segunda-feira, 29 de julho de 2024

Nuno Vasconcellos: ‘Antes tarde do que nunca’

O déspota iletrado Nicolas Maduro, ditador da Venezuela, não perde uma oportunidade de mostrar ao mundo sua verdadeira face — e, sempre que a expõe, deixa clara a razão que levou quase 9 milhões de venezuelanos, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNCTAD), a abandonar o país em busca de sobrevivência no exterior. Maduro nada mais é do que um tirano, um autocrata, um prepotente, um arrogante, um opressor, um sátrapa. E o pior é que tem gente que ainda insiste em não enxergar o que ele é de fato.

Maduro mente com tanta convicção que parece acreditar nas mentiras que conta. Ao contrário dos militares que governaram o Brasil entre 1964 e 1985, que diziam estar no poder “porque o povo não sabe votar”, ele insiste em dizer que governa por decisão do povo. De tempos em tempos, convoca “eleições” fajutas, em que escolhe o candidato que prefere enfrentar, define as regras do jogo e toma decisões que moldam o resultado conforme sua conveniência para, no final, dizer que obteve uma vitória legítima.

Provas sucessivas da desfaçatez com que tenta enganar as pessoas com seu discurso fajuto foram dadas durante a campanha para a “escolha” do presidente da República, nas eleições que acontecem neste domingo na Venezuela. Desde que a campanha teve início e a despeito das medidas autoritárias tomadas para tirar da frente os candidatos com chances de derrotá-lo, o caudilho fez questão de alardear que o processo é sério e confiável. Como se não bastasse, ainda se achou no direito de se indignar com os que chamam de ditadura o governo que ele chefia com mão de ferro há mais de 11 anos.

Como todo mentiroso, Maduro tem atitudes oportunistas e covardes. E, como é próprio dos covardes, tem o hábito de agredir os que não podem enfrentá-lo. Ou porque não têm força suficiente para desafiá-lo ou porque, mesmo tendo força, têm algo a perder caso decidam se rebaixar a ponto de respondê-lo. É nessa segunda categoria — ou seja, na dos que têm algo a perder numa discussão com o caudilho — que se encontra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

ALVO DE CRÍTICAS

Se existe viva alma no mundo que não merece uma única crítica de Maduro, é Lula — único (isso mesmo, único!) líder de uma democracia importante que ainda trata o governo da Venezuela com respeito. Todos os outros com quem Maduro ainda se relaciona são tão ditadores quanto ele. São os casos, por exemplo, do tirano russo Vladimir Russo e do verdugo nicaraguense Daniel Ortega. Mas Lula, não. Por menos que o presidente brasileiro se importe em ser visto em companhia dessa gente, ninguém pode acusá-lo de chegar ao poder de forma ilegítima nem de governar sem o respaldo de uma Carta Magna que pode ter defeitos, mas que de forma alguma foi imposta de cima para baixo, como o documento que o déspota venezuelano chama de Constituição.

Todos os demais líderes de democracias do mundo já viraram as costas para Maduro. Há governos que não escondem que mandariam prender o ditador caso ele pisasse em seus territórios. Ou porque estão fartos dos calotes que ele aplica, ou porque repudiam os abusos contra os direitos humanos que ele comete como prática corriqueira ou, ainda, porque não querem manchar a reputação de seus governos se relacionando com um usurpador acusado de ligações com os chefes de grandes cartéis do narcoterrorismo e de outras modalidades do crime organizado.

Para um governante condenado ao isolamento, como é o caso do sátrapa venezuelano, o presidente Lula deveria ser a última pessoa do mundo para quem ele deveria apontar o dedo e dirigir as impropriedades. Maduro, no entanto, não perde uma oportunidade de fazer do brasileiro o alvo de suas críticas.

“¿POR QUÉ NO TE CALLAS?”

