As polêmicas em torno da Vila Olímpica de
Paris
O historiador francês
Pierre de Coubertin (1863-1937), um dos fundadores do Comitê Olímpico
Internacional (COI) em 1894, foi o autor da ideia da primeira Vila Olímpica,
criada para os Jogos de Verão de Paris, na França, em 1924.
Pela primeira vez,
moradias construídas especificamente para os Jogos Olímpicos forneceriam
acomodações, leitos e alimentação para os atletas. Até então, os competidores
se hospedavam em hotéis, hospedarias, escolas, quartéis e nos próprios navios
que os levavam para as cidades anfitriãs.
Coubertin era
pragmático e tinha espírito público. Ele percebeu que era mais barato abrigar
os atletas em novas estruturas temporárias do que em hotéis. E as Vilas
Olímpicas poderiam ainda inspirar um senso de comunidade entre os competidores
internacionais.
Um avanço fundamental
para o desenvolvimento das Vilas Olímpicas veio quando elas começaram a ser
projetadas para serem usadas também após o término dos Jogos. A ideia surgiu
nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, na Finlândia, que contaram com duas Vilas
Olímpicas.
Desde então, outras
cidades-sede adotaram largamente este sistema, ou pelo menos tentaram,
especialmente nas últimas duas décadas.
E, embora a Vila
Olímpica dos Jogos de Paris em 1924 fosse transitória (ela foi demolida depois
da Olimpíada), as Vilas dos Jogos deste ano na capital francesa foram
projetadas para serem ocupadas muito depois que os atletas voltarem para casa.
Em comparação com as
instalações esportivas, as Vilas Olímpicas também se tornaram espaços cada vez
mais privados durante o período de realização dos Jogos. Elas são relativamente
separadas da esfera pública.
Esta medida foi tomada
depois do ataque terrorista ocorrido durante os Jogos Olímpicos de 1972 em
Munique, na então denominada Alemanha Ocidental. Membros da organização
militante palestina Setembro Negro invadiram a Vila Olímpica e mataram atletas
e técnicos israelenses, além de um policial alemão.
Atualmente, além dos
atletas e da sua comitiva, poucos visitantes podem entrar nas Vilas Olímpicas.
Os próprios familiares dos competidores precisam seguir rígidos controles de
segurança.
Ao longo das décadas,
as Vilas Olímpicas refletiram a ideologia política, os valores sociais e as
preferências arquitetônicas das cidades-sede. E sua qualidade também reflete a
riqueza econômica de cada país.
Nos últimos cerca de
20 anos, as cidades anfitriãs dos Jogos Olímpicos vêm dedicando cada vez mais
atenção às preocupações universais, como a sustentabilidade, a revitalização
urbana e o legado dos Jogos Olímpicos. Este último conceito indica os benefícios
de longo prazo oferecidos aos moradores da cidade-sede, depois do término dos
Jogos.
As novas Vilas
Olímpicas e outras instalações e serviços dos Jogos são muito úteis para
revitalizar áreas degradadas. Elas oferecem, por exemplo, moradia social, novas
oportunidades de emprego, melhorias da infraestrutura e ligações de transporte.
Mas, na prática, esses
planos, muitas vezes, não cumprem suas promessas — e já foram alvo de muitas
controvérsias.
• O caso de Paris 2024
As três Vilas
Olímpicas dos Jogos de Paris deste ano vêm sendo objeto de questionamento.
Elas estão espalhadas
pelos subúrbios de Saint-Denis, Saint Ouen e L'Île-Saint-Denis, ao norte de
Paris. Os três fazem parte do departamento de Seine-Saint-Denis e irão abrigar
4.250 atletas durante os Jogos Olímpicos e outros 8 mil atletas durante as Paralimpíadas.
Paris trabalhou muito
para tornar as Vilas sustentáveis, transformando antigas construções
industriais degradadas em comodidades e acomodações para os atletas.
Mas este processo de
revitalização urbana forçou muitos moradores já estabelecidos a deixar o local
– como imigrantes, que precisaram encontrar lares temporários ou ocupar
escritórios ou armazéns abandonados, muitos deles degradados.
Esta situação vem
chamando a atenção internacional. Na semana de abertura dos Jogos, o jornal The
New York Times destacou os acontecimentos em Seine-Saint-Denis, enquanto os
defensores dos direitos humanos acusaram as autoridades francesas de praticarem
"limpeza social".
