quarta-feira, 31 de julho de 2024

Protestos e pressão internacional devem determinar futuro da Venezuela, dizem analistas

Após a reeleição contestada de Nicolás Maduro, especialistas consultados pela BBC News Brasil afirmam que a transparência dos resultados será essencial para determinar o futuro da Venezuela, destacando que o desenrolar da situação dependerá tanto da mobilização popular quanto da pressão internacional. "O processo eleitoral na Venezuela tem gerado grandes dúvidas sobre sua transparência, um ponto também destacado pela comunidade internacional. Estados Unidos, Colômbia, Brasil e outros atores-chave estão aguardando as atas e a apuração dos resultados. Sem transparência, está em jogo a legitimidade do processo", diz à BBC News Brasil Laura Dib, diretora do Programa da Venezuela na WOLA (Escritório de Washington para a América Latina), uma ONG com sede em Washington, D.C. que promove os direitos humanos nas Américas.

Laura Dib acrescenta que, sem legitimidade e transparência, Maduro pode enfrentar isolamento internacional, pressão econômica e aumento da migração, o que afetaria ainda mais a sociedade civil venezuelana. "Isso representaria o pior cenário para a sociedade civil e exigiria uma avaliação de como o governo poderia manter a governabilidade sem legitimidade", acrescenta.

Após um atraso de mais de seis horas na divulgação dos resultados, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) informou que Maduro recebeu 51,21% dos votos, enquanto Edmundo González Urrutia obteve 44,2%. No entanto, o CNE não revelou os totais de votos das 30 mil seções eleitorais, prometendo disponibilizá-los apenas nas "próximas horas", o que dificultou a verificação e gerou dúvidas sobre a transparência do processo. A oposição, por sua vez, alega que obteve as atas de votação que comprovam a vitória de González.

Na cerimônia em que foi oficialmente proclamado como presidente eleito, Maduro acusou os opositores e a "extrema direita" no exterior de tentarem desestabilizar o país."Não é a primeira vez que enfrentamos o que enfrentamos hoje. Está sendo feita uma tentativa de impor um golpe de Estado na Venezuela, novamente. De natureza fascista e contrarrevolucionária", disse Maduro, apontando que estariam em curso, segundo ele, os "primeiros passos" para desestabilizar o país. "Os mesmos países que hoje questionam o processo eleitoral venezuelano, a mesma extrema direita fascista... foram os que quiseram tentar impor ao povo da Venezuela, acima da Constituição, um presidente espúrio, usando as instituições do país", disse ele, em alusão à autoproclamação como presidente interino do deputado Juan Guaidó, em 2019.

Para Phil Gunson, analista sênior da consultoria Crisis Group, baseado em Caracas, a única maneira de resolver o impasse seria "com números detalhados, urna por urna", o que "neste ponto, parece muito improvável". "Pelas reações de muitos governos, tanto na região quanto em outras partes do mundo, a versão apresentada pelo governo Maduro não conseguiu convencer. Ainda é muito cedo para fazer uma previsão clara, mas me parece que Maduro será significativamente enfraquecido por isso, não apenas internacionalmente, mas também dentro das fileiras do chavismo", acrescenta ele à BBC News Brasil.

Mark Feierstein, ex-diretor sênior para Assuntos do Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional dos EUA, também ressalta "as condenações e questionamentos" sobre a votação no cenário internacional e acrescenta que "o aspecto crucial é se veremos protestos nos próximos dias".

Ryan Berg, diretor do Programa das Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, concorda. "Agora o regime terá que decidir até onde vai reprimir os protestos inevitáveis. Isto é apenas o começo. Estas eleições não resolvem o desafio da ilegitimidade de Maduro. A natureza fraudulenta e a falta de registros auditáveis são indicativos. María Corina Machado sempre disse que esta luta é 'hasta el final'." Na noite de segunda-feira (29/7), a capital Caracas foi palco de protestos convocados pela oposição. Milhares de pessoas se dirigiram ao centro, algumas caminhando quilômetros desde as favelas nas montanhas ao redor da cidade, em direção ao palácio presidencial. Houve confrontos entre manifestantes e forças de segurança, que utilizaram gás lacrimogêneo e balas de borracha.

·        Reação internacional

Observadores independentes descreveram a eleição como a mais arbitrária dos últimos anos, mesmo pelos padrões do regime autoritário iniciado por Hugo Chávez, mentor e antecessor de Maduro. O candidato da oposição, Edmundo González, afirmou em suas primeiras declarações: "Os venezuelanos e o mundo inteiro sabem o que aconteceu."

María Corina Machado, líder da oposição, disse que a margem de vitória de González foi "arrasadora", com base nas apurações recebidas de representantes de campanha em cerca de 40% das urnas em todo o país. "Ganhamos em todos os Estados do país e sabemos o que aconteceu hoje. Cem por cento das atas que o CNE transmitiu nós temos e toda essa informação aponta que Edmundo obteve 70% dos votos", disse Machado a jornalistas.

Quando Maduro apareceu para celebrar os resultados, ele acusou inimigos estrangeiros não identificados de tentar hackear o sistema de votação. "Esta não é a primeira vez que tentam violar a paz da república", disse ele a algumas centenas de apoiadores no palácio presidencial. Maduro não apresentou evidências para sustentar a acusação, mas prometeu "justiça" para aqueles que tentarem incitar violência na Venezuela.

Líderes internacionais, como o presidente chileno Gabriel Boric, expressaram preocupação com a legitimidade dos resultados. O Itamaraty afirmou que o governo brasileiro aguarda "a publicação pelo Conselho Nacional Eleitoral de dados desagregados por mesa de votação, passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito". A nota publicada nesta segunda-feira diz que o governo brasileiro “saúda o caráter pacífico da jornada eleitoral de ontem na Venezuela e acompanha com atenção o processo de apuração”, além de reafirmar "o princípio fundamental da soberania popular, a ser observado por meio da verificação imparcial dos resultados".

Boric declarou no X (antigo Twitter): "O regime de Maduro deve entender que esses resultados são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e, sobretudo, o povo venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exigimos total transparência das atas do processo e que observadores internacionais não comprometidos com o governo atestem a veracidade dos resultados."

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, compartilhou a preocupação de Boric, afirmando que seu país tem "sérias preocupações" com o resultado anunciado. "É fundamental que todos os votos sejam contados de forma justa e transparente, que as autoridades eleitorais compartilhem imediatamente informações com a oposição e observadores independentes. A comunidade internacional está observando isso de perto e responderá de acordo", disse Blinken.

Josep Borrell, chefe de política externa da União Europeia, afirmou: "O povo da Venezuela votou sobre o futuro de seu país de forma pacífica e em grandes números. A sua vontade deve ser respeitada. Garantir transparência completa no processo eleitoral, incluindo na contagem de votos e acesso aos registros de voto nas zonas de votação, é vital."

Em nota divulgada antes dos resultados, o assessor para Assuntos Internacionais do Palácio do Planalto, ex-chanceler Celso Amorim, disse esperar que o resultado das eleições na Venezuela seja respeitado por "todos os candidatos". Amorim também informou que o presidente Lula estava sendo atualizado sobre a votação. "Estou em contato com diferentes forças políticas e analistas eleitorais, além de membros da equipe de observadores do Centro Carter e do Painel de Especialistas da ONU. O presidente Lula vem sendo informado ao longo do dia. Vamos aguardar os resultados finais e esperamos que sejam respeitados por todos os candidatos."

Amorim, que está na Venezuela como observador das eleições, destacou a participação expressiva do eleitorado e afirmou que o processo de votação havia sido "tranquilo e sem incidentes significativos". "É motivo de satisfação que a jornada tenha transcorrido com tranquilidade, sem incidentes de monta."

Mas aliados parabenizaram Maduro pela vitória nas redes sociais.

Luis Alberto Arce, presidente da Bolívia, celebrou a "festa democrática" e o respeito à "vontade do povo nas urnas". Xiomara Castro de Zelaya, presidente de Honduras, ressaltou a reafirmação da "soberania" e do "legado histórico do Comandante Chávez". Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba, destacou a derrota da oposição "pró-imperialismo" e da "direita regional, intervencionista e monroísta (relativo à doutrina Monroe, que prega ação americana na América Latina)." Segundo ele, "a dignidade e a coragem do povo venezuelano triunfaram sobre pressões e manipulações". Já o presidente Vladimir Putin, da Rússia, destacou a importância da "parceria estratégica" entre os dois países e acrescentou que Maduro sempre será "um convidado bem-vindo em solo russo."

·        'Busca por solução diplomática'

Feierstein avalia o fato de as presidências de Brasil e Colômbia ainda não terem se manifestado publicamente até agora como um sinal de "que estão buscando uma solução diplomática". Horas após o resultado, ele diz que é "cedo demais" para fazer previsões e que ainda há "um longo caminho a percorrer".

Feierstein, que questiona o resultado anunciado, diz que "teria sido melhor para Maduro negociar uma transição e obter as garantias que acha necessárias". Ele prevê que o regime enfrentará uma pressão "maior do que antes" e que Maduro está "mais isolado do que nunca". "Há uma rejeição maior ao regime dentro da Venezuela do que nunca antes. E a fraude flagrante e a recusa em aceitar o resultado expuseram o regime. Não há nenhum governo que possa seriamente argumentar que Maduro é legítimo. Portanto, acredito que o regime estará mais isolado do que nunca." Na opinião do especialista, o caminho que Maduro está seguindo é provavelmente mais perigoso, pois "não há como prever como isso vai terminar".Ele acrescenta que agora a atenção está voltada para saber se será necessário fazer algum esforço para "alcançar uma solução diplomática que reflita a vontade do povo."

 

¨      Como funciona a eleição na Venezuela e por que oposição diz ter provas de que Maduro perdeu

Durante anos, e também durante a recente campanha presidencial, os sucessivos governos da Venezuela e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) se orgulharam de ter o que consideram um sistema impecável. "O melhor sistema eleitoral do mundo", dizem."Posso afirmar com total confiança e garantia que o sistema eleitoral da Venezuela está totalmente protegido e é um dos melhores sistemas de votação automatizada do planeta", disse à BBC o procurador-geral, Tarek William Saab, na noite de domingo (28/7), antes da divulgação dos resultados. A oposição também acredita no sistema de votação, rápido e seguro. No entanto, a desconfiança da oposição sempre esteve nos responsáveis por administrar o sistema e no que acontece antes e depois da votação.

O CNE anunciou a vitória de Nicolás Maduro nas eleições presidenciais, que contaram, segundo o órgão, com uma taxa de participação de 59% dos eleitores.O presidente da instituição, Elvis Amoroso, disse que, com 80% das urnas apuradas e com uma tendência "contundente e irreversível", Maduro venceu com 5.150.092 votos, ou 51,2%. E que o líder opositor, Edmundo González, obteve 4.445.978 votos, ou 44,2%. A oposição, no entanto, contesta esse resultado e diz que houve irregularidades.

Na segunda-feira, o candidato da oposição, Edmundo González Urrutia, garantiu que dispõe de atas de votação que demonstram o seu "triunfo categórico e matematicamente irreversível". A líder da oposição María Corina Machado disse, na ocasião, que o grupo tem 73,20% das atas e diz que elas agora são suficientes para mostrar que González derrotou o atual presidente. "Com as atas que nos faltam, mesmo que o CNE tenha dado 100% dos votos a Maduro, não chega ao que já temos. A diferença foi tão grande, tão grande, avassaladora, em todos os estados da Venezuela, em todos os estratos, em todos os setores, ganhamos", disse Machado.

A oposição diz que as atas indicam que González Urrutia teve 6,27 milhões de votos, contra 2,75 milhões do presidente Maduro.

No anúncio de segunda-feira, os líderes da oposição pediram calma aos apoiadores de González que saíram às ruas para protestar contra os resultados anunciados pelo CNE, que na segunda ratificou a vitória do candidato do Partido Socialista Unido da Venezuela. Machado chamou os seguidores para se reunirem nesta terça-feira para se manifestarem pacificamente. Essas eleições eram consideradas cruciais para a oposição, já que várias pesquisas lhe atribuíam uma ampla vantagem sobre o chavismo, que está no poder há 25 anos. Em cenários mais conservadores, a diferença era de 12 pontos a favor de González em relação a Maduro. Em outros, a vantagem ultrapassava os 25 pontos. Como é possível que em um sistema considerado tão seguro poderia haver, segundo a denúncia da oposição, fraude ou irregularidades?

A seguir, entenda como funciona o sistema de votação na Venezuela.

·        As máquinas e o voto

A votação na Venezuela é um processo automatizado desde 2004. As máquinas foram evoluindo ao longo do tempo, mas hoje em dia são semelhantes a um computador pessoal. A empresa responsável era a Smartmatic. No entanto, após as eleições para a Assembleia Constituinte da Venezuela em 2017, a Smartmatic afirmou que "houve manipulação dos dados de participação" de pelo menos um milhão de eleitores e disse que "uma auditoria permitiria conhecer a quantidade exata de participação". Depois disso, a empresa deixou de trabalhar com o governo venezuelano. Desde 2017, a ExClé, uma multinacional de origem argentina, é a responsável pelo fornecimento dessas máquinas ao órgão eleitoral.

