CFM: por trás da ideologia, muito dinheiro
As eleições do
Conselho Federal de Medicina (CFM) acontecem na próxima semana, e a polarização
ideológica forçada por setores conservadores que se apoderaram do órgão
transbordou as disputas da categoria. Pouco familiarizada com as eleições que
aparentemente representam a mera distribuição de cargos burocráticos de uma
autarquia fiscalizadora do exercício profissional, a sociedade civil aos poucos
toma conhecimento da envergadura dos interesses em jogo.
“As chapas de oposição
são formadas por colegas muito idealistas, que não têm a dimensão do que
acontece no Conselho. Atacam o discurso negacionista e antivacina por uma
questão científica. Mas o Conselho atual tornou-se antivacina porque isso deu
dinheiro. Tem a ver com ideologia, mas também com o ‘dólar’”, disse uma fonte
médica ao Outra Saúde, que pediu anonimato para evitar retaliações.
Para se ter ideia, de
acordo com o próprio balanço financeiro publicado em sua página, o Conselho
Federal de Medicina movimentou mais de R$ 700 milhões apenas em 2023. Não há
salário para o cargo de conselheiro, mas diversas formas de pagamento e reembolso
por participação em eventos oficiais, debates e reuniões. Compensações e
indenizações, isentas de imposto de renda, conforme norma defendida pelo órgão
há pelo menos 18 anos.
Mauro Ribeiro,
ex-presidente do CFM indiciado no relatório final da CPI da Pandemia por
defender tratamentos não baseados na ciência e deixar correr solto as mentiras
anticientíficas, é um exemplo. Suas atividades em 2020 geraram mais de 1 milhão
de reais em gastos relativos a viagens, jetons e reembolsos, valor incompatível
com a tabela oficial de tais despesas, o que levou a Câmara dos Deputados a
desconfiar de que tais atividades se tornaram uma forma de remuneração não
assumida. “Ser conselheiro virou profissão”, resume a fonte ao Outra Saúde.
Antes, Ribeiro foi
investigado pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul por recebimento de
plantões não realizados entre 2013 e 2015, além de ter consumido outros R$ 500
mil reais de reembolso por passagens e participações em reuniões quando já eleito
para o conselho federal pelo estado. Na investigação, o MP-MS também considera
que houve acobertamento do mesmo expediente em favor de outros nove médicos.
• Fratricídio entre as direitas
Ao colocar esse
panorama, talvez fique mais fácil compreender por que a eleição para o Conselho
Federal pelas duas cadeiras do Rio de Janeiro tenha quatro chapas de
direita/extrema-direita. Do privatismo neoliberal clássico apoiado pelo
deputado doutor Luizinho, ventilado para tomar o cargo de Nísia Trindade pelo
“Centrão”, a chapas de fanáticos como o atual conselheiro, Rafael Parente,
secretário de Atenção Primária à Saúde na criminosa gestão da pandemia pelo
Ministério da Saúde, os interesses pelos privilégios do cargo atraem agentes
políticos sem relação nenhuma com a elaboração de políticas públicas ou de
carreira do setor.
A entrada de Carla
Zambelli e Valdemar Costa Neto na campanha de Armando Lobato e movimentações de
bastidores de Nikolas Ferreira e Carlos Bolsonaro por outras chapas sinalizam
que há algo mais do que o mero exercício da medicina em jogo. Já em SP, Luciano
Hang, dono da rede de lojas Havan e também indiciado na CPI da Pandemia,
declara apoio à chapa 2 e propagandeia a mesma “autonomia médica” que embasou o
respaldo do órgão a prescrição de tratamentos ineficazes e até nocivos para
covid-19. Vale destacar que o empresário autorizou o uso de cloroquina no
tratamento de sua própria mãe, que não resistiu à doença.
Na visão de Silvia
Uehara, candidata ao conselho pelo Mato Grosso do Sul, o CFM não se interessa
pela defesa do SUS, muito menos pelo direito à saúde de todos os brasileiros.
“Saúde é direito, não é favor prestado por organizações sociais, por ONGs, que vai
ser prestado para pessoas que não têm direito. Todos os brasileiros, todos os
cidadãos pagam o imposto. Penso que uma das principais bases da saída do CFM
das instâncias de representação social é essa tendência à privatização”,
analisou.
Para as chapas da
oposição, o órgão não só se deixou politizar pelos interesses diversos de uma
direita anti-SUS como abandonou os próprios interesses da categoria que alega
representar. Questões de carreira foram abandonadas pelos dirigentes do órgão e
médicos de todo o Brasil vivem um processo de precarização e sobrecarga
laboral, o que em última instância remete à lógica de contenção de
investimentos públicos ditada pelos dogmas neoliberais na gestão do Estado.
“Os recursos públicos
de saúde têm de ser investidos às instituições públicas, nas carreiras públicas
da saúde. O investimento público não deve ser destinado, em sua maioria, como é
atualmente, às empresas terceirizadas, às contratualizadas. Se tem alguma coisa
que não funciona, alguma prestação de serviço que não funciona atualmente no
SUS é o sistema terceirizado”, completou Uehara.