"Um dos
benefícios das Olimpíadas bem planejadas é sua capacidade de recuperar
rapidamente uma área", afirma Dan Epstein, diretor consultivo da
consultoria de sustentabilidade e inovação Useful Projects. A empresa tem
experiência em desenvolvimento urbano e eventos globais e Epstein foi chefe de
legado e sustentabilidade da Autoridade Olímpica, durante os Jogos Olímpicos de
2012, em Londres.
"Mas, com a
recuperação, vem a gentrificação, que pode levar ao desalojamento forçado das
pessoas mais vulneráveis da região", explica ele.
"Políticas como o
fornecimento de moradia social e trabalho para os moradores locais são
fundamentais e devem ser integradas adequadamente ao projeto, planejamento e
modelo econômico de desenvolvimento das Vilas Olímpicas", diz Epstein.
As cidades candidatas
a sediar os Jogos Olímpicos precisam convencer o COI de que seu projeto é
sustentável e que seus planos de revitalização urbana são bem fundamentados.
"Atualmente, para
as cidades-sede, fornecer evidências das suas credenciais de sustentabilidade,
que incluem a redução da pegada de carbono [todo o CO2 emitido durante a
construção] e do carbono operacional [liberado pelo consumo permanente de energia
pela construção, como a iluminação elétrica e aquecimento] é uma condição
básica", afirma Ashley Munday, diretor e chefe de design da empresa de
arquitetura Hassell, que participou do projeto da Vila Olímpica de Londres em
2012.
"Um critério
fundamental é o valor do legado de 3 a 5 mil novas casas [criadas pelas Vilas
Olímpicas] — uma ótima forma de ampliar a oferta de moradia social",
explica ele.
• As primeiras Vilas Olímpicas
A evolução das Vilas
Olímpicas no último século certamente foi impressionante.
A Vila precursora, de
Coubertin, nos Jogos de Paris de 1924 era rudimentar. Localizada perto do
Estádio Olímpico, ela compreendia cabines espartanas de madeira, cada uma com
três camas.
Outras comodidades
incluíam uma casa de câmbio, serviço telefônico, lavanderia a seco,
cabeleireiro, uma banca de jornais e uma agência de correio.
A Vila dos Jogos
Olímpicos de 1932, em Los Angeles (Estados Unidos), ficava em Baldwin Hills, a
10 minutos de carro do Estádio Olímpico.
Naqueles primórdios,
havia separação. As mulheres se hospedavam em um hotel e os homens, em
estruturas leves temporárias de baixo custo, condizentes com os tempos de
restrição econômica causados pela Grande Depressão (1929-1939).
Mesmo assim, a Vila
incluía salas de jantar, casas de banho, um hospital, corpo de bombeiros, rede
telefônica e um anfiteatro para 2 mil espectadores.
Foi apenas nos Jogos
Olímpicos de Los Angeles em 1984 que homens e mulheres se hospedaram juntos na
Vila Olímpica, pela primeira vez.
Naquele ano, 14 países
do bloco oriental boicotaram os Jogos. Foi a resposta do bloco ao boicote
liderado pelos Estados Unidos em 1980 às Olimpíadas de Moscou, na União
Soviética, em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão.
No entanto, o estilo
das Vilas Olímpicas de Los Angeles era de comemoração.
O arquiteto Jon Jerde
(1940-2015) projetou torres alegres policromáticas em tons populares, que
refletiam a moda da arquitetura divertida, pós-moderna e de alta tecnologia dos
anos 1980.
• De Berlim a Helsinque
Adolf Hitler
(1889-1945) aproveitou os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, na Alemanha, como
poderosa ferramenta de propaganda. Foram os primeiros Jogos televisionados da
história.
Sua Vila Olímpica
incluiu dormitórios de dois andares, um refeitório, sala de ginástica e
instalações de treinamento. Ela era aberta ao público e atraiu 370 mil
visitantes, um reflexo dos sentimentos nacionalistas do país na época.
Após o término dos
Jogos, a Vila Olímpica foi transformada em hospital e escola da infantaria do
exército. A construção que recebeu o atleta americano Jesse Owens (1913-1980)
foi posteriormente restaurada.
Londres foi a
cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 1948. Ainda com as cicatrizes deixadas pelos
bombardeios da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o orçamento da cidade era
restrito.
Estruturas já
existentes foram reutilizadas para servir de Vila Olímpica – um antigo
acampamento militar em recuperação, com cabanas de madeira no Richmond Park.
As instalações da Vila
acomodaram os homens, enquanto as mulheres se hospedaram principalmente em
estabelecimentos de ensino, como o Southlands College, na Universidade de
Roehampton, em Wandsworth, na região sul da capital britânica.