Na semana passada, a última de uma campanha eleitoral viciada, que nasceu com o objetivo escancarado de legitimar seus próximos seis anos do poder, Maduro colocou o Brasil em sua alça de mira. E falou tanta bobagem, mas tanta bobagem a respeito de Lula e do processo eleitoral brasileiro, que não haveria mal algum se o presidente ou algum de seus auxiliares mais graduados dirigisse a ele a mesma pergunta que o rei Juan Carlos, da Espanha, fez a seu antecessor Hugo Chávez, em novembro de 2007.

A cena, para quem não se recorda, aconteceu na 17ª Conferência Ibero Americana, em Santiago do Chile. Em seu pronunciamento, Chávez usou a palavra para lançar ofensas gratuitas ao ex-primeiro-ministro da Espanha, José Maria Aznar. Até que o soberano, que estava presente, se irritou. Diante do plenário lotado e das câmeras de TV, o rei deixou o caudilho embaraçado com a pergunta certeira: “¿Por qué no te callas?

O episódio atual começou quando Maduro, que disputa hoje uma eleição que exala o odor da fraude desde o primeiro momento, declarou que “teme um banho de sangue” caso seu adversário Edmundo Gonzáles Urrutia — um diplomata de carreira discreta e pouco conhecido dentro do próprio país — saia vitorioso nas urnas. Maduro expressou esse temor porque, mesmo tendo feito todo tipo de manipulação e se valido de todo tipo de ameaça para inviabilizar as chances das oposições, viu seu nome derreter nas pesquisas eleitorais. Os levantamentos feitos nos últimos dias da campanha conferiram a Gonzáles ampla vantagem. Na semana passada, eles indicavam 60% de preferência para o candidato da oposição e apenas 28% para o ditador.

O presidente, a princípio, agiu como se a ameaça de Maduro, de fazer correr sangue caso perca uma eleição forjada para garantir sua vitória, não tivesse importância. Tanto assim que, na sexta-feira retrasada, durante uma viagem a São Paulo, ao ser questionado sobre o tema, Lula saiu pela tangente: “Por que eu vou querer brigar com a Venezuela? Por que eu vou querer com a Nicarágua? Por que eu vou querer com a Argentina? Eles que elejam os presidentes que quiserem. O que me interessa é a relação de Estado para Estado”.

IMAGEM MANCHADA

Algum conselheiro deve ter alertado para o risco que o apoio, ainda que velado, às ações de Maduro na Venezuela representa para as pretensões do presidente, que ainda alimenta o sonho de recuperar o prestígio perdido e se firmar como grande liderança mundial. Ainda mais num momento em o Rio de Janeiro estava às vésperas de sediar a reunião dos Ministros de Economia do G-20, bloco dos 20 países mais ricos do mundo, que será presidido pelo brasileiro até 30 de novembro deste ano.

A reunião aconteceu na quarta-feira passada e não ficaria bem para Lula chegar a um encontro dessa magnitude com a imagem manchada pelo apoio a uma ditadura repudiada pela maioria dos países e blocos que compõem o fórum. Criado em 1999, inicialmente para discutir questões macroeconômicas num momento em que o mundo lutava para superar os efeitos das crises internacionais que houve no final do Século 20, o bloco foi aos poucos incorporando questões ligadas às mudanças climáticas, à transição energética, saúde, pobreza e ao combate à corrupção.

O encontro seria aproveitado por Lula para defender a proposta de um pacto internacional para taxar as fortunas dos super-ricos (ideia, por sinal, rechaçada por Janet Yellen, secretária do Tesouro dos Estados Unidos, para quem “não é necessário nem desejável negociar um acordo global em relação a isso”). O presidente também aproveitaria o momento para propor a criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Não ficaria bem, portanto, se ele se apresentasse para defender uma pauta nobre como essa com a imagem arranhada pelo silêncio diante das ameaças de Maduro contra o próprio povo.

Na manhã de segunda-feira da semana passada, Lula recebeu no Palácio do Planalto um grupo de correspondentes internacionais. Estavam na sala jornalistas da agência chinesa XIHUA, das americanas Associated Press e Bloomberg, da alemã Reuters e da espanhola EFE. O material produzido por essas agências é distribuído para veículos de comunicação de todo o planeta. Ou seja: o que Lula dissesse estaria nos sites e jornais do mundo inteiro dali a poucas horas.

