insalubridade

NA “MAIOR FÁBRICA de hambúrgueres do mundo”, uma unidade da Marfrig em Bataguassu (SP), inaugurada em 2022, trabalhadores reclamam de temperaturas que variam de 6°C a 9°C em alguns setores. Aldo*, cujo trabalho exige a manipulação de carne congelada, disse ficar com as mãos vermelhas e doendo mesmo usando as luvas fornecidas pela empresa. Seu colega Dirceu* contou que tenta há mais de dois meses pedir a troca do blusão de lã fornecido pela companhia, sem sucesso: “Está todo rasgado”, lamenta.

Em outro setor da planta, as caixas de carne congelada batendo nas estruturas de inox fazem um ruído incômodo. “O barulho era insuportável, mesmo depois de terminar o meu turno eu ficava ouvindo aquele zumbido”, relata Julio*, ex-empregado. “Mesmo com protetor auricular e fone de ouvido, é insuportável”, completa seu colega André*.

Já Pedro*, que atuava como refilador na JBS de Pimenta Bueno (RO) presenciou em 2021 um vazamento de amônia – um gás tóxico usado para refrigerar as carnes – e guarda na memória o desespero dos funcionários: “tinha um pessoal desmaiando, outros caindo”.

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Atividades com exposição ao frio, a altos níveis de ruído ou produtos químicos podem ser consideradas insalubres, e são passíveis de um adicional que varia entre 10% e 40% do salário mínimo da região. A lei também proíbe a realização de horas extras nestes locais e quem trabalha nestes setores pode adiantar o pedido de aposentadoria, caso seja comprovado que a atividade realizada é nociva à saúde do trabalhador. As informações estão detalhadas no relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido pelo Programa de Pesquisa da Repórter Brasil em parceria com a organização dos Países Baixos, SOMO.

Apesar desses relatos, historicamente, os frigoríficos atuam, inclusive na Justiça, para que suas atividades não sejam qualificadas como “insalubres”, de acordo com o procurador do Ministério Público do Trabalho, Lincoln Cordeiro, em entrevista concedida em 2022 à Repórter Brasil.

Em 2015, duas ações judiciais em Mato Grosso terminaram com vitórias dos trabalhadores das câmaras frias. Uma liminar proibiu que a JBS exigisse horas extras de seus empregados e a Minerva foi condenada a pagar R$ 500 mil por exigir trabalho adicional nesses locais – que foram considerados insalubres.

No mais novo capítulo deste tipo de disputa judicial se deu em Rondônia, onde a Justiça reconheceu que a JBS estava perseguindo os trabalhadores que reivindicaram o adicional por insalubridade.

Em resposta à Repórter Brasil, a Minerva disse que adquiriu a unidade em Mirassol D´Oeste (MT), onde se deu a discussão sobre as horas extras, no final de 2014, após os “atos que originaram o processo e a decisão”. A empresa reforçou que “o processo em referência foi encerrado com a adoção de todas as medidas necessárias ao fiel cumprimento da legislação, confirmando seu  compromisso de seguir com as melhores práticas para seus colaboradores”.

Já a JBS reforçou que sua política de saúde e segurança no trabalho “segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas vigentes e são revisadas anualmente com base em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade, absenteísmo e horas extras, assim como apontamentos feitos pelos funcionários”.

A Marfrig, por sua vez, afirmou que os equipamentos de proteção fornecidos aos funcionários – entre os quais uniformes, moletons, jaquetas, toucas balaclava, luvas, meias e botas térmicas – são todos adequados a cada atividade, ambiente e necessidade. As manifestações na íntegra das empresas podem ser acessadas aqui.

<><> Justiça reconhece que JBS perseguiu quem cobrava adicional

Em 2018, empregados da JBS que trabalhavam na planta de Vilhena, em Rondônia, começaram a protocolar ações judiciais reivindicando o adicional por insalubridade – um movimento que seguiu nos anos seguintes.

Mas o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra Intra) afirma que depois de pedirem o adicional de insalubridade, os trabalhadores iam sendo demitidos. “Era uma caça às bruxas, uma perseguição sistematizada, jogo pesado”, disse uma fonte ligada ao sindicato e ouvida pela Repórter Brasil sob condição de anonimato. “Eliminava qualquer possibilidade dos trabalhadores reclamarem seus direitos”, conclui.

Segundo o sindicato, ao menos 22 pessoas foram dispensadas entre 2018 e 2023 depois que tentaram obter o adicional de insalubridade na Justiça – o que levou a entidade a ajuizar uma ação coletiva na Justiça, denunciando o assédio.

“A dispensa desses trabalhadores é uma represália, uma forma de coibir o exercício do direito de ação de seus funcionários”, diz o texto da ação. 

Neste novo processo, foram anexadas mensagens de texto e áudio em que os trabalhadores expõem o medo da demissão caso seguissem cobrando seus direitos na Justiça. “Estão chamando aqueles que estão na lista e colocando uma pressãozinha para que desistam do processo”, relatou um funcionário.

“Eles falaram que podem pegar as pessoas que entraram com a ação e demitir todos. Acho que vou cancelar pois pago aluguel, sou casado e faço faculdade”, escreveu outro. 

“Quero desistir do processo porque todos que estão ganhando a causa estão sendo demitidos. Não adianta receber um pouquinho e ficar desesperado”, completa um terceiro trabalhador.

Em uma decisão de março de 2023 – que deu ganho de causa aos trabalhadores – o juiz do trabalho Carlos Antônio Chagas Júnior reconheceu que “a atitude da empresa, além de violar direito assegurado constitucionalmente, acarreta em insegurança nos funcionários da empresa em perderem seus empregos, de modo que estes optam pela desistência da ação”.

A decisão chegou a ser revertida pela segunda instância, mas em maio do ano passado, o TRT-14, emitiu nova sentença favorável aos empregados. “As ameaças realizadas pela demandada [JBS] afetam toda a coletividade, em face do notório desrespeito ao ordenamento jurídico trabalhista e, especialmente, a dignidade dos trabalhadores, que convivem com medo e angústia de perderem a principal fonte de subsistência”, diz o texto. 

O juiz determinou o pagamento de R$ 450 mil de indenização por dano moral coletivo, a ser revertido para entidades beneficentes para a realização de projetos sociais.

Questionada sobre essa ação, a JBS não teceu comentários alegando que a tramitação não havia ainda sido concluída. Mas, no processo que corre na Justiça, a empresa disse que os “desligamentos ocorrem por diversos motivos, sendo, em sua maioria, por pedidos de demissão”.

*Nomes fictícios para proteger a identidade dos trabalhadores

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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