A equipe finlandesa
trouxe consigo uma sauna de madeira pré-fabricada, que também incluía um
banheiro, sala de massagens e cozinha. Ela foi doada ao Reino Unido após os
Jogos e depois levada para o Cobdown Park, em Maidstone, no sudeste da
Inglaterra. Lá, permaneceu em uso até 2020.
Já as Vilas dos Jogos
Olímpicos de Helsinque eram idílicas. Foram concebidas para ajudar a preservar
um espaço verde fundamental no norte da cidade. Sem isso, a área teria sido
invadida e engolida por um distrito comercial próximo.
O cenário das Vilas de
Helsinque era um bosque em declive com grandes espaços ao ar livre, formando
forte conexão com a natureza. A capital finlandesa se expandiu desde 1952 e,
agora, as Vilas ficam no centro da cidade. Mas elas mantêm o charme da antiga
zona rural.
Sua construção foi
projetada em estilo modernista por arquitetos de vanguarda da época, como Alvar
Aalto (1898-1976).
"As Vilas de
Helsinque mantiveram sua popularidade", afirma o editor-chefe da
publicação Finnish Architectural Review, Kristo Vesikansa.
"Para muitos
moradores de Helsinque, as Vilas representam um bairro residencial ideal, com
seus apartamentos compactos e funcionais, além de grandes jardins. Uma piscina,
originalmente construída para os atletas, também é popular", segundo ele.
• Roma, Munique e Barcelona
A Vila dos Jogos
Olímpicos de Roma, na Itália, em 1960, foi um exemplo de revitalização.
Os organizadores dos
Jogos recuperaram um bairro degradado chamado Campo Parioli, construindo
moradias públicas em estilo moderno. Foram 1.348 apartamentos, projetados para
uso após os Jogos. Eles existem até hoje.
Uma das principais
atrações dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, foi sua arquitetura
avant-garde, refletindo a filosofia futurista dos Jogos. Mas a Vila, acima de
tudo, é lembrada hoje em dia como o local da horrível tragédia conhecida como o
massacre de Munique.
Projetada em 1969 pelo
arquiteto Günther Eckert (1927-2001), a Vila Olímpica compreendia um bloco de
concreto com 801 apartamentos espaçosos. As ruas da Vila ficavam em nível
separado do tráfego de veículos – uma ideia profeticamente ecológica.
Os Jogos de Munique
foram pioneiros na crença do legado. Por isso, as construções da Vila Olímpica
foram projetadas para serem reutilizadas depois dos Jogos. Seus apartamentos
foram vendidos como residências e as casas de dois andares foram transformadas
em acomodações para estudantes (embora elas tenham sido parcialmente destruídas
por um levante estudantil e reconstruídas posteriormente).
Atualmente, segundo
Hassell, a Vila permanece "com alta procura, devido à qualidade da sua
arquitetura e às suas áreas verdes".
A revitalização urbana
foi um ponto central dos Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, na Espanha, e
sua Vila Olímpica.
Foi criada uma área
residencial chamada La Vila Olímpica no distrito de Poble Nou, uma antiga e
poluída zona industrial.
Uma equipe de
arquitetos – Josep Martorell (1925-2017), Oriol Bohigas (1925-2021), David
Mackay (1933-2014) e Albert Puigdomènech (1944-2004) – projetou a Vila
Olímpica, oferecendo uma variedade de estilos. Mas sua disposição era ordenada,
seguindo o modelo da famosa e elegante grade do bairro central Eixample, em
Barcelona.
"Barcelona é
possivelmente o melhor exemplo que observamos de uma Vila Olímpica transformada
em um bem sucedido bairro urbano, que também trouxe melhorias para a zona
portuária", destaca Epstein.
• A vez de Londres
Os Jogos Olímpicos de
Londres, em 2012, trouxeram a renovação de um ponto industrial poluído na
região de Stratford, no leste da capital britânica.
"As Olimpíadas de
Londres se propuseram a ser os Jogos mais sustentáveis da história",
relembra Epstein.
"A ideia era usar
os Jogos Olímpicos para catalisar a revitalização do Lower Lea Valley e
transformá-lo em uma comunidade vibrante, socialmente inclusiva, com baixo uso
de carbono e transporte público excepcional. Muitos parques olímpicos e suas
instalações foram frequentemente abandonados no passado, após o término dos
Jogos."