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Em sua pergunta, o correspondente da Agência EFE, Eduardo Davis, pontuou que as ameaças à democracia no mundo não vinham apenas da “direita” — como era possível deduzir das palavras de Lula. Foi esse jornalista que trouxe a Venezuela para o debate ao mencionar a eleição marcada para hoje e lembrar os 7 milhões de pessoas que deixaram a Venezuela “basicamente por pobreza”.

Em tempo: segundo a UNCTAD, o número já ultrapassou a casa dos 7 milhões. São 5,4 milhões de venezuelanos refugiados em outros países, 2,5 milhões que vivem no exterior como imigrantes ou contam com outra forma de acolhida legal e 800 mil à espera da obtenção de refúgio. Ou seja, 8,7 milhões. “Então”, quis saber o jornalista “como se dá essa articulação (mencionada por Lula) para conter a ultradireita global que está se organizando sem enfrentar nossos próprios fantasmas e colocá-los no lugar em que de uma maneira ou de outra, estão?”

O presidente fez um longo preâmbulo antes de entrar no assunto. “Se o Maduro quiser contribuir para resolver a volta do crescimento na Venezuela, a volta das pessoas que saíram da Venezuela e estabelecer um Estado de crescimento econômico, ele tem que respeitar o processo democrático”, disse.

Depois, ele entrou na questão da qual havia se esquivado três dias antes: “Pelas informações que tenho até agora, eu fiquei assustado com a declaração do Maduro, dizendo que vai ter um banho de sangue. Quem perde as eleições toma um banho de votos, não de sangue. O Maduro tem que aprender. Quando você ganha, você fica. Quando você perde, vai embora. Vai embora e se prepara para disputar outra eleição. Então, eu estou torcendo para que aconteça isso, pelo bem da Venezuela e pelo bem da América do Sul”. Comentário mais sereno e respeitoso do que esse seria impossível.

Não houve nada de ofensivo na declaração. O opressor venezuelano, porém, se melindrou e não perdeu a oportunidade de incluir o tema em seu discurso de campanha. Maduro disse que, “quem se assustou (com suas declarações sobre o “banho de sangue”) que tome um chá de camomila”. O Itamaraty disse que não comentaria as declarações. Antes de prosseguir, é bom fazer uma reflexão sobre o vínculo que une o ditador ao funcionário do governo brasileiro que dá o tom das ações do Itamartaty: o assessor especial para Assuntos Internacionais da presidência da República, Celso Amorim. Como se sabe, Amorim é um dos artífices da política que se afasta da tradição “itamarateca” do pragmatismo responsável e subordina a diplomacia brasileira à ideologia dos parceiros.

“TAPAR O SOL COM O DEDO”

Maduro era um jovem maquinista do metrô de Caracas quando se filiou ao movimento que, em 1998, levou o tenente-coronel Hugo Chávez ao poder. “Combativo” e fiel a Chávez até a medula, Maduro foi eleito no ano seguinte para a Assembleia que redigiu a atual Constituição da Venezuela. Chegou em seguida à Assembleia Nacional e se destacou pela defesa radical da Revolução do Século 21, proposta por seu chefe.

É bom lembrar que a Venezuela é dona das maiores reservas de petróleo do mundo e que o preço da commoditie, na época, estava nas alturas. A estatal PDVSA era uma das principais petroleiras do mundo e foi posta a serviço do projeto chavista. Chávez se pôs a torrar os recursos do país num programa populista sem limites e a apoiar outros governos de esquerda sul-americanos com o objetivo de ser firmar como o grande líder da esquerda na região.

Para se ter uma ideia de como a Venezuela esbanjava dinheiro no tempo das vacas gordas, basta lembrar que, em 2006, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o Carnaval carioca com um enredo em homenagem a Simón Bolivar, o oligarca venezuelano que liderou as guerras de independência contra a Espanha e era o inspirador de Chávez. O desfile foi bancado pela PDVSA.