O processo inicial é semelhante a qualquer outro sistema de votação. Quando alguém vai votar, primeiro apresenta sua documentação para verificação dos dados e tem a confirmação da mesa em que votará. Depois disso, a pessoa se dirige à mesa correspondente, que terá uma máquina de voto. Na tela, aparecem todos os candidatos que estão concorrendo, e o eleitor seleciona o escolhido. Para cada voto, a máquina emite um comprovante, ou seja, um papel onde o eleitor pode verificar que seu voto é o mesmo registrado pela máquina. Na sequência, esse comprovante é depositado em uma urna. Então, por um lado, cada máquina registra os votos, que são enviados aos centros de totalização em Caracas e, por outro, cada máquina possui uma urna onde os mesmos votos em papel são depositados.

Amoroso afirmou que houve um ataque "terrorista" que atrasou a transmissão dos dados, gerando dúvidas diante das denúncias da oposição. Ele disse que solicitará à Procuradoria uma investigação. Maduro ecoou essas alegações. "A Venezuela sofreu um ataque durante a noite. Um hackeamento massivo ao sistema de transmissão do Conselho Nacional Eleitoral porque os demônios não queriam que os votos fossem totalizados e que o boletim oficial fosse divulgado", afirmou o presidente.

Eugenio Martínez, jornalista venezuelano e especialista em sistema eleitoral, falou em entrevista à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, sobre a dificuldade de hackear as 30 mil máquinas do CNE. "As máquinas não transmitem os dados pela internet, mas através de linhas telefônicas criptografadas. Portanto, praticamente, para fazer um hackeamento dessa natureza, é necessário hackear linha por linha, máquina por máquina", disse.

Além da transmissão, ao final da jornada eleitoral, cada máquina imprime uma ata de apuração com todos os votos registrados. Também são realizadas auditorias em pelo menos 50% dos centros eleitorais para verificar se as cédulas depositadas nas urnas correspondem ao que foi registrado eletronicamente pela máquina. Nesse contexto, especialistas apontam que o acesso às atas é chave para corroborar as informações divulgadas.

·        O acesso às atas

Nos dias que antecederam as eleições, havia duas coisas que analistas e cientistas políticos consideravam essenciais para que a oposição conseguisse bons resultados: primeiro, mobilizar um número suficiente de eleitores; segundo, garantir testemunhas de mesa suficientes para auditar o processo de votação. Repetia-se à exaustão que as testemunhas de mesa eram essenciais.

Por quê? Não apenas para vigiar e garantir que nenhuma irregularidade ocorresse durante a corrida eleitoral, mas também para ter acesso às atas de apuração final, essenciais para auditar o resultado. Cada testemunha de mesa representa uma ata que pode ser solicitada e, portanto, auditada. Inicialmente, a oposição havia denunciado que teve acesso a apenas 40% das atas.

Carmen Beatriz Fernández, professora de Comunicação Política na Universidade de Navarra e CEO de DataestrategIA, diz que “os números fornecidos pelo CNE não suportam uma divulgação detalhada dos dados, o que é um padrão nas eleições venezuelanas”. Geoff Ramsey, pesquisador sênior no Atlantic Council e especialista em Venezuela, disse que “se o governo não respaldar os resultados com dados, Maduro enfrentará a maior prova de lealdade que já teve em anos”.

Para isso, nos próximos dias, o CNE deveria publicar os dados das eleições detalhados por mesa, município e estado, algo que, por exemplo, não foi feito no último referendo sobre o Essequibo, realizado em dezembro passado.

·        'Irregularidades'

A falta de acesso imediato às atas é o principal problema que a oposição enfrentou ao tentar contestar os dados fornecidos pelo CNE. No entanto, Eugenio Martínez aponta outras irregularidades. "Houve falta de informação e critérios claros. Quando o processo eleitoral terminou, o CNE nunca anunciou que havia concluído. Também não divulgou relatórios sobre as mesas constituídas ou a presença do pessoal técnico", diz. Além disso, embora houvesse técnicos da oposição credenciados nas salas de totalização, não houve acesso para representantes políticos da oposição junto ao CNE. "É uma situação que não havia ocorrido no passado. Se você perde a representação política junto ao CNE, não pode fazer nenhuma reclamação", ressalta Martínez. Isso tornará mais complicado o processo de contestar a eleição na Venezuela. Para isso, será necessário esperar a proclamação oficial do vencedor. Depois disso, dentro de 20 dias, é possível apresentar um recurso ao CNE. Depois de passar pelo CNE, é possível recorrer à Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça para solicitar a nulidade da eleição. Por fim, há o recurso de revisão perante a Sala Constitucional.

Tanto o CNE quanto o Poder Judiciário são compostos por pessoas alinhadas ao chavismo. "Entramos agora em uma dinâmica muito mais desordenada e imprevisível", diz Carmen Beatriz Fernández.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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