Dessa forma,
entende-se porque o CFM se afastou dos órgãos de elaboração política, como o
Conselho Nacional de Saúde, e toma iniciativas que afrontam as próprias
diretivas do Ministério da Saúde – para não dizer do próprio código penal, a
exemplo de sua ingerência no direito ao aborto legal. Também saiu da Comitê
Nacional de Residência Médica, ao se sentir contrariado pela decisão do governo
federal de aumentar o número de membros não médicos indicados ao órgão, num
contexto onde a falta de vagas para residentes médicos – isto é, profissionais
recém-formados – é crônica e frequente alvo de críticas dos profissionais.
“É muita grana. No CFM
adquire-se muito poder econômico. Não é só por ideologia, por serem de direita.
Por exemplo, o órgão fiscaliza e define cobrança em cima de empresas sobre seu
capital social, isto é, quanto grupos privados, de acordo com seu capital
social declarado, vão pagar. Um menino sai agora da faculdade paga anuidade de
Pessoa Jurídica equivalente a uma clínica abastada, uma grande rede de planos
privados. Se ele tem mais de um vínculo de trabalho, paga anuidade por cada um
desses vínculos. E quem define isso é o CFM”, completa a fonte não identificada
nesta matéria.
Curiosamente, o
deputado Nikolas Ferreira, símbolo das pautas de uma direita fanática cujas
bandeiras suprimem direitos de “minorias”, protagonizou audiência pública na
qual contestava tal decisão do governo sobre o comitê de residência. Outro dado
curioso é que o Mais Médicos – programa fundamental na promoção do direito à
saúde no governo Dilma destruído por Bolsonaro por ódio ideológico – em sua
nova versão tenta compensar o vazio de vagas em residência ao garantir tal
progressão na carreira de quem o adere, de maneira a facilitar a obtenção do
título de especialista de recém-formados.
No entanto, a
iniciativa jamais foi apoiada pela atual direção do CFM. Na verdade, o órgão
segue a tentar esvaziar o programa, movimento enfraquecido pela alta adesão de
profissionais, além do próprio preenchimento dos imensos vazios assistenciais
que a gestão Bolsonaro/Parente promoveram ao destruir o Mais Médicos e
fracassar na implantação do Médicos Pelo Brasil. “Quem entrou no Médicos pelo
Brasil foi enganado, levou um golpe. Inclusive, em breve veremos movimentações
desses profissionais em busca do que lhes foi negado quando aderiram ao
programa”, agregou a fonte médica aqui preservada.
Por sua vez, a Frente
Pela Vida, rede de movimentos sociais pela saúde, declara apoio às chapas de
oposição. A Frente resume suas ideias para renovação em cinco pontos: “apoio
incondicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) como espaço de promoção da saúde
e de realização profissional; defesa da ciência como base do exercício da
medicina; valorização do trabalho médico de qualidade, com salário digno e com
defesa da carreira única nacional para os médicos e médicas; redefinição de
critérios para a abertura de novos cursos de medicina, com critérios
epidemiológicos, com pré-requisitos de condições estruturais, de corpo docente
e de cumprimento curricular satisfatório para boa formação profissional, com
prioridade para as regiões mais carentes de médicos; retorno a instituições
democráticas que definem políticas nacionais de saúde”.
• Dois conceitos de saúde em choque
Diante disso, para
além da capa de polarização entre o que seria um novo round entre “lulismo e
bolsonarismo”, as eleições do órgão representam um cenário de disputa em torno
da concepção de direito à saúde. Isso para não dizer uma noção do próprio conceito
de saúde coletiva, como sugeriram os participantes do Cebes Debate (Centro
Brasileiro de Estudos em Saúde), realizado nesta segunda-feira, 29.
“É hora de recriarmos
o CFM e colocá-lo a serviço das necessidades de medicina. Por exemplo, temos
uma nova política de cuidados paliativos e precisamos de um CFM capaz de
orientar o exercício dessa nova especialidade, ajudar os médicos mais jovens.
Precisamos tirar o órgão que adotou uma retórica governamental que nunca foi
sua, mas de um governo que foi muito nocivo ao Brasil”, afirmou a médica
Margareth Dalcolmo.
É certo que o
Ministério da Saúde e o governo Lula conseguem implantar uma agenda de
políticas públicas que voltou a expandir o SUS e tenta valorizar diversos
profissionais de saúde, não apenas os médicos. Mas o CFM e os conselhos
regionais são autarquias de Estado e, no final das contas, trocaram suas
funções objetivas por interesses privados e, em última instância, contrários ao
Estado e à categoria profissional que o financiam e legitimam.
“Tenho vergonha da
atual direção do CFM. Houve um apequenamento do órgão e também do perfil de seu
conselho, tomado pela mediocridade. É constrangedor pra muitos médicos. O CFM
não deve defender interesses de médicos, mas sim da saúde da população, participar
do processo de construção de política pública. Mas o órgão só aparece pra criar
falsa polêmica e gerar entrave. Deixou de ser interlocutor da sociedade”,
atacou o ex-ministro José Gomes Temporão no debate do Cebes.
Fonte: Por Gabriel
Brito, em Outra Saúde
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