Por que bairros ‘chavistas’ lideram
protestos que questionam vitória de Maduro
“Moro em um bairro
popular de Caricuao [distrito de Caracas] e fiquei surpreso ao ver que as
pessoas batiam em panelas e frigideiras. Isso simplesmente não acontecia
antes." Esse é o relato de um jovem desempregado em Caracas, na Venezuela, que preferiu não
revelar seu nome. "Meu bairro sempre foi um setor fortemente chavista", acrescenta
ele.
Nas últimas horas, a
capital venezuelana se tornou o epicentro de intensos protestos que abalam
o país sul-americano após
o anúncio de resultados eleitorais altamente contestados. O bater de panelas surgiu espontaneamente e quebrou o silêncio
que reinava na cidade, provavelmente como consequência de um resultado
eleitoral inesperado. Ao longo da segunda-feira (29/7), os panelaços dispararam
em diferentes áreas de Caracas. Mas poucos previram
que esses barulhos seriam ouvidos com maior intensidade nos bairros populares
da capital, muitos dos quais costumavam ser bastiões do movimento chavista.
De Catia a Petare —
uma das regiões mais populosas da América Latina — passando por La Vega e El
Cementerio, o barulho em algumas áreas era ensurdecedor.O protesto não parou
por aí. Também de forma espontânea, as pessoas começaram a sair às ruas,
algumas com as panelas nas mãos.
Enquanto os líderes da
oposição permaneciam em silêncio, as ruas de Caracas esquentavam aos poucos. "Esta
marcha é do bairro Petare, não há partido político aqui, não temos nenhum
partido que nos dê alguma coisa", diz María Vázquez, uma dona de casa de
60 anos, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Saímos porque
essa fraude deve ser interrompida. Este governo tem que sair", continua
ela.
A emblemática Plaza
Altamira, na zona leste da cidade, voltou a ser o ponto de encontro da
oposição. Centenas de moradores das redondezas e pessoas de outros setores
populares de Caracas e arredores — alguns viajaram das cidades satélites de
Guarenas e Guatire para protestar — reuniram-se ali enquanto agitavam bandeiras
e gritavam: "O povo unido nunca será derrotado" e "Este governo
vai cair".
·
'Não queremos
auxílios'
Jonathan diz que saiu
de Maca de Petare para Altamira para "defender o voto".
Este homem de 39 anos,
natural de Caracas, afirma que a motivação da "população do bairro"
para sair e protestar tem a ver com o cansaço de ser maltratado. "Não
queremos auxílios [de comida], nem nada do governo. Deixe-os tirar todos os
nossos benefícios se quiserem. Aqui as pessoas estão com raiva. Eles queriam os
bairros nas ruas? Bem, estamos todos aqui fora", diz ele.
Os protestos não se
limitaram a Altamira. Nos bairros Catia, na zona oeste da cidade, José Félix
Ribas de Petare (na zona leste) e El Valle (na zona sul), manifestantes
derrubaram faixas de propaganda eleitoral do presidente, enquanto outros grupos
ocupavam as ruas do centro da capital em locais próximos da Assembleia Nacional
e do Palácio Miraflores, sede do governo. Muitos diziam que pretendiam chegar
lá para "tirar" Maduro.
Num vídeo que circulou
nas redes sociais, verificado pela BBC News Mundo, um grupo de pessoas derrubou
uma estátua do ex-presidente Hugo Chávez na cidade de Coro, capital do estado
de Falcón, no noroeste da Venezuela.
·
'Eles estão descendo
das colinas novamente'
Alejandro Velasco,
historiador da Universidade de Nova York, nos EUA, e autor do livro Barrio
Rising: Urban Popular Politics and the Making of Modern Venezuela ("A
Ascensão do Bairro: Política Popular Urbana e a Construção da Venezuela
Moderna", em tradução livre), afirma que o que está acontecendo agora na
Venezuela não ocorria há décadas. No entanto, ele levanta a hipótese de que uma
eventual mudança de governo do país sul-americano não acontecerá de forma
instantânea, mas, sim, gradual. "O Caracaço [saída da população às ruas na
Venezuela, em grandes proporções, em 1989], quando os bairros se manifestaram,
foi o que deu o golpe final no Puntofijismo [sistema
bipartidário que governava o país]. O golpe final formal só veio em 1998,
quando Chávez foi eleito, mas [o sistema] já estava mortalmente ferido no
Caracaço", afirmou Velasco em entrevista à BBC Mundo em 2017.