"Como primeiro
prefeito eleito de Londres, Ken Livingstone abraçou os Jogos Olímpicos",
conta Dave Hill, autor do livro Olympic Park: When Britain Built Something Big
("Parque Olímpico: quando o Reino Unido construiu algo grande", em tradução
livre). Hill também é o criador do site onlondon.co.uk, que apresenta notícias
e análises sobre a cultura e a política londrina.
Livingstone
supervisionou a proposta de Londres para receber os Jogos de 2012. Segundo
Hill, "Livingstone conseguiu ver que os Jogos poderiam trazer enormes
investimentos para o Lower Lea Valley."
Os Jogos Olímpicos
também receberam total apoio de Boris Johnson, sucessor de Livingstone na
prefeitura londrina, embora seu gosto arquitetônico fosse clássico e
conservador.
"Johnson tinha
uma visão para o Parque Olímpico como um todo, com praças e casas familiares
com terraços em estilo vitoriano, inspiradas pelas grandes propriedades de
Grosvenor e Bedford, em Londres", diz Hill.
Por isso, os
arquitetos do escritório Fletcher Priest, em conjunto com os engenheiros
estruturais da Arup e os arquitetos paisagistas da West 8 e Vogt Landscape,
foram convocados para projetar um distrito em forma de vila, com jardins que
lembrassem a disposição das ruas vitorianas em regiões do oeste de Londres,
como Maida Vale. O projeto incorporou 69 blocos residenciais, praças
comunitárias, fontes e jardins.
• As críticas ao legado
Em 2013, as pessoas
começaram a ocupar parte dos blocos da Vila Olímpica de Londres, agora
transformados em apartamentos residenciais para aluguel, na área rebatizada
como East Village. Ela fica ao lado do também rebatizado Parque Olímpico Rainha
Elizabeth.
Mas o bairro foi
amplamente criticado, devido ao alto valor dos aluguéis. Em 2022, um
apartamento de dois quartos nos antigos blocos dos atletas custava mais de 2,3
mil libras esterlinas (cerca de R$ 16,8 mil) por mês e os apartamentos de três
quartos custavam cerca de 2,7 mil libras (cerca de R$ 19,7 mil) mensais.
E, embora o comitê
organizador dos Jogos de Londres tenha prometido que a revitalização do leste
de Londres criaria 30 mil a 40 mil novas residências, o jornal The Guardian
divulgou em 2022 que a remodelação havia resultado em apenas 13 mil novas
casas.
Enquanto isso, nos
bairros de Newham, Tower Hamlets, Hackney e Waltham Forest, onde foram
realizados os Jogos Olímpicos, havia quase 75 mil famílias na lista de espera
por habitação social.
Outras cidades-sede
também receberam fortes críticas em relação ao seu legado.
"A Vila Olímpica
dos Jogos de Verão de 2004 em Atenas [na Grécia] compreendia 21 torres
residenciais", segundo Epstein.
"Depois dos
Jogos, a intenção é que ela se tornasse uma nova zona residencial, com suas
acomodações sendo vendidas ou alugadas para a população local. Mas apenas a
metade dos apartamentos está ocupada hoje em dia."
"E, quando o Rio
de Janeiro promoveu os Jogos em 2016, a cidade quis imitar Londres",
acrescenta ele.
"Mas o legado da
sua Vila Olímpica e suas 31 torres não foi bem-sucedido, pelo menos no curto
prazo".
Muitas pessoas ficaram
irritadas com os desalojamentos em Seine-Saint-Denis e outras regiões de Paris,
nos preparativos para os Jogos Olímpicos deste ano.
Mas seus organizadores
demonstram forte compromisso com a sustentabilidade. Existem fortes evidências
de preparação das Vilas para o futuro, deixando-as prontas para seu novo uso
após os Jogos.
Três blocos de
apartamentos criados para os atletas em St. Ouen, por exemplo, serão
reutilizados como moradia e escritórios depois das Olimpíadas.
Muitos edifícios
existentes, como uma fábrica e um estúdio cinematográfico, foram reformulados.
Telhados receberam painéis solares e os amplos espaços entre as construções
oferecem túneis de vento para levar ar fresco do rio Sena para as Vilas
Olímpicas.
"Os Jogos de
Paris trouxeram muitas promessas", afirma Dan Epstein. "Eles
realmente se concentram na reutilização das instalações existentes." Mas
ele acrescenta uma nota com tom de cautela:
"Você só pode
realmente dizer qual é o legado de uma cidade-sede e o grau de sustentabilidade
que ela irá atingir no longo prazo, em 10 a 20 anos depois do término dos
Jogos."
Fonte: BBC News Mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário