Nuno Vasconcellos: ‘Antes tarde do que
nunca’
O déspota iletrado
Nicolas Maduro, ditador da Venezuela, não perde uma oportunidade de mostrar ao
mundo sua verdadeira face — e, sempre que a expõe, deixa clara a razão que
levou quase 9 milhões de venezuelanos, de acordo com o Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (UNCTAD), a abandonar o país em busca de
sobrevivência no exterior. Maduro nada mais é do que um tirano, um autocrata,
um prepotente, um arrogante, um opressor, um sátrapa. E o pior é que tem gente
que ainda insiste em não enxergar o que ele é de fato.
Maduro mente com tanta
convicção que parece acreditar nas mentiras que conta. Ao contrário dos
militares que governaram o Brasil entre 1964 e 1985, que diziam estar no poder
“porque o povo não sabe votar”, ele insiste em dizer que governa por decisão do
povo. De tempos em tempos, convoca “eleições” fajutas, em que escolhe o
candidato que prefere enfrentar, define as regras do jogo e toma decisões que
moldam o resultado conforme sua conveniência para, no final, dizer que obteve
uma vitória legítima.
Provas sucessivas da
desfaçatez com que tenta enganar as pessoas com seu discurso fajuto foram dadas
durante a campanha para a “escolha” do presidente da República, nas eleições
que acontecem neste domingo na Venezuela. Desde que a campanha teve início e a
despeito das medidas autoritárias tomadas para tirar da frente os candidatos
com chances de derrotá-lo, o caudilho fez questão de alardear que o processo é
sério e confiável. Como se não bastasse, ainda se achou no direito de se
indignar com os que chamam de ditadura o governo que ele chefia com mão de
ferro há mais de 11 anos.
Como todo mentiroso,
Maduro tem atitudes oportunistas e covardes. E, como é próprio dos covardes,
tem o hábito de agredir os que não podem enfrentá-lo. Ou porque não têm força
suficiente para desafiá-lo ou porque, mesmo tendo força, têm algo a perder caso
decidam se rebaixar a ponto de respondê-lo. É nessa segunda categoria — ou
seja, na dos que têm algo a perder numa discussão com o caudilho — que se
encontra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
ALVO DE CRÍTICAS
Se existe viva alma no
mundo que não merece uma única crítica de Maduro, é Lula — único (isso mesmo,
único!) líder de uma democracia importante que ainda trata o governo da
Venezuela com respeito. Todos os outros com quem Maduro ainda se relaciona são
tão ditadores quanto ele. São os casos, por exemplo, do tirano russo Vladimir
Russo e do verdugo nicaraguense Daniel Ortega. Mas Lula, não. Por menos que o
presidente brasileiro se importe em ser visto em companhia dessa gente, ninguém
pode acusá-lo de chegar ao poder de forma ilegítima nem de governar sem o
respaldo de uma Carta Magna que pode ter defeitos, mas que de forma alguma foi
imposta de cima para baixo, como o documento que o déspota venezuelano chama de
Constituição.
Todos os demais
líderes de democracias do mundo já viraram as costas para Maduro. Há governos
que não escondem que mandariam prender o ditador caso ele pisasse em seus
territórios. Ou porque estão fartos dos calotes que ele aplica, ou porque
repudiam os abusos contra os direitos humanos que ele comete como prática
corriqueira ou, ainda, porque não querem manchar a reputação de seus governos
se relacionando com um usurpador acusado de ligações com os chefes de grandes
cartéis do narcoterrorismo e de outras modalidades do crime organizado.
Para um governante
condenado ao isolamento, como é o caso do sátrapa venezuelano, o presidente
Lula deveria ser a última pessoa do mundo para quem ele deveria apontar o dedo
e dirigir as impropriedades. Maduro, no entanto, não perde uma oportunidade de
fazer do brasileiro o alvo de suas críticas.
“¿POR QUÉ NO TE CALLAS?”
Na semana passada, a
última de uma campanha eleitoral viciada, que nasceu com o objetivo escancarado
de legitimar seus próximos seis anos do poder, Maduro colocou o Brasil em sua
alça de mira. E falou tanta bobagem, mas tanta bobagem a respeito de Lula e do
processo eleitoral brasileiro, que não haveria mal algum se o presidente ou
algum de seus auxiliares mais graduados dirigisse a ele a mesma pergunta que o
rei Juan Carlos, da Espanha, fez a seu antecessor Hugo Chávez, em novembro de
2007.
A cena, para quem não
se recorda, aconteceu na 17ª Conferência Ibero Americana, em Santiago do Chile.
Em seu pronunciamento, Chávez usou a palavra para lançar ofensas gratuitas ao
ex-primeiro-ministro da Espanha, José Maria Aznar. Até que o soberano, que
estava presente, se irritou. Diante do plenário lotado e das câmeras de TV, o
rei deixou o caudilho embaraçado com a pergunta certeira: “¿Por qué no te
callas?
O episódio atual
começou quando Maduro, que disputa hoje uma eleição que exala o odor da fraude
desde o primeiro momento, declarou que “teme um banho de sangue” caso seu
adversário Edmundo Gonzáles Urrutia — um diplomata de carreira discreta e pouco
conhecido dentro do próprio país — saia vitorioso nas urnas. Maduro expressou
esse temor porque, mesmo tendo feito todo tipo de manipulação e se valido de
todo tipo de ameaça para inviabilizar as chances das oposições, viu seu nome
derreter nas pesquisas eleitorais. Os levantamentos feitos nos últimos dias da
campanha conferiram a Gonzáles ampla vantagem. Na semana passada, eles
indicavam 60% de preferência para o candidato da oposição e apenas 28% para o
ditador.
O presidente, a
princípio, agiu como se a ameaça de Maduro, de fazer correr sangue caso perca
uma eleição forjada para garantir sua vitória, não tivesse importância. Tanto
assim que, na sexta-feira retrasada, durante uma viagem a São Paulo, ao ser
questionado sobre o tema, Lula saiu pela tangente: “Por que eu vou querer
brigar com a Venezuela? Por que eu vou querer com a Nicarágua? Por que eu vou
querer com a Argentina? Eles que elejam os presidentes que quiserem. O que me
interessa é a relação de Estado para Estado”.
IMAGEM MANCHADA
Algum conselheiro deve
ter alertado para o risco que o apoio, ainda que velado, às ações de Maduro na
Venezuela representa para as pretensões do presidente, que ainda alimenta o
sonho de recuperar o prestígio perdido e se firmar como grande liderança mundial.
Ainda mais num momento em o Rio de Janeiro estava às vésperas de sediar a
reunião dos Ministros de Economia do G-20, bloco dos 20 países mais ricos do
mundo, que será presidido pelo brasileiro até 30 de novembro deste ano.
A reunião aconteceu na
quarta-feira passada e não ficaria bem para Lula chegar a um encontro dessa
magnitude com a imagem manchada pelo apoio a uma ditadura repudiada pela
maioria dos países e blocos que compõem o fórum. Criado em 1999, inicialmente
para discutir questões macroeconômicas num momento em que o mundo lutava para
superar os efeitos das crises internacionais que houve no final do Século 20, o
bloco foi aos poucos incorporando questões ligadas às mudanças climáticas, à
transição energética, saúde, pobreza e ao combate à corrupção.
O encontro seria
aproveitado por Lula para defender a proposta de um pacto internacional para
taxar as fortunas dos super-ricos (ideia, por sinal, rechaçada por Janet
Yellen, secretária do Tesouro dos Estados Unidos, para quem “não é necessário
nem desejável negociar um acordo global em relação a isso”). O presidente
também aproveitaria o momento para propor a criação da Aliança Global Contra a
Fome e a Pobreza. Não ficaria bem, portanto, se ele se apresentasse para
defender uma pauta nobre como essa com a imagem arranhada pelo silêncio diante
das ameaças de Maduro contra o próprio povo.
Na manhã de
segunda-feira da semana passada, Lula recebeu no Palácio do Planalto um grupo
de correspondentes internacionais. Estavam na sala jornalistas da agência
chinesa XIHUA, das americanas Associated Press e Bloomberg, da alemã Reuters e
da espanhola EFE. O material produzido por essas agências é distribuído para
veículos de comunicação de todo o planeta. Ou seja: o que Lula dissesse estaria
nos sites e jornais do mundo inteiro dali a poucas horas.