Agora, o pesquisador
acredita que a cidade é abalada pela força popular que vem das colinas.
"Os bairros chegaram hoje a Caracas, não há dúvidas disso", disse ele
à BBC Mundo. Velasco afirma que o grande desafio dos líderes da oposição na
Venezuela sempre foi unir os setores populares com a oposição mais tradicional.
Segundo ele, sempre foi difícil para as pessoas dos bairros identificarem-se
com estes políticos. "Acho que agora finalmente vemos aquele momento de
unidade e reencontro", avalia ele.
·
'O bairro não vai se
intimidar'
Para Velasco, um dos
fatores que impulsionaram essa união foi a grande expectativa criada pela
possibilidade de o país tomar um rumo diferente, liderado por um novo governo. Outro
fator importante foi a crise. "Embora a economia tenha melhorado um pouco
em relação aos anos anteriores, essa melhoria não atingiu os setores populares.
Se você não tiver um familiar que mora no exterior e consiga enviar remessas ou
se você não tiver acesso ao pouco que resta do Estado de bem-estar social, a
única coisa que se pode fazer é viver de empréstimos e favores", explica o
pesquisador. "Isso afeta muito os setores mais pobres. O chavismo contava
com a recuperação econômica para salvá-los, mas a realidade é que isso não é
percebido nem no interior do país, nem nos bairros pobres." Velasco
acredita que as dificuldades aumentaram ainda mais para o governo agora que os
bairros aderiram ao movimento de oposição: "As pessoas dos bairros não se
intimidam tão facilmente."
·
'Eles tiraram nossa
dignidade'
Outro jovem de Petare,
em Altamira, garantiu que os moradores dos bairros não têm absolutamente nada a
perder. "Eles tiraram nossa dignidade. Não tenho [dinheiro] para comprar
comida para minha filha. Olhe meus sapatos, estão furados e não tenho como
comprar novos."
O Conselho Nacional
Eleitoral (CNE) declarou Maduro vencedor no domingo com 51,2% dos votos, ante
44,2% do candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, após 80% das atas
eleitorais computadas. No entanto, González rejeitou o resultado junto com a
líder da oposição, María Corina Machado, que foi eleita pré-candidata nas
primárias, mas foi desqualificada para concorrer no pleito realizado no domingo
(28/7). "Há um novo presidente eleito e é Edmundo González. Todos sabem
disso", disse Machado no domingo à noite, depois de argumentar que a sua
contagem refletia 70% dos votos para González e 30% para Maduro.
·
Expressões espontâneas
Líderes da oposição
dirigiram-se ao povo venezuelano depois das 18h de segunda-feira, no horário
local. Eles disseram ter provas de mais de 73% das atas que dariam a vitória a
González Urrutia. Machado também falou sobre os protestos que acontecem em todo
o país."São expressões espontâneas de setores populares. Expressões
legítimas. Quero convidar você a nos conhecer. Amanhã vamos nos reunir em
assembleias populares por todo o país", apelou ela. Machado acrescentou
que o governo "quer gerar violência" e apelou aos apoiadores para que
permaneçam "de forma ordeira e civilizada, mas muito firmes".
O governo de Nicolás
Maduro respondeu aos protestos com repressão. Ao cair da noite, várias partes
da cidade cheiravam a gás lacrimogêneo. Tiros podiam ser ouvidos em diversas
áreas. A maioria dos manifestantes se dispersou e voltou para casa. Mas outros
permaneceram em resposta às autoridades. Alguns montaram barricadas em vários
setores e se defenderam com o que puderam, geralmente com pedras e paus. "É
uma situação difícil, porque não temos armas como eles", disse um
manifestante.
Katiusca Justo, outra
jovem de 31 anos de Petareña, foi afetada pelo gás, “Saímos em paz e o que eles
fizeram foi nos reprimir, mas eu não esperava menos. Eu sabia que provavelmente
haveria repressão e pelo menos gás lacrimogêneo." Embora tenha decidido
descansar, planeja retornar "amanhã e quantos dias forem necessários até a
queda deste governo". "Estou cansada desta ditadura. Passei seis anos
fora do meu país para ajudar minha família. Mas voltei de Bogotá e agora quero
uma vida melhor aqui na Venezuela", acrescenta ela.
Após o lançamento de
diversas bombas de gás lacrimogêneo em Altamira, o protesto se dispersou, mas
logo as panelas e frigideiras voltaram a soar nas varandas dos prédios da
região. Enquanto a calma voltava a reinar em Altamira, em outras áreas de
Caracas o conflito persistia, com objetos queimados em alguns setores e forças
policiais preparadas para extinguir os protestos restantes.
¨ 3 cenários possíveis na Venezuela após vitória de Maduro
contestada pela oposição
A espera de milhões de
venezuelanos por um resultado declarado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE)
terminou pouco depois da meia-noite de segunda-feira (29), no horário local,
na Venezuela. O presidente da
autoridade eleitoral venezuelana, Elvis Amoroso, declarou o presidente Nicolás Maduro o
vencedor da disputa com 5.150.092 de votos, ou 51,20% do total, à frente do
adversário Edmundo González Urrutia, com 4.445.978 de votos, ou 44,2%, com 80%
das mesas de votação apuradas. Amoroso afirmou que o resultado era
irreversível. Contra todas as probabilidades e a maioria das pesquisas de
opinião, Maduro garantiu um terceiro mandato, que pode torná-lo a pessoa há
mais tempo no cargo de presidente da Venezuela na história moderna do país.
Na cerimônia em que
foi oficialmente proclamado como presidente eleito, Maduro acusou os opositores
e a "extrema direita" no exterior de tentarem desestabilizar o país. "Não
é a primeira vez que enfrentamos o que enfrentamos hoje. Está sendo feita uma
tentativa de impor um golpe de Estado na Venezuela, novamente. De natureza
fascista e contrarrevolucionária", disse Maduro, apontando que estariam em
curso os "primeiros passos" para desestabilizar o país. "Os
mesmos países que hoje questionam o processo eleitoral venezuelano, a mesma
extrema direita fascista... foram os que quiseram tentar impor ao povo da
Venezuela, acima da Constituição, um presidente espúrio, usando as instituições
do país", disse ele, em alusão à autoproclamação como presidente interino
do deputado Juan Guaidó, em 2019. "Uma espécie de Guaidó 2.0",
continuou Maduro.
O chavismo, corrente
política liderada hoje por parte Maduro, sempre pareceu convencido da vitória. Jorge
Rodriguez, diretor de campanha de Maduro, sugeriu algumas horas antes do
anúncio dos resultados que a soma dos votos seria favorável ao chavismo. "A
violência falhou, o ódio falhou. O amor ganhou, a independência ganhou, a
soberania da Venezuela ganhou e a paz ganhou", afirmou Rodriguez.
O filho de Maduro,
Nicolás Maduro Guerra, também sugeriu uma vitória do pai antes dos resultados
oficiais. "As pesquisas expressam o que a rua já disse durante todos esses
meses de campanha. Vitória do povo venezuelano, feliz aniversário, comandante
Chávez!", disse ele na rede social X, referindo-se à data de nascimento do
fundador do chavismo (28/7). Maduro também já havia dito em fevereiro que iria
vencer "por bem ou por mal".
No entanto, com uma
oposição convencida de que ganhou as eleições e apoiada pelas pesquisas de
opinião, a situação política no país está se distanciando ainda mais da
estabilidade. "É um anúncio que gera grande frustração na oposição, já que
chegaram às eleições com grande entusiasmo", diz o cientista político
Eduardo Valero, professor de estudos políticos da Universidade Central da
Venezuela, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Política de oposição
impedida pelo CNE de concorrer à presidência, María Corina Machado afirmou na
noite de segunda-feira, ao lado do candidato Edmundo González Urrutia, ter em
mãos dados suficientes para comprovar a vitória dele sobre Maduro. Segundo
Machado, González Urrutia teria recebido 6,27 milhões de votos, enquanto Maduro
teria tido 2,75 milhões. De acordo com ela, a oposição teria em seu poder 73,2%
das atas de votação (algo como o boletim de urna no Brasil). “Com as atas que
nos faltam, mesmo que o CNE tenha dado 100% dos votos a Maduro, não alcançaria
o que já temos. A diferença foi tão grande, tão grande, avassaladora, em todos
os Estados da Venezuela, em todos os estratos, em todos os setores…
Ganhamos", disse Machado. Ela convocou apoiadores da oposição a
manifestarem pacificamente na manhã desta terça (30).
A BBC News Mundo
(serviço em espanhol da BBC) analisa três cenários possíveis na Venezuela após
o anúncio da vitória de Nicolás Maduro.
- 1. Protestos
Poucos minutos depois
do anúncio dos resultados, começaram fortes batidas de panelas e frigideiras em
vários setores do leste da capital, Caracas, em protesto. "Fraude!"
foi uma das coisas que alguns moradores do bairro de Altamira gritaram.