Onde Amorim entra na história? Bem... em 2006, pelos bons serviços prestados, Chávez confiou ao ex-maquinista Maduro o comando do “Ministerio del Poder Popular para Assuntos Externos”, o “Itamaraty” venezuelano. Sem qualquer experiência ou aptidão para o posto, pediu ajuda ao governo brasileiro, que estava sob o comando de Lula desde 2003. Quem acolheu e ensinou o bê-a-bá da diplomacia a Maduro foi o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim.

O resto é história. Com o pé no acelerador de suas políticas populistas, Chávez continuou esbanjando dinheiro, enquanto Maduro ascendia na hierarquia do regime. A ponto de ter sido “eleito” vice-presidente na última eleição vencida por Chávez antes de morrer, vítima de câncer, em 2013. Nesse período, enquanto levava seu país a pique, sempre cuidou de manter firmes os laços que construiu no tempo “Ministerio del Poder Popular para Assuntos Externos”.

Quando Lula voltou ao poder, em 2023, Amorim foi nomeado Assessor para Assuntos Internacionais. Uma de suas primeiras missões foi organizar a reunião de cúpula de chefes de Estado Sul-Americanos, no final de maio de 2023. O tratamento dado ao ditador — homenageado com um jantar de gala para o qual os outros não foram convidados — constrangeu os demais presidentes, que não gostaram de ser tratados como figurantes no palco armado para que Maduro brilhasse. Tanto não gostaram que foram embora mais cedo e o jantar que marcaria o encerramento do encontro teve que ser cancelado.

Na época, Lula chegou a dizer que as acusações à falta democracia na Venezuela não passavam de uma narrativa das forças conservadoras. O presidente do Uruguai, Lacalle Pou, manifestou espanto diante dessa opinião. “Vocês sabem o que pensamos a respeito da Venezuela e do governo da Venezuela”, disse. “Se há tantos grupos no mundo tratando de mediar para que a democracia na Venezuela seja plena, o pior que podemos fazer é tapar o sol com o dedo”.

COMPANHIA INCÔMODA

Recordar essa história é importante neste momento em que Amorim foi escalado por Lula para viajar à Venezuela e atuar como “observador” de uma eleição que, todo mundo sabe, é um jogo de cartas marcadas. Melhor fez a presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ministra Carmen Lúcia que, diante das críticas sem cabimento feitas por Maduro ao processo eleitoral brasileiro, mandou cancelar a viagem dos funcionários que iriam à Venezuela como observadores das eleições.

Mas Amorim foi. Na volta, terá que explicar o que foi fazer em Caracas. Se, contra todas as expectativas, González furar o bloqueio, sair-se triunfante e, mais do que isso, vir a assumir o Palácio de Miraflores, o fato será interpretado como um sinal de que as forças venezuelanas que sempre sustentaram e se beneficiaram das benesses do regime “bolivariano”, viraram as costas para o ditador antes que o governo brasileiro assumisse a intenção de se afastar da companhia incômoda. Se, como é mais provável, o ditador vencer um pleito feito para assegurar o seu triunfo, o resultado apenas confirmará a farsa. E Amorim? Como fica em meio a tudo isso?

Bem... se, no final das contas, ele disser que nada viu de errado, apenas convalidará um processo que nasceu viciado, prosseguiu viciado e viciado chegou ao fim. Se, no entanto, mudar de opinião, passar a ver o que nunca viu e denunciar uma tirania que o tempo todo agiu sob seu nariz, terá que pagar o preço por aderir de forma tardia a um grupo onde já estão a maioria dos países sul-americanos e as principais democracias do mundo. E para um presidente que almeja ser uma liderança mundial, chegar atrasado à festa não é um sinal animador. Mesmo assim, ainda que seja tarde, será melhor para sua imagem perante o mundo romper de uma vez por todas com a ditadura de Maduro — antes que isso seja incluído como uma nódoa definitiva em sua biografia.

 

Fonte: O Dia

 

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