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Em sua pergunta, o
correspondente da Agência EFE, Eduardo Davis, pontuou que as ameaças à
democracia no mundo não vinham apenas da “direita” — como era possível deduzir
das palavras de Lula. Foi esse jornalista que trouxe a Venezuela para o debate
ao mencionar a eleição marcada para hoje e lembrar os 7 milhões de pessoas que
deixaram a Venezuela “basicamente por pobreza”.
Em tempo: segundo a
UNCTAD, o número já ultrapassou a casa dos 7 milhões. São 5,4 milhões de
venezuelanos refugiados em outros países, 2,5 milhões que vivem no exterior
como imigrantes ou contam com outra forma de acolhida legal e 800 mil à espera
da obtenção de refúgio. Ou seja, 8,7 milhões. “Então”, quis saber o jornalista
“como se dá essa articulação (mencionada por Lula) para conter a ultradireita
global que está se organizando sem enfrentar nossos próprios fantasmas e
colocá-los no lugar em que de uma maneira ou de outra, estão?”
O presidente fez um
longo preâmbulo antes de entrar no assunto. “Se o Maduro quiser contribuir para
resolver a volta do crescimento na Venezuela, a volta das pessoas que saíram da
Venezuela e estabelecer um Estado de crescimento econômico, ele tem que respeitar
o processo democrático”, disse.
Depois, ele entrou na
questão da qual havia se esquivado três dias antes: “Pelas informações que
tenho até agora, eu fiquei assustado com a declaração do Maduro, dizendo que
vai ter um banho de sangue. Quem perde as eleições toma um banho de votos, não
de sangue. O Maduro tem que aprender. Quando você ganha, você fica. Quando você
perde, vai embora. Vai embora e se prepara para disputar outra eleição. Então,
eu estou torcendo para que aconteça isso, pelo bem da Venezuela e pelo bem da
América do Sul”. Comentário mais sereno e respeitoso do que esse seria
impossível.
Não houve nada de
ofensivo na declaração. O opressor venezuelano, porém, se melindrou e não
perdeu a oportunidade de incluir o tema em seu discurso de campanha. Maduro
disse que, “quem se assustou (com suas declarações sobre o “banho de sangue”)
que tome um chá de camomila”. O Itamaraty disse que não comentaria as
declarações. Antes de prosseguir, é bom fazer uma reflexão sobre o vínculo que
une o ditador ao funcionário do governo brasileiro que dá o tom das ações do
Itamartaty: o assessor especial para Assuntos Internacionais da presidência da
República, Celso Amorim. Como se sabe, Amorim é um dos artífices da política
que se afasta da tradição “itamarateca” do pragmatismo responsável e subordina
a diplomacia brasileira à ideologia dos parceiros.
“TAPAR O SOL COM O
DEDO”
Maduro era um jovem
maquinista do metrô de Caracas quando se filiou ao movimento que, em 1998,
levou o tenente-coronel Hugo Chávez ao poder. “Combativo” e fiel a Chávez até a
medula, Maduro foi eleito no ano seguinte para a Assembleia que redigiu a atual
Constituição da Venezuela. Chegou em seguida à Assembleia Nacional e se
destacou pela defesa radical da Revolução do Século 21, proposta por seu chefe.
É bom lembrar que a
Venezuela é dona das maiores reservas de petróleo do mundo e que o preço da
commoditie, na época, estava nas alturas. A estatal PDVSA era uma das
principais petroleiras do mundo e foi posta a serviço do projeto chavista.
Chávez se pôs a torrar os recursos do país num programa populista sem limites e
a apoiar outros governos de esquerda sul-americanos com o objetivo de ser
firmar como o grande líder da esquerda na região.
Para se ter uma ideia
de como a Venezuela esbanjava dinheiro no tempo das vacas gordas, basta lembrar
que, em 2006, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o Carnaval carioca
com um enredo em homenagem a Simón Bolivar, o oligarca venezuelano que liderou
as guerras de independência contra a Espanha e era o inspirador de Chávez. O
desfile foi bancado pela PDVSA.
Onde Amorim entra na
história? Bem... em 2006, pelos bons serviços prestados, Chávez confiou ao
ex-maquinista Maduro o comando do “Ministerio del Poder Popular para Assuntos
Externos”, o “Itamaraty” venezuelano. Sem qualquer experiência ou aptidão para
o posto, pediu ajuda ao governo brasileiro, que estava sob o comando de Lula
desde 2003. Quem acolheu e ensinou o bê-a-bá da diplomacia a Maduro foi o então
ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim.
O resto é história.
Com o pé no acelerador de suas políticas populistas, Chávez continuou
esbanjando dinheiro, enquanto Maduro ascendia na hierarquia do regime. A ponto
de ter sido “eleito” vice-presidente na última eleição vencida por Chávez antes
de morrer, vítima de câncer, em 2013. Nesse período, enquanto levava seu país a
pique, sempre cuidou de manter firmes os laços que construiu no tempo
“Ministerio del Poder Popular para Assuntos Externos”.
Quando Lula voltou ao
poder, em 2023, Amorim foi nomeado Assessor para Assuntos Internacionais. Uma
de suas primeiras missões foi organizar a reunião de cúpula de chefes de Estado
Sul-Americanos, no final de maio de 2023. O tratamento dado ao ditador — homenageado
com um jantar de gala para o qual os outros não foram convidados — constrangeu
os demais presidentes, que não gostaram de ser tratados como figurantes no
palco armado para que Maduro brilhasse. Tanto não gostaram que foram embora
mais cedo e o jantar que marcaria o encerramento do encontro teve que ser
cancelado.
Na época, Lula chegou
a dizer que as acusações à falta democracia na Venezuela não passavam de uma
narrativa das forças conservadoras. O presidente do Uruguai, Lacalle Pou,
manifestou espanto diante dessa opinião. “Vocês sabem o que pensamos a respeito
da Venezuela e do governo da Venezuela”, disse. “Se há tantos grupos no mundo
tratando de mediar para que a democracia na Venezuela seja plena, o pior que
podemos fazer é tapar o sol com o dedo”.
COMPANHIA INCÔMODA
Recordar essa história
é importante neste momento em que Amorim foi escalado por Lula para viajar à
Venezuela e atuar como “observador” de uma eleição que, todo mundo sabe, é um
jogo de cartas marcadas. Melhor fez a presidente do Superior Tribunal Eleitoral,
ministra Carmen Lúcia que, diante das críticas sem cabimento feitas por Maduro
ao processo eleitoral brasileiro, mandou cancelar a viagem dos funcionários que
iriam à Venezuela como observadores das eleições.
Mas Amorim foi. Na
volta, terá que explicar o que foi fazer em Caracas. Se, contra todas as
expectativas, González furar o bloqueio, sair-se triunfante e, mais do que
isso, vir a assumir o Palácio de Miraflores, o fato será interpretado como um
sinal de que as forças venezuelanas que sempre sustentaram e se beneficiaram
das benesses do regime “bolivariano”, viraram as costas para o ditador antes
que o governo brasileiro assumisse a intenção de se afastar da companhia
incômoda. Se, como é mais provável, o ditador vencer um pleito feito para
assegurar o seu triunfo, o resultado apenas confirmará a farsa. E Amorim? Como
fica em meio a tudo isso?
Bem... se, no final
das contas, ele disser que nada viu de errado, apenas convalidará um processo
que nasceu viciado, prosseguiu viciado e viciado chegou ao fim. Se, no entanto,
mudar de opinião, passar a ver o que nunca viu e denunciar uma tirania que o
tempo todo agiu sob seu nariz, terá que pagar o preço por aderir de forma
tardia a um grupo onde já estão a maioria dos países sul-americanos e as
principais democracias do mundo. E para um presidente que almeja ser uma
liderança mundial, chegar atrasado à festa não é um sinal animador. Mesmo
assim, ainda que seja tarde, será melhor para sua imagem perante o mundo romper
de uma vez por todas com a ditadura de Maduro — antes que isso seja incluído
como uma nódoa definitiva em sua biografia.
Fonte: O Dia
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