Para muitos
opositores, as eleições não terminaram com o anúncio da CNE.
Na noite de segunda,
milhares de pessoas se dirigiram ao centro de Caracas para protestar — algumas
caminhando por quilômetros ao sair de favelas nas montanhas que cercam a
cidade. Em repressão aos protestos, forças de segurança dispararam gás
lacrimogêneo e balas de borracha. Muitos analistas políticos antecipam um
período de protestos no país por conta do resultado anunciado pelo CNE.
O cientista político
Eduardo Valero prevê que isso desencadeará um descontentamento popular e
repressão por parte das autoridades. "A questão é saber se o governo está
disposto a assumir os custos de mais repressão. Irá assumir o custo de prender
aqueles que decidirem não respeitar os resultados?", questiona Valero. No
entanto, ele acredita que os protestos dependerão da força da reação da
oposição a este anúncio e se ela pedirá às pessoas que saiam em massa às ruas.
- 2. Não reconhecimento internacional e mais sanções
Vários líderes
mundiais têm pedido que Maduro respeite os resultados eleitorais, algo que
muitos interpretaram como medo de uma possível manipulação.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), embora não tenha se pronunciado após os resultados
anunciados, disse em entrevista coletiva na semana passada que Maduro precisava
“aprender que, quando você vence, você fica, quando você perde, você sai".
“Fiquei assustado com os comentários de Maduro de que a Venezuela poderia
enfrentar um banho de sangue se perder”, acrescentou Lula, referindo-se a
declarações anteriores feitas pelo presidente venezuelano.
Por sua vez, o governo
de Gabriel Boric, presidente do Chile, instou as instituições venezuelanas, em
um comunicado publicado pouco antes do anúncio da CNE, a respeitarem a "vontade
soberana do povo de decidir o seu destino". Quando a CNE divulgou os
resultados que declararam Maduro como vencedor, Boric disse que não acreditava
neles. “O regime de Maduro deve compreender que os resultados que publica são
difíceis de acreditar. A comunidade internacional e especialmente o povo
venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exigem total
transparência das atas e do processo, e que observadores internacionais não
comprometidos com o governo prestem contas pela veracidade dos resultados. O
Chile não reconhecerá nenhum resultado que não seja verificável", escreveu
na rede social X.
Valero afirma que o
chavismo se beneficiou do fato de a economia do país ter mantido um crescimento
próximo a 5% do Produto Interno Bruto nos últimos dois anos, mas o futuro do
crescimento sustentado dependerá do reconhecimento ou não de Maduro no cenário
internacional. "Num contexto latino-americano, é muito provável que a
maioria dos líderes latino-americanos se unam contra Maduro, tendo como
interlocutores Lula e (o presidente da Colômbia, Gustavo) Petro, que parecem
ter capacidade de comunicação com Maduro", afirma Valero.
Funcionários do
governo do EUA indicaram que sua política de sanções à Venezuela dependeria do
desenvolvimento das eleições, salientando que Washington poderia aliviá-las se
a eleição fosse limpa. Depois de a CNE ter anunciado a vitória de Maduro, o
secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, expressou "sérias
preocupações" de que "os resultados anunciados não reflitam a vontade
ou os votos do povo venezuelano." "A comunidade internacional está
observando isso de perto e responderá de acordo", disse Blinken.
- 3. Aumento da migração
Segundo o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 7,7 milhões de
venezuelanos deixaram o país em busca de uma vida melhor. A grande maioria saiu
nos últimos anos devido a uma grande crise econômica que deixou milhões de
pessoas na pobreza. O número de emigrantes diminuiu nos últimos meses, e alguns
dos que partiram chegaram a voltar ao país. Agora há receios de que o anúncio
da CNE possa intensificar mais uma vez esta onda migratória.
Uma pesquisa realizada
pela Meganalisis e publicada em abril indica que pelo menos 44,6% da população
venezuelana consideraria emigrar se Maduro ganhasse um terceiro mandato
presidencial. Outra pesquisa recente da ORC Consultores revelou que mais de 18%
dos entrevistados planejariam migrar do país antes do final do ano após uma
vitória de Maduro. O cientista político Valero diz acreditar que o êxodo não
será muito maior porque hoje o mundo está mais instável do que há uma década e,
com várias nações em guerra, há "uma maior consciência de que a vida no
exterior não é tão fácil".
Fonte: BBC News Mundo
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